Intervenção de Miguel Tiago na Assembleia de República

Estatuto da Carreira Docente

Declaração política tecendo considerações sobre a negociação do Estatuto da Carreira Docente Sr.ª Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: O sorriso aparentemente simpático da Sr.ª Ministra da Educação é afinal o sorriso matreiro de quem aguarda o adversário numa esquina, para preparar, de surpresa, sobre ele, uma emboscada. Passados dois meses e meio sobre o início das negociações, dois meses de continuação da instabilidade e da incerteza nas escolas, de confusão entre sistemas de avaliação de desempenho docente, de sobrecarga de professores e órgãos de direcção das escolas, o Governo apresenta aos sindicatos um documento - a que chama versão final do Estatuto da Carreira Docente - no qual insere ataques absolutamente inaceitáveis à dignidade da carreira docente. Durante dois meses e meio, o Governo fez criar a ideia de que estaria, de facto, a negociar, no âmbito do mandato que lhe foi atribuído pela Assembleia da República, através até de um projecto de resolução, para que, passados todos os prazos, à margem de todo o processo negocial, viesse a quebrar os compromissos assumidos com os parceiros e com a própria Assembleia da República. É certo que, desde logo, o PCP denunciou o conteúdo vago dessa resolução e o recuo político do PSD. Desde logo, afirmámos, sem dúvidas, que a única forma de criar condições para a resolução dos problemas criados pelo anterior Governo, na carreira docente e nas escolas, seria a da suspensão da vigência do sistema de avaliação de desempenho. A realidade veio, uma vez mais, a dar razão ao PCP: as escolas vivem um clima de confusão, duplicando esforços administrativos e o processo negocial não deu resposta a significativas reivindicações dos professores, reivindicações, essas, que constituíram motivos fundamentais para a justa e grande luta dos professores portugueses. Os horários, a prova de ingresso, a transição entre modelos, o modelo de gestão autocrático e antidemocrático, a distribuição insuportável da componente lectiva e não-lectiva, a aplicação do regime de avaliação «Simplex», a não integração na carreira de professores contratados e, agora, a reviravolta e a peripécia do Governo ao introduzir novos constrangimentos no Estatuto, já depois de ter terminado o processo negocial com as estruturas sindicais, revelam, no mínimo, má-fé na forma como foi gerida a negociação por parte do Governo. O Governo prolongou por dois meses e meio a dúvida, negociou um conjunto de aspectos e, efectivamente, pôs fim à divisão hierárquica da carreira. Mas a que custo, Srs. Deputados?! Será que o Governo teria conseguido a assinatura de um acordo de princípios com os sindicatos se tivesse revelado a totalidade da sua estratégia?! Na verdade, a apresentação de um diploma que contém disposições que não chegaram em momento algum a ser negociadas vem pôr, objectivamente, em causa o carácter especial da carreira docente. À margem do processo negocial, revelando ausência de rectidão e frontalidade, o Governo, num acto de ataque à escola pública, vem pôr fim aos mecanismos de mobilidade docente, acabar definitivamente com os quadros e aplicar normas de precarização e desvalorização da carreira. Permitiu avanços na regulamentação da carreira - é certo! -, mas tudo fará agora para que ninguém lhes aceda! O que o PCP, hoje, aqui vem dizer é muito claro: a ausência de ética negocial, o ataque à escola pública e a política educativa de direita não podem esconder-se por detrás de caras novas, para manter no essencial a mesma política. Dizemos que os problemas com que se confrontaram os professores e as escolas não se prendiam apenas com a postura mais ou menos simpática do anterior Ministério mas com a orientação política de ataque aos direitos de todos os trabalhadores, nomeada e particularmente os da função pública. O PCP denunciou o projecto quase escondido do Governo do PS para pôr fim aos processos de recrutamento por concurso nacional com base em lista graduada e o Governo vem, na fase final de uma negociação sindical, dar um grande passo nesse mesmo sentido: finge negociar, mantém o essencial na mesma e não tem, sequer, a coragem política de o assumir perante os parceiros. O comportamento do Governo foi de tal ordem manipulador e cínico que apenas divulgou o documento final após a passagem de todos os prazos, nomeadamente do prazo para a requisição do período suplementar de negociação. Isto é vontade de dialogar, Srs. Deputados? Não, não é! Isto é afronta! O projecto de resolução do PSD veio a revelar-se o instrumento de que o Governo precisava para ganhar tempo e enganar os portugueses, em particular os professores, assim mantendo a sua linha de ataque político à sua dignidade profissional e à qualidade da escola pública. O Governo e o Ministério da Educação, com o apadrinhamento do PSD, mantêm a sua intransigência, agora disfarçada com uma cara diferente. Aparentemente diferentes, Maria de Lurdes Rodrigues e Isabel Alçada são, afinal de contas, «as gémeas na aventura contra a escola pública». São «gémeas», pesem as diferenças de estilo, no objectivo central de manipular as estatísticas, no objectivo de privatizar as escolas e de fragilizar a posição profissional dos professores. Se se vier a verificar o conteúdo dos documentos anunciados pelo Governo aos sindicatos, estaremos perante novos motivos para que os professores tornem a adoptar a posição de combate e de luta contra essas medidas. O PCP já propôs um novo regime de gestão escolar, para repor e aprofundar a democracia nas escolas; já propôs alterações ao regime de concursos que o Governo agora, pura simplesmente, vem liquidar; já propôs o fim das quotas na avaliação e o descongelamento das carreiras para fins de progressão. As imposições agora apresentadas pelo Ministério da Educação só merecerão, da parte do PCP, o redobrar dos esforços, aqui, na Assembleia da República, mas também fora dela, e poderão os professores contar, como sempre, com esta força coerente e comprometida, não comprometida com a agenda mediática mas com a luta em defesa de uma escola pública, gratuita, democrática e de qualidade para todos. E desde já afirmamos que a Sr.ª Ministra da Educação terá de prestar cabais esclarecimentos a esta Assembleia já na próxima reunião agendada, na Comissão de Educação e Ciência, sobre esta matéria. O Governo quebrou a confiança nesta negociação. Caberá à luta e ao protesto, mas também a esta Assembleia, de uma vez, não permitir mais traições aos professores! (...) Sr.ª Presidente, Sr.ª Deputada Ana Drago, De facto, fomos surpreendidos com a forma como o Governo permitiu ou planificou um processo negocial, demonstrando uma táctica intocável mas, do ponto de vista ético, absolutamente condenável. O Governo tentou fazer-nos crer, a todos, não foi apenas aos professores, que estava, efectivamente, disponível para negociar. E, hoje e ontem, na Comissão de Educação, ouvimos diversas estruturas sindicais dizerem que, por momentos, confiaram e pensaram que, de facto, existia disponibilidade para negociar. O Governo planificou essa ilusão de tal forma ao pormenor que só passados todos os prazos de negociação apresentou um documento repleto de disposições que nunca tinham estado em cima da mesa negocial com os seus parceiros, neste caso, os sindicatos. Isto revela uma ausência de carácter tal que roça o inqualificável! Portanto, fomos, de facto, surpreendidos na forma, Sr.ª Deputada, mas deixe-me dizer-lhe que talvez não tanto no conteúdo. É porque o PCP depositou poucas esperanças na alteração da figura da Sr.ª Ministra e nos sorrisos ou na maior simpatia. Para nós, era claro que a orientação política deste Governo continuava a ser a do desmembramento da escola pública e do ataque aos professores, estava apenas em causa se os professores conseguiriam conter esse ataque ou se o Governo conseguiria levar a cabo a sua estratégia. Sr.ª Deputada Ana Drago, deixo uma resposta concreta à sua questão: é óbvio que o PCP tudo fará, como no passado, incluindo a apreciação parlamentar dos diplomas - aliás, já o manifestámos junto das estruturas sindicais -, para que esta Assembleia não deixe que lhe escape, outra vez, por entre os dedos, a solução deste problema. O PSD garantiu ao Governo o espaço de que veio a precisar para enganar os professores, mas esta Assembleia não pode dar-se ao luxo de permitir que a solução lhe escape, outra vez, por entre os dedos. O PCP estará do lado dos que apertam a malha, não estará do lado dos que recuam nos compromissos. (...) Sr.ª Presidente, Sr. Deputado José Manuel Rodrigues, Antes de lhe responder, permita-me que faça também algumas considerações sobre as suas declarações iniciais. É um facto que este Governo tem dirigido uma política educativa que visa, no essencial, a manipulação estatística para satisfazer determinados objectivos políticos, e quer fazê-lo à custa dos professores. Mas não partilhamos da ideia, pelo menos da forma simplista como a tentou colocar, de que isso se faz à custa do laxismo para o estudante. Se é verdade que falta um normativo transparente e claro, no que toca ao Estatuto do Aluno, não é menos verdade que falta um conjunto de iniciativas públicas junto da escola, para garantir que a escola consegue assegurar a sua missão relativamente aos estudantes e que é promover o seu sucesso escolar e a sua integração, quer social quer do ponto de vista do trabalho. Por isso mesmo, não entendemos que haja para os professores um aperto muito forte e para os estudantes uma grande folga; há é uma tentativa de atacar os direitos de todos, porque de certa forma também os direitos dos estudantes são defraudados, sendo igualmente os estudantes atacados por esta política, mais que não fosse por lhes estar a ser negado o direito ao conhecimento, o qual incumbe ao Estado garantir. Sobre as questões que colocou, tenho a dizer-lhe que, de facto, há uma traição - e eu disse-o dali - a esta Assembleia da República, porque, muito embora o projecto de resolução do PSD fosse vago, ele partia de um conjunto de pressupostos que todos sabemos que foram ludibriados pelo Governo. Muito embora ele tivesse e criasse brechas, sabemos bem que o Governo se aproveitou delas e as abriu com toda a sua força. Portanto, há de certa forma uma traição ao espírito da resolução que a Assembleia aqui permitiu, com a abstenção de alguns partidos, que fosse aprovada. Mas também não nos enganemos: existiam projectos de resolução em discussão nesta Assembleia, nomeadamente o do PCP, que não teriam permitido esta jogada por parte do Ministério. Dizia eu que esses projectos de resolução não teriam permitido esta fuga por parte do Ministério nem esta manobra de engano junto dos professores. Que avaliação vamos ter? Ora, aí está uma pergunta com que certamente todos os dias os professores, os órgãos de gestão e os directores se confrontam nas escolas, enquanto andam a aplicar o «Simplex» a uns e a ver já que daqui a poucos meses terão de preparar um novo calendário de avaliação para outros, entretanto, ninguém sabe de coisa nenhuma, e os efeitos disto sentir-se-ão na carreira dos professores. (...) Sr.ª Presidente, Sr.ª Deputada Paula Barros, Vou tentar manter alguma seriedade na minha intervenção, mas confesso que será difícil depois de ter sido torpedeado por tanta demagogia - é a palavra que o Sr. Deputado Bruno Dias me fornece neste momento. A Sr.ª Deputada não percebe uma coisa: quem está a pôr os professores na rua não é o PCP, são o PS e o seu Governo que sistematicamente os atacam. E põem-nos na rua de duas maneiras: porque põem-nos fora da carreira, fora do sistema e porque mantêm a precariedade, pois não os contratam. Ainda ontem ficámos a saber que no quadro dos professores por cada 36 que saem entra 1. Bem, é uma frente de ensaio para as políticas deste Governo de «saem 3, entra 1»...! A Sr.ª Deputada tem de perceber que o que põe os professores na rua, seja no «olho da rua» seja na rua a lutar, são as políticas que este Governo tem dirigido contra a escola pública e que obviamente provocam junto dos professores o maior repúdio pela forma como o Governo trata a escola. A Sr.ª Deputada invocou a verdade dos factos. Eu teria muita dificuldade em fazê-lo estando no seu papel; teria muita dificuldade em conseguir manipular a realidade dessa forma, porque escondeu que o acordo de princípios incidia sobre três aspectos e que, dando resposta a esses três aspectos, o Governo mexeu num conjunto de outros de que nunca falou, tendo escondido até ao último momento que iria mexer neles. A grande questão que se coloca para termos a plenitude da verdade dos factos é a seguinte: será que o Governo e os sindicatos conseguiriam assinar um acordo de princípios se se soubesse à partida que aqueles três itens não eram os únicos em cima da Mesa, que o Governo ia acabar com os concursos de professores, ia acabar com os quadros e criar mapas e ia acabar com a mobilidade dos professores?! Será que teria conseguido esse acordo? Portanto, o Governo usou má fé na forma como negociou, porque colocou apenas três itens em cima da mesa para negociar e na verdade trouxe mais uma catadupa de outros, os quais nunca teve sequer a dignidade de dizer aos professores que estavam em cima da mesa para negociação. Sr.ª Deputada, deixo-lhe uma última nota sobre a verdade dos factos. A Sr.ª Deputada não sabe, ou finge não saber, que os processos negociais em Portugal também são regulamentados por lei e que há calendários de negociação! A negociação terminou, Sr.ª Deputada! Uma carta ou um e-mail do Ministério a dizer aos sindicatos que no dia 24 se juntam todos lá para trocarem opiniões não é negociação sindical, não é negociação laboral! A negociação laboral tem um calendário definido pelo Governo, o qual foi discutido pelos sindicatos, cumprido e terminou, e no fim desse calendário o Governo traiu a negociação! (...) Sr.ª Presidente, Sr.ª Deputada Vânia Jesus, Se o PSD tentou criar condições para resolver o problema dos professores ou o problema do Governo é uma dúvida que persistirá para sempre, porque aquilo que hoje temos de palpável prova que foi mais prestável ao Governo do que aos professores. E não foi por falta de aviso, Sr.ª Deputada. Não estamos, obviamente, a reduzir a zero a importância da resolução da Assembleia da República - aliás, porque é ela que mandata o Governo para fazer a negociação. Mas todos os partidos desta Assembleia deixaram bem claro que havia formas de limitar a negociação, curiosamente com excepção daquele que conseguiu aprovar, até com a complacência do PS, o projecto de resolução. E estão à vista os resultados quer queiramos quer não. Agora, poderá o PSD dizer: «Ah, mas não era essa a nossa intenção.». E é bom que o diga, para que se perceba o grau de traição e de quebra de confiança entre o Governo e a Assembleia da República. Sr.ª Deputada, a verdade é que desde o primeiro momento dissemos - e não fomos o único partido a afirmá-lo - que o vosso projecto de resolução deixava espaço ao Governo para conseguir prolongar e manipular a negociação. O PSD persistiu, o PS e os restantes partidos viabilizaram-no, mas viabilizaram-no por motivos distintos. Percebemos muito bem quais foram os motivos na intervenção da Sr.ª Deputada do Partido Socialista, pois agora veio valorizar o projecto de resolução. Obviamente, porque hoje está claro que para o Governo e para o Partido Socialista esse projecto de resolução foi a salvação. E também está claro que para a oposição foi o mal menor, porque naquele dia o PSD impossibilitou uma solução de compromisso que resolvesse de facto os problemas dos professores. Responsabilizamos ambos os partidos, é verdade, mas responsabilizamos de forma diferenciada, Sr.ª Deputada. O Governo tem responsabilidades, porque conduz o processo e apresenta à última da hora um projecto que nada tem a ver com a negociação feita até então. A Sr.ª Deputada disse na sua intervenção que se abriu um novo processo de negociação. Já agora, sei que não poderá responder-me, mas deixo-lhe uma pergunta. Não temos nenhuma prova de que está aberto um novo processo negocial. Há uma reunião agendada para dia 24 de Março, via e-mail, junto das estruturas sindicais, a qual tanto pode ser para abrir um novo processo negocial, que pode durar outros três meses, como para juntar todos os sindicatos e dizer «aqui está a versão final do documento». O que sabemos é que, para haver um processo negocial, ele tem de ser calendarizado e o calendário tem de ser discutido com os sindicatos, o que até agora não foi feito. Sr.ª Deputada, qualquer dos desfechos é grave, porque se houver um novo processo negocial significa que o Governo está a fazer tudo para dilatar o processo e não resolver o problema nas escolas, enquanto continua a pender sobre os professores o regime que o seu partido não quis suspender. E, se não for um processo negocial, é pior ainda, porque vai impor, desde já uma nova legislação aos professores com quem não negociou.

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