Proposta de Lei nº 88/VII, que "Limita o acesso da iniciativa económica privada a determinadas actividades económicas"
Senhor Presidente, Senhores Membros do Governo, Senhores Deputados,
Permitam que comece por dizer, que há um lapso no título da proposta de lei que estamos a discutir. É que o Governo designou a sua proposta com o título de "Limita o acesso da iniciativa económica privada a determinadas actividades económicas" quando, em boa verdade, deveria ser baptizada de "Impede o sector público de exercer actividades económicas".
De facto a proposta de lei do Governo revoga completamente o que restava da lei de delimitação de sectores que, apesar dos rasgões a que foi submetida, ainda constitue um quadro orientador dos sectores e actividades que, pelo seu interesse nacional e estratégico, devem manter-se no domínio público. É o caso da captação, tratamento e distribuição da água para consumo público; do tratamento de efluentes; do saneamento básico; das comunicações por via postal; das telecomunicações; dos transportes ferroviários ou da exploração de portos; dos recursos do subsolo e da própria indústria de armamento.
Mas agora o PS abre a possibilidade de todos estes sectores e actividades passarem para o domínio privado sob o manto diáfano da concessão ou mesmo da transferência da propriedade pública. O que aliás, coloca a questão da inconstitucionalidade desta lei que aponta claramente para a violação dos princípios fundamentais da organização económica do Estado que impõe, e bem, a existência de um sector público na economia a que esta proposta de lei do Governo põe em causa.
O Governo, perfilhando as mais fundamentalistas teses neo-liberais, já em regressão, aliás, entre os espíritos mais lúcidos da esquerda europeia inquietos com o irracional modelo económico liberal e privatizador que provoca cada vez mais desemprego, injustiças, desigualdades e empobrecimento da própria democracia e sujeitos aos protestos sociais e públicos contra tais políticas, nem sequer adopta algumas medidas de prevenção de salvaguarda do interesse nacional e social que faziam, aliás, parte do património de ideias dos partidos socialistas.
Estou-me a referir ao facto de na proposta de lei nem sequer se prever a obrigatoriedade da existência de um operador público nos sectores ou actividades a liberalizar nem se estabelecerem normas que garantam a obrigatoriedade dos grupos privados cumprirem requisitos de ordem nacional e social. Seria pouco mas nem isso o Governo do PS prevê.
Como, aliás, têm sublinhado comentadores insuspeitos de ideias comunistas o PS vai mais longe do que todas as anteriores políticas de direita e é, neste momento, um dos partidos socialistas mais conservadores e liberais da Europa.
Senhor Presidente, Senhores Deputados,
Esta proposta de lei deve ser lida no quadro da estratégia global de desmantelamento do sector público da economia em que o PS está empenhado em mais duas frentes: a revisão constitucional onde, com o apoio e aplauso de toda a direita, tem vindo a esvaziar os comandos constitucionais que salvaguardam o sector público da economia e garantem uma Constituição equilibrada mas progressista e o processo de privatizações em que o PS se tem empenhado acelerando e aprofundando as orientações que vinham já do PSD. O caso da EDP é, a este propósito paradigmático.
Ao contrário do que o PS e o Governo propagandeiam esta estratégia de privatização do País não tem nada a ver nem com a eficiência da economia nem com preocupações sociais e populares.
A Rodoviária foi privatizada e logo muitas povoações e milhares de portugueses ficaram mais isoladas porque dezenas de carreiras foram suprimidas. Para prepararem a CP, a EDP ou os CTT para a privatização aí estão ramais e postos de atendimento a encerrarem. E onde está a eficiência de uma Siderurgia ou dos Estaleiros de construção e reparação naval?
Quanto às vantagens sociais da privatização aí estão os milhares de despedimentos, as reformas antecipadas ou os acordos de revisão sob coacção que são o pão nosso de cada dia nas empresas a privatizar ou privatizadas. E quando isso não é suficiente o Governo do PS põe logo a imaginação ao serviço dos grandes grupos privados criando, como fez com a Lisnave uma empresa pública (Gestenave) para gerir os trabalhadores de que os Mellos se querem libertar. Isto é para os Mellos vai uma empresa e um território limpas de quaisquer encargos. Mas entretanto o Estado e os contribuintes ficam com os custos financeiros e sociais da operação. Um verdadeiro regabofe.
O que o PS está a fazer - e não quer confessar - é, obviamente, passar para o domínio privado, a rastos de barato, os sectores mais rentáveis da economia e quando estes já não são suficientes entrega também, com esta proposta de lei, as áreas de serviço público. Aliás, na cabeça de alguns destacados socialistas portugueses (como ainda há pouco tempo confessava um alto gestor público) o modelo perfeito parece estar na Nova Zelândia onde já se está a caminho de privatizar o próprio Estado, ou no Reino Unido da Senhora Tatcher onde as privatizações provocaram vagas de despedimentos, de desregulamentação das relações de trabalho e empobrecimento generalizado. E como a vida tem demonstrado o domínio privado não é nem o do "capitalismo popular" nem o do "capitalismo nacional" onde o impulso à criação de novos grupos parecia ser um dos pretextos ideológicos de certos socialistas. O domínio privado é o domínio dos grandes grupos económicos associados a multinacionais; é o da concentração e centralização do capital como acontece, por exemplo, na Banca onde quem emergiu a controlar o sector financeiro foram, no essencial, grupos económicos bem conhecidos dos portugueses: Champalimaud, Mello e Espírito Santo. Quanto aos pequenos investidores aliciados por doses maciças de publicidade o seu destino já há muito está traçado: passado o período da indisponibilidade das acções os grupos financeiros lá estarão a promover operações de especulação bolsista visando a sua compra e o reforço do respectivo domínio sobre as empresas em causa.
A teoria do "capitalismo popular" do PS é o manto diáfano da hipocrisia com que o Governo procura encobrir o processo acelerado de desmantelamento e privatização do sector público e de concentração e centralização do capital.
Neste processo Maastricht também tem o seu papel, sabido como as receitas das privatizações vão contribuir, directa ou indirectamente para o cumprimento dos critérios de convergência nominal.
É um bom exemplo de como tudo se sacrifica a Maastricht e como Maastricht é também, por esta via, um instrumento de reforço, na Comunidade, do domínio dos grandes grupos económicos e multinacionais, um instrumento ao serviço do integrismo neo-liberal.
Senhores Deputados,
Nestes processos nunca ouvimos falar dos custos das privatizações. Os custos para o País e a sua soberania do Estado deixar de ter uma intervenção directa e reguladora em sectores estratégicos da economia e em importantes serviços públicos, que passam a ficar subordinados à lógica exclusiva do máximo lucro privado. Aliás, é curioso sublinhar como o debate da proposta de lei que hoje se segue, de alteração da Lei de Bases das Telecomunicações com vista à privatização da maioria do capital da Telecom, é feito exactamente no momento em que em França é adiada e questionada pelo novo Governo a privatização da France Telecom. Os custos para o País do Estado, no futuro, deixar de contar nas suas receitas com as centenas de milhões de contos de dividendos e de impostos actualmente pagos pelas empresas públicas. Lembremos que só a EDP e a Portugal Telecom, nos últimos três anos, contribuíram com mais de 540 milhões de contos para os cofres do Estado. Claro que, depois, só restará uma solução: o aumento dos impostos dos contribuintes.
Ou os custos para o País das próprias operações de privatização: desde o saneamento financeiro das empresas até às gigantescas campanhas de publicidade, tudo à custa do Orçamento do Estado e de todos nós.
Há dias, Senhores Deputados, tive o exemplo vivo destes custos numa empresa que visitei, a EPAC: vendas de património ao desbarato e encerramento de trabalhadores em várias salas, sem quaisquer tarefas, para coagi-los a aceitarem as rescisões dos contratos porque, como com toda a insensibilidade afirmava o gestor socialista, é preciso sanear a empresa para a tornar apetecível para os privados.
Como vai longe, Senhores Deputados, aquele slogan de que "os portugueses não são números". Bem podia o PS substituí-lo por algo do género "os portugueses: património a privatizar".
E já agora, quando é que o Governo responde ao requerimento do PCP sobre os custos das campanhas de publicidade das privatizações? Mas há mais custos, Senhores Deputados.
São os custos futuros para o País quando, por exemplo, tiver de ser o Estado e as empresas públicas que subsistirem a terem que assegurar a distribuição da correspondência nas zonas e povoações mais isoladas e interiorizadas; a garantir as telecomunicações nas zonas rurais ou os encargos com as infraestruturas de produção e distribuição de energia eléctrica ou do transporte ferroviário. Porque é evidente que os grupos privados que assumirem essas actividades só o irão fazer em condições que lhes assegurem o máximo retorno dos capitais e altas taxas de lucro.
Mas são também os custos sociais para o País dos despedimentos, do desemprego e da diminuição das garantias sociais dos trabalhadores das empresas ou sectores submetidos à lógica das privatizações.
Senhor Presidente, Senhores Deputados,
É isto tudo que está em causa com a proposta de lei do Governo que estamos hoje a discutir.
Mas não se iludam. Porque como se afirma nos mais recentes estudos, "à euforia dos anos que se seguiram às primeiras privatizações, quando as suas consequências sociais e económicas não eram ainda perceptíveis entrou-se agora num período de desconfiança quanto aos benefícios reais que daí advêm para a economia e para os cidadãos". E, no que se refere ao nosso País, os trabalhadores portugueses já estão aí a demonstrar essa "desconfiança". Nos CTT, na EPAC, na EDP, na CP, na construção e reparação naval, na Telecom, na Portucel, na Administração Pública, os trabalhadores sabem o futuro que os espera e por isso bem pode o PS contar com esse facto certo: a luta dos trabalhadores.
Quanto a nós PCP rejeitamos este processo. A alternativa é a defesa de um sistema económico misto, como prevê a Constituição, e onde a economia pública possa manter, por razões nacionais e sociais, um importante papel.
O modelo neo-liberal que o PS perfilha, essa nova mitologia integrista do final do século, será enterrado mais cedo ou mais tarde porque contrário a uma sociedade económica e socialmente equilibrada e justa.