Intervenção de Bernardino Soares na Assembleia de República

Lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas eleitorais

 

Alteração à Lei nº 19/2003, de 20 de Junho (Lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas eleitorais)

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

No início deste debate sobre uma alteração proposta por PS e PSD à lei do financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais (projecto de lei nº 606/X), não podemos deixar de caracterizar esta legislação.

A lei de financiamento dos partidos integrou um pacote legislativo antidemocrático que incluía também a lei dos partidos, aprovado de forma chocante por alturas de mais uma comemoração, em 2003, do aniversário da Revolução.

São duas leis que se traduzem em inaceitáveis ingerências na vida interna dos partidos, procurando manietar e uniformizar formas de funcionamento e organização que são diversas de partido para partido. E que desejavelmente devem continuar a ser e a poder ser diversas, porque é isso que corresponde a um regime democrático que se quer da máxima pluralidade e respeitador da diversidade política e ideológica.

Estas leis dos partidos e do financiamento dos partidos políticos e campanhas eleitorais não estão de acordo com a liberdade de auto-organização que a Constituição atribui aos partidos, como elementos integrantes e fundamentais do nosso sistema político e democrático. Por isso o PCP continua e continuará a lutar pela sua revogação e substituição por legislação que garanta esse regime de liberdade constitucionalmente garantido.

A prática veio confirmar o absurdo de muitas das normas destas leis, em particular aquelas que, de acordo até com alguns dos intervenientes da altura, visavam específica e exclusivamente o PCP. No caso particular da lei do financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais, cuja alteração hoje aqui discutimos, o absurdo legal foi agravado por uma actuação da Entidade das Contas entretanto criada, muito para além das prerrogativas, já de si exageradas, que a lei lhe atribuiu e extravasando em absoluto o papel de organismo coadjuvante do Tribunal Constitucional.

Encaramos à partida o actual processo legislativo com disponibilidade para avaliar as soluções propostas.

É certo que algumas são de meridiana clareza, como a transferência da referência do salário mínimo para o indexante de apoios sociais, com efeitos concretos a partir de 2010, impedindo assim um aumento despropositado de subvenções e limites de despesa em campanhas eleitorais que sempre considerámos e continuamos a considerar demasiado elevadas. Outras soluções há que merecem ponderação na especialidade, para a qual contribuiremos.

Mas não escondemos que para o PCP é fundamental que neste processo se encontre o consenso necessário para alterar pelo menos alguns dos mais graves aspectos da lei em vigor, precisamente aqueles que manifestamente visavam o PCP. É que o PCP, pela sua origem, orientação política e ideológica, é um Partido que financia a sua actividade política fundamentalmente através de receitas próprias, em mais de 80% resultantes da sua actividade política e do contributo militante, enquanto outros partidos assentam no fundamental o seu financiamento na subvenção estatal. Um e outros devem ter direito a ser como entendem ser.

Olhemos por exemplo para dois problemas da actual lei.

Um é o das quotas e contributos de militantes. É que a lei impõe que todas sejam tituladas por cheque ou outro meio bancário, excepto quando sejam inferiores a 25% do salário mínimo nacional (pouco mais de 100€) e num total anual de 50 vezes o valor daquela retribuição. Quanto ao limite individual por quota ou contribuição, nada temos a opor ao valor dentro no qual podem ser entregues em numerário. O absurdo está no limite anual. É que 50 vezes o SMN são pouco mais de 21 mil euros o que significa por exemplo que se 356 militantes pagarem uma quota de 5 €, esse limite já será ultrapassado. E como imaginarão temos no PCP dezenas de milhares de militantes a pagar 1, 2, 5 euros a quem muito dificilmente se pode exigir que paguem por cheque ou transferência bancária, até porque muitos não têm sequer esses meios. Nem pode aliás ser exigido que para se ser militante de um partido se tenha de dispor desses meios.

O que dizemos é que esta norma não pode continuar e que a participação cívica e militante tem de ser livre e não é incompatível com o máximo rigor e transparência na prestação e fiscalização das contas dos partidos. Pela nossa parte estamos disponíveis para contribuir na especialidade para a resolução deste grave entorse à liberdade de associação partidária, inclusive elevando as exigências de prestação de contas de forma a que não haja impedimento a esta importantíssima forma de participação cívica que é a contribuição militante.

Um segundo problema particularmente grave é o que diz respeito às iniciativas de angariação de fundos que envolvem a oferta de bens e serviços, que tinham aliás um regime específico com acordo unânime de todos os partidos, na anterior lei. Aqui se inclui a questão da "Festa do Avante!".

É que não é possível limitar administrativamente a dimensão de uma tal iniciativa. Não é possível determinar por via legal quantas pessoas vão participar na "Festa do Avante!" em cada ano, quantos almoços ou jantares vão consumir, quantos livros, discos, ou peças de artesanato vão comprar. Limitar à partida uma iniciativa deste tipo é absurdo. Como é absurdo exigir que tudo o que é adquirido pelas centenas de milhares de visitantes da "Festa", o seja por por cheque ou transferência bancária, uma vez que as receitas em numerário contam também para o tal limite de 50 salários mínimos anuais. E isto apesar de o PCP ter generalizado os terminais multibanco na maioria dos pavilhões da "Festa do Avante!".

E quando assistimos à tentativa de imposição pela entidade das contas, de um critério de consideração de receitas da "Festa do Avante!", não com base no produto apurado entre receitas e despesas, mas querendo considerar a receita bruta como o montante de financiamento, está tudo dito sobre a iniquidade desta lei e sobre a postura da referida entidade.

Também aqui o que queremos é que uma realização que nada têm de promíscuo, de opaco ou de ilegal, seja possível à face da lei e que não seja tratada como uma qualquer iniciativa clandestina. Mais; queremos que ela seja alvo da máxima fiscalização, como aliás já é, não só a nível financeiro, mas da saúde pública, da ASAE entre outras, aliás com bastante sucesso. Queremos que as suas contas tenham um escrutínio autónomo e específico, sem prejuízo de serem englobadas nas contas gerais do PCP.

O ponto em que estamos em matéria de lei do financiamento é crucial. As decisões que esta Assembleia vai tomar nesta matéria serão uma opção entre uma legislação que promova a liberdade e a militância com a máxima fiscalização e transparência, e uma legislação como a que actualmente existe, que é limitativa das mais elementares formas de participação cívica e política, livre e independente. E todos terão de optar entre uma legislação que deliberadamente gostaria de pôr fim à "Festa do Avante!", e uma legislação que, mantendo e melhorando regras de máxima fiscalização, não seja um entrave à realização da mais importante iniciativa político-cultural do nosso país, visitada anualmente por centenas de portugueses de todos os quadrantes políticos.

É esta questão fundamental que este processo legislativo tem na nossa opinião de dirimir.

Disse.

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