Intervenção de

Lei da paridade - Intervenção de Bernardino Soares na AR

Lei da paridade: estabelece que as listas para a Assembleia
da República, para o Parlamento Europeu e para as autarquias locais são
compostas de modo a assegurar a representação mínima de 33% de cada um
dos sexos (Declaração de voto)

1 — A
participação das mulheres em igualdade, na vida política e cívica,
desempenha um importante e insubstituível papel no progresso do
estatuto das mulheres e uma condição essencial à realização plena da
democracia.

Em Portugal continua a existir um défice de
participação das mulheres nos órgãos de participação política, bem como
em altos cargos governativos, incluindo em cargos de nomeação da
Administração Pública.

Aos partidos políticos cabe um importante papel no
necessário aumento do número de mulheres nas listas eleitorais e em
lugares elegíveis para a Assembleia da República, Parlamento Europeu,
assembleias legislativas regionais e autarquias locais. Esta
responsabilidade deve ser concretizada através de um processo de
auto-regulamentação e no respeito pela liberdade de adopção das medidas
que cada partido político considere mais adequadas.

A lei hoje aprovada pretende reduzir ou centrar no
défice de participação nos centros de decisão política os graves e
persistentes problemas de desigualdade e discriminação, que continuam a
pesar sobre as mulheres, fruto de políticas económicas e sociais de
cariz neoliberal. Pretendem, assim, os apoiantes desta lei esconder a
estreita relação entre a natureza da política de direita em curso e o
défice de participação política, que não é separável do aprofundamento
das discriminações que continuam a pesar sobre as mulheres em todas as
esferas da vida.

Mais do que isso, procuram apresentar esta lei, ela
mesma, como um instrumento de combate às desigualdades, com base na
ideia de que a simples presença de mais mulheres nos órgãos de
participação política seria um passo nesse sentido. Na verdade, o
défice de participação política e cívica das mulheres torna
especialmente visível o facto de o acesso das mulheres aos centros de
decisão estar reservado a certas classes sociais, com reflexo nas
políticas defendidas.

Por isso, e sem pôr em causa a constatação de que as
cidadãs não estão nos órgãos de decisão política, em termos numéricos,
por forma correspondente à sua intervenção política (sendo desejável um
aumento da sua participação nos órgãos de poder), a verdade é que a lei
aprovada não vai realizar a igualdade de oportunidades.

A grande maioria das mulheres vai continuar a estar
privada dessa igualdade, o que, aliás, já acontece com a maioria dos
homens.

Aplica-se, assim, plenamente, a famosa frase de Lampedusa: «É preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma.»

2 — Na verdade, não nos é proposta qualquer medida na área social,
económica e cultural. Sabe-se, no entanto, pelos dados estatísticos,
que continua a agravar-se a situação das mulheres portuguesas. É ver-se
os dados sobre desemprego, sobre pobreza, sobre desigualdade salarial,
sobre a precarização dos vínculos laborais, nomeadamente a precarização
do trabalho das licenciadas.

Ora, a instituição de um sistema de quotas dando a
aparência de uma igualdade irá contribuir para branquear a
cristalização ou, mesmo, o aprofundamento das desigualdades.

3 — De facto, a questão do peso do sexo feminino nos
órgãos de poder é consequência do sistema político capitalista, hoje
neoliberalismo capitalista, que cava as desigualdades, nomeadamente as
desigualdades do sexo feminino, que lhe servem de alimento.

É que este sistema vive da anulação de direitos
sociais, da anulação do papel do Estado. E são as mulheres e os
desiguais que conquistam direitos e a igualdade com as funções sociais
do Estado.

Os factos têm provado que a paridade nada tem a ver
com a igualdade. Veja-se, por exemplo, o caso da Noruega, que tomou
recentemente medidas para promover a igualdade de facto, já que a alta
representação do sexo feminino no Governo, na Presidência da República,
no Parlamento, não assegurou a igualdade.

A paridade, as quotas, partem de uma premissa que a luta das mulheres já tinha afastado do campo ideológico.

A premissa da diferença aplicada a um «grupo homogéneo»: o sexo feminino.

Ouvimos, durante o debate, falar nos genes diferentes das mulheres
(3%), nos diferentes comportamentos das mulheres, de onde resultaria um
olhar político diferente das mulheres.

Foi a diferença que ditou as discriminações das
mulheres, que justificou as leis de segregação racial, como muito bem
anota Simone de Beauvoir.

Periodicamente, surgem-nos, nomeadamente do outro
lado do Atlântico, estudos que dizem que as mulheres pensam e reagem de
uma maneira diferente devido à sua biologia. Ou é porque o fosso entre
as calotes ósseas é diferente nos dois sexos, ou é porque os comandos
dos hemisférios se encontram trocados.

Algumas mulheres são prostitutas porque nasceram com o polegar dos pés mais longo e desarticulado dos outros dedos.

As mulheres estão vocacionadas para as humanidades, e os homens para as
ciências exactas. O que, aliás, é claramente desmentido em Portugal
pela percentagem de mulheres licenciadas em ciências exactas.

A célebre Teoria da Diferença levou uma investigadora
francesa, Catherine Vidal, a escrever um célebre artigo intitulado:
Quando a ideologia invade a biologia.

De facto, o próprio processo biológico a nível do
cérebro indica que são as condições sociais e económicas que mais
influenciam o ser humano. Uma grande parte dos neurónios e das suas
conexões aparecem na adolescência.

Mas se a paridade parte da diferença, ignora, no que
toca às classes sociais, as diferenças de interesses entre as classes
em que se integram os seres humanos que pertencem ao sexo feminino.

E é por isso que as e os paritários falam da forma
especial de fazer política do sexo feminino. Podem dar-se vários
exemplos do contrário: Condoleeza Rice é o supremo expoente de uma
classe de mulheres aliada do poder masculino, ou seja do poder dos
homens que detêm o poder económico.

As ideologias não acabaram, ao contrário da
pressuposição que está na base da paridade. O debate demonstrou
cabalmente que o conceito de género representa, aliás, um regresso à
natureza.

4 — O PS que detém uma fraca percentagem de mulheres
eleitas para as autarquias locais — pouco mais de metade do número de
eleitas pela CDU — alterou a lei eleitoral para a Assembleia da
República e para as autarquias locais, por forma que contraria as suas
afirmações feitas durante o debate.

As propostas aprovadas são igualmente para o PS um
instrumento, quer para disfarçar a gravidade das opções em matéria de
sistema eleitoral que a par delas avançarão — distorcendo o sistema
democrático e empobrecendo a democracia — quer para desviar as atenções
de uma política que continua a agravar a discriminação das mulheres na
sociedade, seja nas relações laborais, na incidência da pobreza, no
acesso à saúde ou em tantas outras vertentes e direitos fundamentais.

5 — Se é verdade que o artigo 109.º da Constituição
da República Portuguesa pode constituir uma credencial constitucional
para um sistema de quotas, se é verdade que a não promoção de quaisquer
medidas com vista à instituição da igualdade de oportunidades constitui
uma inconstitucionalidade por omissão, tudo como refere o Professor
Jorge Miranda, a verdade também é que há um outro modelo de promoção da
igualdade: o modelo da implementação progressiva que foi seguido nos
países nórdicos.

A verdade é que, também como diz o Professor Jorge
Miranda, as quotas, como medida de discriminação positiva, têm de ser
temporárias. O que não é o caso. E têm também de respeitar a proibição
do excesso.

O que também não é o caso.

A
inclusão nas leis eleitorais de normas que novamente impõem regras ao
funcionamento interno e liberdade de decisão e organização dos
partidos, com a sanção de excluir a sua participação em actos
eleitorais, encerra a maior gravidade. O que os partidos que aprovaram
a lei pretendem é alimentar a ideia de que as causas de todos os
problemas, incluindo os défices de participação política das mulheres,
residem no funcionamento interno dos partidos e não no conjunto da
sociedade.

Por isso votámos contra.

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