Projecto de Lei N.º 243/XII

Medidas para garantir a manutenção da habitação

Medidas para garantir a manutenção da habitação

Preâmbulo

Diz a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 65º, que “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.”

É esse o principal objetivo desta iniciativa: garantir que aqueles cujo acesso à habitação foi feito através do crédito bancário disponham mecanismos que evitem a todo o custo a perda da casa onde vivem com a sua família.

E se esse objetivo deve ser prosseguido em qualquer situação, mais se impõe quando, como agora, está instalada uma grave crise económica e social. De facto, com mais de 1 milhão e 200 mil desempregados – dos quais menos de 300 mil com subsídio de desemprego, milhares de trabalhadores com salários em atraso, muitos outros vendo o seu salário diminuído por força do roubo dos subsídios, do corte das horas extraordinárias e de outras arbitrariedades contra os seus direitos; com milhares de aposentados e reformados com os subsídios igualmente retirados ou sujeitos a baixas reformas; com cortes generalizados nas prestações sociais; com os aumentos sucessivos de bens e serviços essenciais, da educação à saúde, da alimentação à energia, dos combustíveis aos transportes públicos; perante todos estes fatores, é indispensável que se tomem medidas para que à perda de emprego, de salário, de apoio social, de subsídio desemprego, não se some também a perda da habitação.

Em Portugal, segundo o Inquérito à Situação Financeira das Famílias 2010, do Banco de Portugal e do INE, 40% das famílias estão endividadas; 24,5% das famílias tem a habitação principal hipotecada, das quais 84% se situam no escalão abaixo de 45 anos; 80% da dívida total das famílias está garantida por hipoteca da habitação principal; 13,3% das famílias têm um rácio do serviço da dívida no rendimento monetário mensal superior a 40%; na classe mais baixa de rendimentos, a percentagem de famílias que ultrapassam essa fasquia é de cerca de 60%.

Em Março, segundo a Central de Responsabilidades do Crédito do Banco de Portugal, 699.129 particulares estavam com crédito vencido, incluindo quase 150 mil famílias no crédito à habitação (6,1% do total).

Este conjunto de dados demonstram cabalmente o peso do crédito à habitação na situação financeira das famílias portuguesas, em particular nos rendimentos mais baixos.

Esta situação não acontece por acaso. Por um lado ela corresponde aos interesses do setor financeiro; por outro lado corporiza uma política de manutenção de baixos salários cuja valorização é substituída pelo acesso ao crédito.

A banca induziu a generalização do crédito à habitação como forma preferencial de ter casa. O processo acentuou-se a partir da generalização das privatizações neste setor (dai o peso enorme do crédito nas gerações mais novas, que foram a maioria dos que nas últimas duas décadas procuraram aceder a casa própria), em paralelo com o acesso a crédito fácil e barato no exterior. É indissociável da ligação do setor financeiro ao setor imobiliário, bem patente no ritmo brutal de construção de novos fogos, totalmente desfasado das necessidades do país. De 1991 a 2009 foram construídos mais de 1,5 milhões de novos fogos, isto é, em 19 anos construíram-se mais de 25% do total de fogos existentes em Portugal; em 2001 existiam 522 mil fogos devolutos; entre 2001 e 2009 foram construídos 740 mil novos fogos; entre 2001 e 2011 o número de fogos aumentou 16% enquanto as famílias aumentaram apenas 12%, sendo certo que muitas não se autonomizaram em habitação própria; em setembro de 2010 os fogos devolutos ascenderiam a um valor de 100 mil milhões de euros e seriam suficientes para as necessidades do país até ao ano de 2050.

Foi assim que a banca orientou uma parte significativa da sua atividade para o setor imobiliário em detrimento do apoio à atividade produtiva, designadamente de bens transacionáveis. O imobiliário terá hoje um peso de cerca de 50% nas carteiras do setor financeiro.

Por outro lado esta política serviu também de almofada à política de baixos salários e reformas aplicada por sucessivos governos, procurando assim colmatar a falta de melhores rendimentos com a indução do crédito para o investimento em bens essenciais e o consumo, amarrando os trabalhadores e as famílias a compromissos de várias décadas, com um custo final várias vezes superior ao valor do bem adquirido.

Em paralelo esta situação beneficiou da ausência continuada de uma verdadeira política de habitação que, tornando mais acessível o arrendamento, apoiando a construção própria a custos controlados, viabilizando a atividade das cooperativas de habitação, entre outras medidas, pudesse oferecer de facto outras opções para a concretização do direito a este bem essencial.

Ao contrário do que muitas vezes é insinuado ou mesmo afirmado, as famílias portuguesas não recorreram de forma irresponsável ao crédito; não vivem acima das suas possibilidades através do acesso ao crédito. Aliás 80% do crédito às famílias é para habitação. Não é irresponsabilidade querer ter uma casa condigna para viver – é um direito!

As condições em que o setor financeiro concedeu crédito foram e são altamente vantajosas para os seus interesses. Para além da diferença substancial que em geral se verificou entre o custo do financiamento dos bancos no sistema financeiro internacional e o custo imposto às famílias, a verdade é que a banca rodeou os contratos de múltiplas garantias e de diversas cobranças acessórias.

A generalidade dos empréstimos é garantido pela hipoteca da própria casa, acrescida de mecanismos de garantia como seguros de vida, fiadores, entre outros. Por outro lado, num processo em que na prática tudo funciona como um contrato de adesão em que é a instituição financeira que determina o fundamental, são impostas uma série de condições acessórias, designadamente compromissos com outros produtos financeiros, que multiplicam a remuneração da banca. Se a isto somarmos as taxas de juro e spreads praticados, em cada contrato o banco recebe duas ou três vezes o valor emprestado.

A aplicação de medidas que garantam a manutenção da habitação para centenas de milhares de famílias não é por isso um esforço desproporcionado que se impõe à banca; é antes um reequilíbrio das condições de acesso ao crédito e a garantia de um direito fundamental.

Lembre-se ainda que, enquanto trabalhadores, reformados e pequenos empresários vêem sistematicamente aumentadas as suas dificuldades com as brutais medidas aplicadas pelos governos do PS, do PSD e do CDS, a banca continua a aceder a milhares de milhões de euros de dinheiros públicos, através de injeções de capital, avales e garantias, da entrega dos fundos de pensões insuficientemente provisionados, dos ruinosos negócios das PPP e de tantas outras alcavalas.

Garantir a manutenção da habitação para as famílias com crédito, evitando a entrega em massa de casas aos bancos e o despejo dos homens, mulheres e crianças que lá vivem, é uma necessidade social impreterível. Por outro lado, a introdução de medidas que permitam a continuidade dos contratos, mesmo que reduzindo as muito vantajosas condições para a banca, é uma forma de garantir a médio e longo prazo um ressarcimento ainda bastante satisfatório.

De resto, vários são os países que, de uma forma ou de outra, têm vindo a tomar medidas neste sentido. Desde a Espanha que legislou sobre esta matéria há poucos meses, até à Islândia (que por exemplo aplica bonificações em situações de baixos rendimentos, introduziu novos critérios no serviço da dívida e limitou as hipotecas a 110% do valor real do imóvel), vários são os exemplos.

O presente projeto de lei avança assim com várias medidas para a manutenção da habitação própria permanente, que em geral, cumpridos determinados critérios de necessidade, determinam uma decisão que não fique dependente da instituição financeira, o que impossibilitaria em regra a sua aplicação, dado o desequilíbrio da relação contratual, e teria afinal poucos efeitos práticos.

Entre as medidas previstas destacam-se:

- A solicitação da apresentação pela instituição bancária, no prazo de um mês, de um plano de reestruturação de créditos que introduza condições mais vantajosas para o mutuário;
- A possibilidade de aceder a um período de carência até um máximo de 4 anos, que pode ser total durante dois anos;
- A redução dos juros remuneratórios para uma taxa de Euribor mais 0,25% pelo período máximo de 48 meses;
- A possibilidade de perdão parcial da dívida, nos casos em que o empréstimo esteja na sua fase final e em que portanto a remuneração do banco foi já significativa, permitindo a opção por uma de três modalidades;
- A proibição de penhoras, seja por falta de pagamento do IMI, cujos valores estão a ser fortemente aumentados, seja por incumprimento de ouros créditos de valor claramente inferior e que não devem pôr em causa a casa de habitação.

Nos casos em que de nenhuma forma seja mesmo assim possível a manutenção da habitação, a sua entrega deve saldar a dívida que garante por completo, dando-se a possibilidade de o devedor poder tornar-se arrendatário.

Finalmente proíbem-se práticas abusivas das instituições bancárias, como seja a imposição de juros por atraso da prestação desproporcionados (e que aliás dificultam a recuperação da situação), o aumento do spread nas situações de viuvez, divórcio ou similares, ou a alteração de produtos financeiros impostos em conexão com o contrato principal de crédito à habitação.

Capítulo I
Disposições gerais

Artigo 1º
Objeto

A presente lei estabelece medidas tendentes a garantir a manutenção da habitação própria e permanente, adquirida com recurso ao crédito, em situações de carência económica, bem como a prevenir riscos de incumprimento dos contratos de mútuo proibindo a imposição de encargos injustificados.

Definem-se os beneficiários destas medidas como aqueles cujos encargos do crédito correspondam a mais de 50% do rendimento líquido do agregado familiar, ou de 40% nos casos em que existam dependentes, sendo que o valor de aquisição da casa não pode ser superior a 200 mil euros, sejam devedores originários ou fiadores.

Artigo 2º
Âmbito

1- A presente lei aplica-se aos contratos de crédito para compra, construção, conservação ou beneficiação de habitação própria permanente em vigor à data da sua entrada em vigor.

2- As normas incluídas no Capítulo III aplicam-se também aos contratos referidos no número anterior a celebrar após a entrada em vigor da presente lei.

Capítulo II
Medidas para garantir a manutenção da habitação própria e permanente

Artigo 3º
Beneficiários

1- Podem beneficiar das medidas previstas no presente capítulo os mutuários de contratos de crédito para compra, construção, conservação ou beneficiação de habitação própria permanente, garantidos por hipoteca sobre o imóvel, que se encontrem em situação de carência financeira suscetível de pôr em risco a manutenção da casa em que habitam, nos termos dos números seguintes.

2- Para os efeitos da presente lei, considera-se existir uma situação de carência económica quando os encargos do crédito correspondam a mais de 50% do rendimento líquido do agregado familiar, ou de 40% nos casos em que existam dependentes, designadamente causada por desemprego, salários ou outras remunerações significativas em atraso, fim do subsídio de desemprego ou do subsídio social de desemprego, perda do direito a prestações sociais ou outra quebra significativa de rendimento.

3- O valor de aquisição da habitação deve ser igual ou inferior a 200 000 euros.

4- Os fiadores chamados a assumir as obrigações dos mutuários originários que se encontrem nas condições previstas nos números anteriores, podem também beneficiar das medidas previstas no presente capítulo.

Artigo 4º
Reestruturação de créditos

1- A solicitação do mutuário, a instituição de crédito deve apresentar, no prazo de um mês, uma proposta de reestruturação do empréstimo que pode incluir, designadamente:

a) A diminuição do spread, para um máximo de 0,5%, ou da taxa de juro aplicados ao contrato;
b) O alargamento do prazo de duração do empréstimo;
c) Consolidação de outros créditos que impendam sobre o mesmo devedor;
d) Dispensa de outras obrigações associadas ao contrato, designadamente seguros de vida, cartões de crédito e outros produtos financeiros.

2- A aplicação das novas condições propostas depende da aceitação do mutuário.

Artigo 5º
Período de carência

1- O mutuário pode requerer a aplicação de um período de carência no decurso do qual cessa, parcial ou totalmente, o pagamento da prestação mensal.
2- O período de aplicação da carência será no máximo de 48 meses, não podendo a carência total exceder 24 meses.

3- A aplicação de uma das modalidades não impede a opção posterior pela outra, desde que respeitados os prazos máximos previstos no número anterior.

4- A carência parcial será no máximo de 50% da prestação aplicável anteriormente.

5- O mutuário pode retomar a todo o tempo a prestação contratual originária, devendo informar a instituição de crédito com um mês de antecedência.

6- No caso de não ter atingido os limites previstos no n.º 2, pode o mutuário que regresse à situação de carência financeira, recorrer novamente a este mecanismo, pelo período restante.

7- Da aplicação do período de carência não pode resultar a aplicação de comissões ou outros encargos bancários ao mutuário, nem o agravamento das condições originárias do contrato, exceto o prolongamento da duração que lhe corresponda.

8- O prolongamento do contrato por efeito do recurso ao período de carência não releva para os limites máximos legais de duração aplicáveis.

Artigo 6º
Redução de juros

O mutuário pode requerer, pelo período máximo de 48 meses, a redução dos juros remuneratórios para uma taxa de Euribor mais 0,25%.

Artigo 7º
Amortização antecipada

Não pode ser aplicada qualquer penalização à amortização antecipada da dívida, desde que tenham já decorrido 5 anos ou um terço do total da duração do contrato.

Artigo 8º
Perdão parcial da dívida

1- Nos casos em que se esgotem as restantes medidas previstas neste capítulo o mutuário pode requerer o perdão parcial da dívida desde que se verifiquem cumulativamente as seguintes condições:

a) Os encargos do crédito ultrapassem 60% do rendimento líquido do agregado familiar;
b) Tenha sido amortizado um mínimo de 75% do capital ou cumpridas 75% das prestações do contrato;
c) O rendimento anual líquido do agregado familiar seja inferior a 25 000 euros.
2- As instituições de crédito estão nestes casos obrigadas a aceitar o perdão parcial, podendo escolher uma das seguintes opções:

a) Redução de 25% do capital por amortizar;
b) Redução por um valor equivalente à diferença entre o valor do capital já amortizado e o valor correspondente a uma proporção do total capital emprestado igual à proporção entre prestações já pagas face e todas as prestações devidas ao abrigo do contrato;
c) Redução equivalente a metade da diferença existente entre o valor atual do imóvel e o valor que resulte de subtrair ao valor inicial tributário duas vezes a diferença face ao empréstimo concedido.

3- Da aplicação do perdão parcial não pode resultar o agravamento das condições originárias do contrato.

Artigo 9º
Proibição de penhoras

Fica proibida a penhora da habitação própria permanente, nos termos do artigo 3º, sempre que aquela resulte:

a) Do incumprimento das obrigações do Imposto Municipal sobre Imóveis;
b) Do incumprimento de outros créditos de valor inferior a 40% do valor do capital em dívida no empréstimo para a habitação própria permanente nos casos em que a instituição de crédito seja a mesma ou pertença ao mesmo grupo financeiro, ou a 20% desse valor nos restantes casos.

Capítulo III
Inviabilidade de manutenção da habitação

Artigo 10º
Situações de inviabilidade absoluta de manutenção da habitação

1- Nas situações de inviabilidade absoluta de manutenção da habitação, a dação em cumprimento do imóvel objeto do empréstimo liquida a dívida do contrato, bem como todas as garantias adicionais do mutuário ou de terceiros.

2- A aplicação da dação em cumprimento da habitação própria permanente atribui ao mutuário o direito a constituir-se como arrendatário na mesma, devendo a renda anual ser inferior a 2% do total do capital em dívida à data da entrega.

3- Aplica-se aos arrendamentos previstos no número anterior o regime geral do arrendamento urbano, designadamente quanto à duração mínima dos contratos.

4- No prazo da vigência da presente lei o arrendatário em causa tem o direito de voltar a adquirir o imóvel pelo valor do capital em dívida à data da dação em cumprimento.

Capítulo IV
Proibição de encargos abusivos

Artigo 11º
Penalizações por atraso da prestação mensal

As penalizações por atraso de pagamento da prestação, desde que paga durante o mês seguinte, não podem ser superiores a 3% do valor da mesma.

Artigo 12º
Divórcio, separação de facto, viuvez

Nos casos de divórcio, separação de facto ou viuvez em que ambos os membros do casal sejam mutuários, a transferência das responsabilidades para apenas um deles não pode implicar aumento do spread, ou de outros encargos acessórios ao crédito.

Artigo 13º
Não agravamento do spread em razão de obrigações acessórias

A alteração ou cessação de produtos associados ao contrato de crédito para habitação própria e permanente não essenciais ao mesmo, tais como domiciliação de contas, seguros de vida, cartões de crédito ou outros produtos financeiros, não pode implicar o agravamento das condições do contrato principal.

Capítulo V
Disposições finais

Artigo 14º
Fiscalização

Cabe ao Banco de Portugal, no âmbito das suas competências próprias, fiscalizar a aplicação da presente lei, garantindo o acesso dos mutuários às medidas nela previstas.

Artigo 15º
Regulamentação

O Governo regulamentará a presente lei no prazo de 30 dias.

Artigo 16º
Prazo de vigência

A presente lei aplica-se pelo prazo de cinco anos, devendo ser sujeita a avaliação no último ano de aplicação com vista à sua eventual prorrogação.

Artigo 17º
Entrada em vigor

A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.

Assembleia da República, em 1 de Junho de 2012

  • Assuntos e Sectores Sociais
  • Assembleia da República
  • Projectos de Lei