Uma vez mais, prestamos a nossa homenagem – a homenagem do colectivo partidário comunista – ao camarada António Ferreira Soares, assassinado pela polícia fascista no dia 4 de Julho de 1942, faz agora precisamente 70 anos.
Uma vez mais relembramos a notável dimensão fraterna, solidária, humana, do «médico dos pobres», como era conhecido entre o povo, pela sua permanente disponibilidade para atender quem dele necessitasse, fosse a que hora fosse do dia ou da noite e tivesse ou não tivesse dinheiro para pagar a consulta.
Uma vez mais relembramos o militante comunista, intensamente empenhado na actividade partidária e na luta conduzida pelo Partido contra o regime fascista, pela liberdade, pela democracia, pelo socialismo e o comunismo.
Uma vez mais relembramos o brutal assassinato de que foi vítima e as circunstâncias em que ocorreu.
Como sabemos, Ferreira Soares era, para além de médico altamente prestigiado, um militante comunista profundamente devotado à causa dos trabalhadores e do povo e um incansável lutador pela unidade das forças antifascistas. Perseguido pela polícia fascista – a PVDE que, anos depois, passou a chamar-se PIDE e, mais tarde, DGS – em 1936 refugiou-se aqui, em Nogueira da Regedoura, onde, durante cerca de seis anos, prosseguiu, clandestinamente, a sua actividade revolucionária e a sua acção como médico. Médico do povo – do povo que, solidário, sabendo-o perseguido pela polícia política, o auxiliava e apoiava, dando-lhe abrigo, defendendo-o, avisando-o sempre que havia sinal de presenças estranhas na povoação.
Mas a polícia fascista não desistira de o procurar, montando-lhe um cerco que se ia apertando. E naquele dia 4 de Julho, armaram-lhe uma cilada: uma falsa doente, acompanhada por um inspector e dois agentes da PVDE, solicita-lhe uma consulta de urgência, pedido a que ele – sempre disponível para ajudar a gente humilde e necessitada que procurava os seus cuidados – acede, recebendo a falsa doente em casa de sua irmã. Depois foram as 14 balas de pistola metralhadora disparadas à queima-roupa. Foi o crime brutal que o roubou ao seu povo e ao seu Partido.
Recordar e homenagear, hoje, o camarada Ferreira Soares, a sua postura de militante comunista, de resistente antifascista, para além de um acto da mais elementar justiça, é também uma forma de dar resposta e combate à operação em curso visando o branqueamento do fascismo e o silenciamento e condenação dos que o enfrentaram e lhe resistiram heroicamente. Essa campanha que, levada a cabo pelo exército de historiadores de serviço e difundida pelos difusores de serviço, vem dando execução à tarefa de concluir e mandar publicar que, em Portugal não existiu fascismo; que o regime da Salazar e Caetano era, quanto muito, um regime «autoritário» e, mesmo assim, de um «autoritarismo paternalista» e «tolerante»; que a PIDE não torturava nem matava ninguém (que isso eram invenções e calúnias dos comunistas); que «Salazar não era fascista», bem pelo contrário, era até «um grande democrata». Concluindo assim, esses branqueadores do fascismo desunham-se na tarefa de apagar a importância, o conteúdo e o significado da resistência antifascista e do papel nela desempenhado pelo PCP – numa operação que é parte integrante da acção de denegrimento dos comunistas, do seu Partido, do seu projecto, do seu ideal transformador e libertador; uma operação que visa ocultar a prática dos comunistas na assumpção do seu compromisso de sempre com os trabalhadores, o povo português, a independência e a soberania de Portugal – esse compromisso ao qual o camarada Ferreira Soares dedicou a sua vida; esse compromisso que, setenta anos passados, aqui assumimos como bússola orientadora da prática presente e futura do PCP e dos militantes comunistas.
Tudo isto torna necessário afirmarmos uma vez mais – e tantas vezes quantas as necessárias – que a verdade mostra, inequivocamente, que em Portugal existiu, durante quase meio século, uma feroz ditadura fascista; que o fascismo, enquanto ditadura terrorista do capital, oprimiu e reprimiu o povo e os trabalhadores portugueses e mergulhou na miséria e no atraso o País e o povo; que o fascismo perseguiu, prendeu, torturou, assassinou milhares e milhares de homens, mulheres e jovens que se lhe opuseram corajosamente. E que, nesse tempo em que lutar pela democracia e pela liberdade tinha como consequências inevitáveis a prisão, a tortura, muitas vezes a morte, nesse tempo difícil, os comunistas foram os únicos que ocuparam sempre a primeira fila da luta. E o exemplo de vida e de luta do camarada Ferreira Soares é a mais cabal confirmação de tudo isso.
De facto, eram tempos difíceis para os trabalhadores e para o povo, esses tempos em que viveu e lutou o camarada que hoje aqui homenageamos.
Tempos de brutal exploração, de obscurantismo, de miséria. Tempos de violência, de repressão, de perseguições, de prisões em massa, de torturas, de deportações, de assassinatos, de terror à solta – recorde-se que, nesse mesmo ano de 1942, morreram no Campo de Concentração do Tarrafal quatro resistentes antifascistas, entre eles o camarada Bento Gonçalves, então secretário-geral do PCP.
Eram tempos, enfim, em que o fascismo salazarista, estimulado pelos avanços dos exércitos nazis na União Soviética – avanços que muitos viam como imparáveis – exibia a sua verdadeira face terrorista.
Mas eram, também, tempos de luta, de intensa luta antifascista, de intensa actividade do PCP. Estava, então, em curso o processo iniciado com a importante reorganização de 1940/41 – um processo que atingiria expressão maior com a realização dos III e IV congressos do Partido, respectivamente em 1943 e 1946, e que transformaria o PCP num partido marxista-leninista, vanguarda de facto da classe operária e das massas trabalhadoras; no grande partido da resistência e da unidade antifascistas; num grande partido nacional.
No âmbito desse processo, nascem organizações e organismos do Partido por todo o País: são criadas e crescem células em praticamente todas as grandes empresas nacionais; avança em força a organização junto dos assalariados rurais, particularmente na zona do latifúndio; reforça-se a organização da juventude, que vê no PCP o seu partido; é enorme a influência do Partido junto dos intelectuais que desempenham papel marcante na situação, quer enquanto porta-vozes, através da sua arte, das aspirações e das lutas das massas trabalhadoras, quer enquanto componentes do vasto movimento de luta antifascista, pela liberdade, pela democracia e pela paz.
É por essa altura que é criado o Comité Regional do Douro do Partido Comunista Português, do qual o camarada António Ferreira Soares era um destacado membro.
Na sequência deste impetuoso desenvolvimento do Partido, intensifica-se e amplia-se a luta dos trabalhadores e do povo e a resistência ao fascismo cresce e reforça-se consideravelmente. A classe operária surge em força a ocupar um papel marcante na cena política nacional e ocupa a vanguarda da luta – e à sua frente, mobilizando, organizando, dirigindo, projectando e impulsionando a luta sempre para a frente, sempre para objectivos mais vastos, está o Partido Comunista Português, assumindo-se assim e afirmando-se aos olhos do povo português, inequivocamente, como a verdadeira vanguarda da classe operária e das massas trabalhadoras.
A luta da classe operária e dos trabalhadores alastra por todo o País, incidindo em praticamente todas as áreas de actividade - dos têxteis aos corticeiros; dos químicos aos mineiros; dos metalúrgicos aos ferroviários; dos portuários aos pescadores, aos electricistas, aos salineiros; aos vidreiros, aos construtores navais, aos tipógrafos, aos sapateiros, aos conserveiros, aos assalariados rurais - e desenvolvendo-se praticamente em todo o País: Covilhã, Lisboa, Almada, Barreiro, Setúbal, Aveiro, Oliveira de Azeméis, Matosinhos, Penafiel, Porto, Nazaré, Leiria, Figueira da Foz, Loulé, Estarreja, Famalicão, Alenquer, Viana do Castelo, Marinha Grande, Coimbra, Vila Nova de Gaia, Espinho, S. João da Madeira, Lamego, Barcelos, Viseu, Braga, Évora, Santarém, Montijo, Vila Real, Régua, Vila do Conde, Guimarães, Castelo Branco, são algumas das localidades e regiões palco de corajosas lutas da classe operária e das massas trabalhadoras, num processo que viria a atingir dimensão superior com as importantes greves em Lisboa e na Margem Sul do Tejo, em 1943, e as históricas jornadas de luta de 8 e 9 de Maio de 1944, na região de Lisboa e no Baixo Ribatejo.
Ao mesmo tempo, e por efeito da acção empenhada do Partido, a unidade das forças democráticas e antifascistas dá significativos passos em frente: em Janeiro de 1944 é criado o MUNAF (Movimento de Unidade Nacional Antifascista), em que participam comunistas, socialistas, republicanos, católicos, monárquicos e outros antifascistas de várias tendências. Depois nasce o MUD (Movimento de Unidade Democrática) e, logo a seguir, o MUD Juvenil. Trata-se de movimentos unitários na criação dos quais o PCP desempenhou um papel determinante e que constituíram importantes frentes da luta antifascista.
Foi neste tempo difícil e em que escolher o lado certo da barricada, fazer a opção justa, comportava consequências previsivelmente difíceis, que António Carlos Ferreira Soares – «médico do povo», humanista, intelectual, etnógrafo, contista, crítico, cidadão exemplar – aderiu ao PCP para, como ele próprio disse, ficar «mais perto do possível convívio e organização das massas populares». Viveu intensamente a sua vida breve, seguramente feliz pela opção que fez – uma opção que assumiu com a coragem e a lucidez de militante revolucionário, e que exemplifica claramente a nossa condição de comunistas.
O camarada Álvaro Cunhal, no seu livro O Partido com Paredes de Vidro. pergunta a dada altura: «donde nos vem a nós, comunistas portugueses, esta alegria de viver e de lutar? O que nos leva a considerar a actividade partidária como um aspecto central da nossa vida? O que nos leva a consagrar tempo, energias, faculdades, atenção, à actividade do Partido? O que nos leva a defrontar, por motivo das nossas ideias e da nossa luta, todas as dificuldades e perigos, a arrostar perseguições e, se as condições o impõem, a suportar torturas e condenações e a dar a vida se necessário?» – e responde que essa alegria de viver e de lutar, essa entrega total à actividade partidária e à luta sejam quais forem as circunstâncias existentes, nos vem da «profunda convicção de que é justa, empolgante e invencível a causa porque lutamos», vem do mais belo de todos os ideais, o ideal de liberdade, de justiça social, de paz, de fraternidade, de camaradagem, de solidariedade: o nosso ideal comunista.
Este ideal comunista que foi fonte de inspiração, de força, de coragem, na acção do camarada Ferreira Soares e é igualmente a sólida raiz da firme determinação dos comunistas de hoje, que lhes permite prosseguir a luta pelos objectivos pelos quais o camarada Ferreira Soares deu a sua vida. Esta luta que hoje travamos contra a política antipatriótica e de direita, e que prosseguiremos, incansavelmente, até a derrotarmos e a substituirmos pela política patriótica e de esquerda que os interesses dos trabalhadores, do povo e de Portugal exigem.
Uma luta que é sempre pela liberdade e pela democracia; sempre pela independência e soberania de Portugal; sempre tendo os valores de Abril como referência maior; sempre ao lado dos trabalhadores e do povo – e sempre tendo no horizonte o socialismo e o comunismo.
E a firme determinação de prosseguirmos essa luta o tempo que for necessário, é a melhor homenagem, o melhor tributo à memória do camarada António Ferreira Soares.