Intervenção de Miguel Tiago na Assembleia de República, Debate de urgência sobre o «Financiamento do Ensino Superior»

Financiamento do Ensino Superior

Sr. Presidente,

Srs. Deputados:

O ensino superior público tem sido o alvo preferencial dos últimos governos.

Ao subfinanciamento, que se agrava a cada ano, o governo do PSD e do CDS acrescentou o aumento das propinas para mais de duas vezes o salário mínimo nacional e desresponsabilizou, assim, o Estado perante a gratuitidade estabelecida na Constituição da República como garante da democraticidade do acesso e da frequência do ensino.

O actual Governo não só manteve essa política como agravou o subfinanciamento e aplicou o chamado Processo de Bolonha, que diminui a duração e a qualidade da formação superior e encarece brutalmente os seus custos. Simultaneamente, promove uma política de asfixia financeira das instituições de ensino e decreta fortes limitações à sua gestão democrática.

A estratégia de colocar o ensino superior e todo o potencial científico e tecnológico do País ao serviço de interesses meramente conjunturais, mas sempre privados, é cada vez mais flagrante.

A acção social escolar, ao contrário do que o Governo vai anunciando, sofre de carências estruturais. São muitos os que abandonam o ensino superior público por falta de capacidade económica para suportar os gastos com a frequência desse grau de ensino.

As propinas, as refeições, o alojamento, o material escolar e as deslocações são contrapostas por bolsas de valores cada vez mais distantes das exigências financeira que são colocadas aos estudantes do ensino superior.

Muitas cantinas continuam por construir ou carecem de urgentes intervenções, a rede de residências está longe de suprir as necessidades do País e, na maioria das instituições de ensino superior, não existe resposta social para os estudantes deslocados.

Durante a discussão do Orçamento do Estado para 2008, o PCP propôs o reforço da verba para o conjunto das instituições do ensino superior. Seria essa a medida necessária para que as instituições não entrassem em colapso financeiro. A prova de que o PCP estava certo é exactamente o actual comportamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior ao acorrer à pressa a situações de ruptura e pré-ruptura financeira junto de algumas instituições de ensino superior.

Ao invés de ponderar as necessidades objectivas do sistema, de cada instituição, quer no plano do funcionamento, quer no plano do investimento, o Governo responsabiliza as próprias instituições pelas situações de insolvência e de colapso. E quem paga a factura do subfinanciamento é sempre o estudante, agora com propinas absurdas, particularmente no 4.º e 5.º anos de estudo, onde elas aumentaram brutalmente.

O Governo impõe as suas condições a cada instituição, através dos chamados contratos de saneamento financeiro. Aumentos de propinas, despedimentos, não renovação de contratos, não concessão de licenças sabáticas e dispensas de pessoal não docente são algumas das imposições para esses contratos, que o Governo agora lança como uma bóia de salvação para que as instituições não se «afoguem». Mas importa lembrar que foi o próprio Governo quem colocou as instituições na situação actual de incapacidade e de colapso financeiro. Agora, o Governo acena com dinheiro e abre a bolsa na medida directa da submissão a que consegue sujeitar cada instituição.

E que dizer da campanha de propaganda que o Governo lançou em torno da ciência e tecnologia? Se, de facto, existisse uma vontade política de dinamizar o potencial científico e tecnológico do País, seria alguma vez possível fazê-lo sem criar as condições estruturais e estratégicas para um significativo progresso tecnológico? Seria possível fazê-lo sem as universidades e sem os politécnicos? Então, por que motivos os tão falados milhões de euros para ciência e tecnologia não chegam às instituições de ensino superior?

Poderia o Governo decidir remetê-los para os laboratórios do Estado, mas também sabemos que lá não estão.

Pelo contrário, esse segmento do sistema científico e tecnológico debate-se com iguais e tão fortes constrangimentos financeiros.

Este Ministério da Ciência investe apenas nos nichos de interesses a que chama «de excelência», desinvestindo na rede, na capacidade nacional e na ligação à indústria e às reais necessidades do País. Para os projectos apadrinhados pelo Ministério, tudo; para o ensino superior público e para os laboratórios do Estado, nada!

A avaliação das unidades de investigação e desenvolvimento está a ser levada a cabo há dois anos e nem sequer há acompanhamento por parte das universidades sobre essa avaliação; grande parte dos recursos humanos de I&D é constituída por bolseiros de investigação científica, quadros descartáveis e sem direitos; não existe qualquer programa no QREN para o ensino superior público; e a desarticulação entre o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e o Ministério da Economia e da Inovação é cada vez mais óbvia e mais lesiva para o País. E isto demonstra bem que o ensino superior público é apenas uma peça avulsa na cada vez mais frágil e dependente economia portuguesa.

A situação das instituições de ensino superior foi criada intencionalmente pelos sucessivos governos e não é uma fatalidade. Não estamos perante uma situação de má gestão ou de mediocridade, como diz o Sr. Ministro Mariano Gago, estamos perante uma política orientada para o desmantelamento do ensino superior público, das suas capacidades e do seu papel estratégico, visando a sua submissão total ao mercado e aos desígnios dos grandes interesses.

Os cursos superiores deixam de ser uma necessidade estratégica nacional para serem vistos como uma mercadoria e um investimento individual de cada um para a sua própria sobrevivência.

Os institutos politécnicos sentem a política de desresponsabilização do Estado de forma particularmente acentuada. A secundarização deste sub-sistema não foi por este Governo minimamente invertida.

Ao mesmo tempo que o Governo anuncia uma forte aposta no politécnico, diminui o seu financiamento e coloca sobre algumas instituições a sombra do encerramento compulsivo. E se a qualificação do corpo docente, por exemplo, é um requisito para a sua acreditação em 2012 e se os politécnicos são forçados a não renovar contratos com professores para assegurar a sua sobrevivência financeira, terão de aumentar a carga lectiva dos professores restantes, impossibilitando tanto a uns como a outros a necessária qualificação que o próprio Governo impôs.

É que 85% a 90% do corpo docente e mais de 95% dos funcionários não docentes destes institutos têm um vínculo precário às instituições e, com a actual situação de pré-falência, muitos institutos serão forçados a não renovar contratos.

Por isso, 10 000 docentes podem ter os seus postos de trabalho em risco.

Ao contrário do prometido pelo próprio Primeiro-Ministro, as instituições de ensino superior não têm sido envolvidas na definição dos critérios para o próximo Orçamento do Estado.

É urgente que o Governo assuma o ensino superior como uma prioridade e abandone o curso da sua mercantilização, assegurando o seu funcionamento regular e mesmo um investimento que lhe permita desenvolver-se e crescer. Um investimento que não se sustente nas propinas, que se oriente pela gratuitidade progressiva e que coloque o ensino superior público no lugar de destaque que merece e de que a economia portuguesa precisa.

(...)

Sr. Presidente,

Srs. Membros do Governo,

Sr.as e Srs. Deputados:

Uma das muitas coisas que nos distingue, Sr.ª Deputada Odete João e Sr. Ministro, é que, de facto, o Governo e o Partido Socialista, para tentarem provar as suas mensagens, têm de recorrer à fantasia enquanto a nós bastanos descrever a realidade.

Três notas com relevo particular que hoje nos ficam: os empréstimos são a acção social escolar, algo para que o PCP vinha alertando há bastante tempo; as propinas não são para assegurar a qualidade, algo que o PCP sempre denunciou e que, hoje, a Sr.ª Deputada Odete João, rasgando

publicamente a Constituição da República Portuguesa, acaba de assumir; o financiamento no ensino superior público diminuiu, não só em termos absolutos como por estudante, o que ficámos a saber ou, aliás, o que comprovámos com a intervenção do Sr. Deputado Manuel Mota, quando nos disse que o número aumentou de tal forma que, quando comparado com o financiamento que decresceu, só podemos concluir que o financiamento por estudante decaiu ainda mais radicalmente.

Sr. Ministro, há algumas questões que não pode iludir.

A anterior licenciatura tinha uma duração entre quatro e cinco anos e era financiada pelo Estado durante todo esse tempo. A actual licenciatura, assim chamada, o 1.º ciclo de Bolonha, tem uma duração de três anos e apenas estes são financiados pelo Estado. Isto é, objectivamente, uma diminuição do tempo de formação, uma degradação da qualidade e um desinvestimento.

O Sr. Ministro vem dizer que vai financiar os mestrados integrados. Nós sabemos que é até 2009. Mas, depois, Sr. Ministro, veremos quanto custará um mestrado, como os que já agora se vêem a serem «vendidos» por 25 000 € e 30 000 € nas instituições de ensino superior, porque estas últimas não têm outra forma de suprir as suas necessidades e de obter as receitas próprias que o Sr. Ministro tanto anuncia.

Esquece-se é de dizer que essas receitas próprias, na esmagadora maioria, são propinas.

Aqui, Sr. Ministro, impõe-se uma pergunta: como é que pode dizer sistematicamente às instituições de ensino superior público que não há dinheiro, que é preciso proceder a cortes orçamentais na ordem dos 15% acumulados quando, depois, tem tanto dinheiro? Aliás, já agora, até lhe pedia que nos dissesse a soma das verbas que foram afectas a instituições universitárias privadas nos Estados Unidos da América, que este Ministério anuncia como se fosse o supra-sumo do desenvolvimento tecnológico.

Sr. Ministro, porque é que no QREN não há um programa específico para o ensino superior público? O programa de que falou é certamente o do desenvolvimento territorial que está a obrigar as instituições a fazerem manobras que não deveriam ter de fazer, isto é, candidatarem-se a fundos que não estão especificamente previstos para os programas no âmbito do ensino superior público. Repito, pois: por que é que, no âmbito do QREN e do investimento comunitário, não há um programa específico para o ensino superior público, seja universitário ou politécnico?

Sr. Ministro, uma última pergunta. O que aconteceu ao compromisso, assumido pelo Primeiro-Ministro em Janeiro deste ano, de envolvimento de todas as instituições na definição dos critérios para o Orçamento do Estado para 2009 e, nomeadamente, para o Fundo Concorrencial anunciado pelo Primeiro-Ministro?

É que, assim, resulta claro que, em Janeiro, quando se comprometeram em que, até Março, tudo isto estaria feito, apenas estavam a pôr «paninhos quentes» para acalmar a situação que já nessa altura se vivia no ensino superior e que, agora, se agravou a tal ponto que o Ministro tem de andar por aí, com cartas de chantagem, a socorrer as instituições.

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