I
Num mundo onde se tenha acabado a esperança, como o retratou Saramago no seu “Ensaio sobre a cegueira”, deixamos de olhar para o futuro, deixamos de o ver. “A cegueira também é isto”, dizia. Recordando Castrim, “esperança: é a maneira como o futuro fala ao nosso ouvido”. Num tempo em que tantos não veem nem ouvem o futuro falar-lhes ao ouvido, mais necessário se torna saber organizar e abrir esse futuro. Transformar inquietação em luta, converter o desassossego em confiança. Confiança num futuro construído à medida dos sonhos e projectos a que temos direito e de que não queremos desistir. De que não vamos desistir.
A candidatura que assumo, e hoje aqui apresento, a Presidente da República é e será um espaço de luta comum – da juventude, dos trabalhadores, do povo. É minha e é vossa. É nossa. Assumo-a com honra, com determinação, com a consciência da responsabilidade e do dever. É uma candidatura a um órgão de soberania unipessoal, apoiada num grande, generoso e combativo colectivo, o Partido Comunista Português. O meu Partido, a quem agradeço a confiança demonstrada.
Nesta eleição dirijo-me a todos e a cada um, independentemente das escolhas eleitorais que fizeram no passado. A todos apelo:
Aos que vivem do seu trabalho, e que sentem que, com o seu empenhado esforço, poderiam viver melhor, se fosse outra, mais justa, a repartição da riqueza que criam.
Às mulheres, penalizadas por múltiplas desigualdades, discriminações e violências, no trabalho, na família e na sociedade.
Aos jovens, que não abdicam do direito a serem felizes.
Aos reformados e idosos, que aspiram a uma vivência gratificante no plano pessoal e social depois de uma vida de trabalho.
Esta candidatura apela à força que há em todos, em cada um de nós. Assumam-na como vossa. Confiem-lhe, mais do que o vosso apoio, a vossa energia criadora, transformadora. Façamos desta candidatura parte da luta pela mudança que desejamos para as nossas vidas, da mudança que Portugal precisa.
II
Em Portugal e no mundo, vivemos um tempo invulgar, complexo e exigente.
A irrupção da Covid-19, além de nos confrontar com questões novas, agravou consideravelmente velhos problemas.
Os efeitos da pandemia são inseparáveis da formação socioeconómica em que se produzem. No capitalismo, que tudo mercantiliza, incluindo a saúde e a doença, milhões de seres humanos são empurrados para uma situação de vulnerabilidade extrema.
As dificuldades são instrumentalizadas para atacar direitos e impor retrocessos. Aí temos, em tantos lados, o crescimento do desemprego a ser usado como chantagem para aumentar a exploração, a precariedade laboral, o ataque aos salários, a desregulação dos horários, o incremento dos ritmos e a degradação das condições de trabalho, o aumento da idade de reforma, o desinvestimento nos serviços públicos.
O medo é exacerbado e manipulado para restringir direitos e liberdades. A pretexto do combate ao vírus e da garantia de uma alegada “segurança”, impuseram-nos estados de emergência que nada tinham a ver com a observância de normas que a população já cumpria (e continuou a cumprir depois de abandonados), mas que visavam restringir o protesto e a luta, contra os abusos, os aproveitamentos, o oportunismo dos que querem continuar a enriquecer à custa da exploração dos trabalhadores e do saque dos recursos do Estado.
A crise aumenta a violência do sistema. Instigam-se divisões e conflitos no seio da população, voltando trabalhadores contra trabalhadores, cidadãos contra cidadãos. O racismo, a xenofobia, a extrema-direita e o fascismo são normalizados e mesmo abertamente promovidos, a partir de alguns dos principais centros de poder económico e seus prolongamentos políticos e mediáticos.
A forma dominante de organização da economia e da sociedade confronta-se com os limites dos recursos do Planeta, agride a Natureza e ameaça os equilíbrios ecológicos.
III
Portugal carrega sérios problemas estruturais, consequência de décadas de política de direita, que a situação actual expõe com grande nitidez.
É a desvalorização do trabalho e dos trabalhadores, dos seus salários e dos seus direitos.
São as acentuadas desigualdades na distribuição da riqueza, em particular na distribuição do rendimento nacional entre capital e trabalho.
É a prolongada fragilização dos sectores produtivos nacionais; os persistentes défices alimentar, energético, tecnológico e demográfico; o desaproveitamento de amplas potencialidades e recursos do País.
É o continuado desinvestimento nas funções sociais do Estado, em confronto aberto com a Constituição que as determina. A falta de investimento no Serviço Nacional de Saúde e o desvio de recursos públicos para sustentar os grupos económicos privados que lucram com a doença; a falta de investimento na escola pública, em todos os graus de ensino, que é tão visível neste regresso às aulas marcado por compreensíveis preocupações.
É a desvalorização da cultura, da ciência, das artes, do património, do conhecimento e do saber no desenvolvimento integral do ser humano e da sociedade.
São os crescentes desequilíbrios territoriais, o abandono à sua sorte de extensas regiões do País e das populações que resistem e insistem em habitá-las e lhes dar vida.
É a promiscuidade entre o poder político e o poder económico, que alimenta a corrupção e coloca os instrumentos do poder político ao serviço de uma minoria privilegiada.
São os problemas da justiça, a desvalorização da segurança dos cidadãos e a perversão da missão constitucional das Forças Armadas.
É a submissão do País a políticas e decisões da União Europeia contrárias ao interesse nacional, determinadas pelos interesses das principais potências europeias, agravando desigualdades e assimetrias, promovendo a divergência, em lugar da prometida convergência, económica e social.
IV
Vivemos, há demasiado tempo, num conflito entre o carácter progressista e avançado do regime democrático constitucionalmente consagrado e a acção deliberada de sucessivos governos com vista à sua amputação e desfiguramento. Perante a cumplicidade dos que, nas mais altas funções do Estado, juraram defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição; na verdade violando, tantas vezes de forma ostensiva, esse juramento.
O problema não é, nunca foi, esse carácter progressista e avançado do regime democrático que emergiu da Revolução de Abril. O problema é, e tem sido sempre, a acção e omissão de governos e Presidentes da República, incluindo os actuais, convergindo no bloqueio da plena concretização do projecto vertido no texto constitucional.
Um projecto que considera inseparáveis as vertentes política, económica, social e cultural da democracia, aliadas aos desígnios da soberania e independência nacionais.
Um projecto que inscreve os direitos dos trabalhadores como intrínsecos à democracia; que reconhece às mulheres o direito à igualdade no trabalho, na família e na sociedade; que consagra importantes direitos das crianças e dos jovens, dos reformados, dos cidadãos com deficiência; que proíbe as discriminações, as exclusões e combate as injustiças sociais; que reclama para os milhões dos nossos emigrantes, bem como as centenas de milhar de imigrantes no nosso País, o acolhimento e a dignidade devida a todo o ser humano. Que consagra o direito de resistência à ofensa dos direitos, das liberdades e das garantias dos cidadãos; que protege o exercício da actividade sindical e política, o activismo social.
Um projecto que preconiza a subordinação do poder económico ao poder político.
É este projecto que urge defender e concretizar!
Esta minha e vossa – esta nossa – candidatura assume, sem rodeios, esse objectivo fundamental. Defender, aprofundar e ampliar o regime democrático consagrado na Constituição. Fortalecer as suas raízes na sociedade portuguesa.
Esta é uma questão central do tempo que vivemos. Também por isto a próxima eleição do Presidente da República se reveste de óbvia importância.
É notório que o actual Presidente da República está empenhado numa rearrumação de forças políticas, assente no branqueamento da política de direita e dos seus executores, promovendo a sua reabilitação, na forma da chamada política de “bloco central”, formal ou informalmente assumida, que marcou o País nas últimas décadas.
Um Presidente da República verdadeiramente comprometido com o juramento que faz – de defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição – não pode deixar, no âmbito das suas competências e responsabilidades, de mobilizar o povo português na construção de um outro caminho de desenvolvimento.
Um Presidente da República verdadeiramente comprometido com o juramento que faz está necessariamente comprometido com os interesses dos trabalhadores, das mulheres, dos jovens, dos reformados e idosos, das pessoas com deficiência, dos discriminados, dos desprotegidos, dos pequenos e médios empresários, dos pequenos produtores. Em suma, comprometido com os interesses do povo e não com os interesses dos grandes grupos económicos e financeiros que têm determinado, nos aspectos estruturais, o rumo do País.
Não há diversões mediáticas que iludam as escolhas feitas, neste domínio, pelo actual Presidente.
V
Esta candidatura que assumo afirma, sem hesitações, que há um outro rumo e uma outra política capazes de responder aos problemas do País.
Uma afirmação alicerçada na certeza de que o nosso povo tem a força bastante para encetar esse novo caminho. Esta candidatura é também uma manifestação de confiança no povo português. Confiança na mobilização de energias e vontades de quantos aspiram e acreditam que é possível uma vida melhor e mais justa. Podem encontrar nesta candidatura um espaço de convergência.
Aqui, cada um acrescentará força à força que se ergue em defesa da valorização do trabalho e dos trabalhadores.
O direito ao trabalho; o pleno emprego; o emprego com direitos; o aumento dos salários, particularmente do Salário Mínimo Nacional; a formação e valorização profissional, técnica e cultural dos trabalhadores; a prestação do trabalho em condições de higiene e segurança; o direito ao repouso e ao lazer – não podem ser apenas palavras inscritas nas páginas da Constituição, têm de ser realidade concreta na vida dos trabalhadores, acompanhar o desenvolvimento das forças produtivas, do custo de vida, dos padrões recomendados de bem-estar social.
Aqui, nesta candidatura, cada um acrescentará força à força que se ergue em defesa do direito à saúde; à habitação; à educação; à cultura.
A garantia de acesso de todos os cidadãos aos cuidados de saúde, independentemente da sua condição económica; a protecção específica da infância, da juventude e da velhice, dos cidadãos com deficiência; o direito de acesso à habitação e a existência de rendas compatíveis com o rendimento das famílias; a democratização do ensino e a igualdade de oportunidades no acesso e êxito escolar; a democratização da cultura e o acesso de todos à fruição e criação cultural, a defesa do património cultural – não podem ser apenas palavras inscritas nas páginas da Constituição, nem privilégio de uma minoria, tem de ser realidade concreta na vida de todos os portugueses.
Aqui, cada um acrescentará força à força que se ergue na luta pela igualdade, contra todas as discriminações, num País que acolhe, aberto ao mundo.
Ninguém deve ser beneficiado ou prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão do sexo, da cor de pele, da religião, das convicções políticas, da situação económica, da condição social ou da orientação sexual. A igualdade não pode ser apenas uma palavra inscrita nas páginas da Constituição, tem de ser realidade vivida no dia a dia de todos, todos os dias.
Aqui, cada um acrescentará força à força que se ergue em defesa do desenvolvimento económico do País, garante da efectivação dos direitos e do bem-estar social.
A coesão de todo o território nacional, com a eliminação progressiva das desigualdades económicas e sociais; a plena utilização das forças produtivas e a propriedade pública de meios de produção, de acordo com o interesse colectivo; o aumento da produção agrícola e industrial; o estímulo ao associativismo e à propriedade cooperativa e comunitária; o reforço da inovação científica e tecnológica – não podem ser apenas palavras inscritas nas páginas da Constituição, tem de ser a realidade concreta no País.
Aqui, cada um acrescentará força à força que se ergue em defesa do ambiente, da protecção dos ecossistemas e da biodiversidade.
A prevenção e controlo da poluição, em todas as suas formas, com especial atenção sobre as implicações nas alterações climáticas; o aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação – não podem ser apenas palavras nas páginas da Constituição, têm de ser uma realidade no nosso País.
Aqui, cada um acrescentará força à força que se ergue em defesa do regime democrático, de uma administração e serviços públicos eficientes próximos das populações, de uma justiça desburocratizada e acessível ao serviço do povo, do combate decidido à corrupção.
Aqui, cada um acrescentará força à força que se ergue em defesa da soberania e independência nacionais, que rejeita a submissão do País a imposições contrárias aos seus interesses, que pugna pela solução pacífica dos conflitos internacionais e pela cooperação com todos os povos para a emancipação e o progresso da Humanidade, conforme preconiza a Constituição da República Portuguesa.
Se houve e há quem queira fazer de tudo isto letra morta nas páginas da Constituição, é tempo de dizermos que tudo isto tem de ser mesmo realidade na vida de todos nós.
VI
O Presidente da República não é governo. Mas pode e deve actuar, no quadro das funções que lhe estão atribuídas, usando os seus poderes para impulsionar um sentido de mudança, de desenvolvimento, de progresso e justiça social, no curso da vida nacional.
O Presidente da República não se pode resignar perante um País com o futuro comprometido e sem esperança. Não se pode resignar perante o desaproveitamento das enormes potencialidades existentes no País, desde logo na sua população, também no seu território terrestre e marítimo. Portugal pode ser mais desenvolvido, mais justo e soberano.
Esta candidatura apresenta e protagoniza uma alternativa para o exercício das funções de Presidente da República. Tal como uma parte grande da população portuguesa, nasci depois de 1974. Tal não impediu que o impulso de Abril e a actualidade dos seus valores se projectasse em todas as lutas que travei, em todas as frentes em que intervenho. Esta candidatura projecta os valores de Abril no presente e no futuro de Portugal.
O Presidente da República representa a República Portuguesa, garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas. É, por inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas.
Quando se refere o Presidente da República, retêm-se em geral os importantes poderes que lhe permitem demitir o governo e dissolver a Assembleia da República. Mas esta é apenas uma parte das competências que lhe estão atribuídas.
Do direito de veto de legislação ao recurso ao Tribunal Constitucional para apreciação da constitucionalidade de leis; do direito de enviar mensagens à Assembleia da República e da sua convocação extraordinária, ao peso das suas tomadas de posição públicas, os vastos poderes do Presidente da República podem e devem ser usados para impulsionar soluções para os problemas que o povo e o País enfrentam.
Isso exige, desde logo, conhecer esses problemas. Exige uma genuína ligação à vida e não uma falsa empatia que se esboroa quando os assuntos são tão sérios como a dificuldade de se viver com os baixos salários, pensões, reformas e prestações sociais. Exige a vontade e a determinação inabaláveis de libertar a vida nacional da dominação dos grandes grupos económicos e financeiros, que sufocam a democracia e o desenvolvimento.
VII
Sim, vivemos um tempo invulgar, exigente e complexo.
E é perante as dificuldades certas que importa saber com quem podemos contar.
Nesta candidatura, não procuramos o conforto da ambiguidade. Não procuramos navegar ao sabor do vento, para onde quer que sopre. Se os ventos são agrestes – e são agrestes por vezes os ventos da História – sabemos que temos de os enfrentar. Esta é a candidatura inspirada nos que já mostraram que não se escondem, que não desertam, que não se rendem. Inspirada nos que não ficam à espera quando os trabalhadores e o povo são atacados nos seus direitos. Nos que enfrentam a resignação e o medo, real ou imaginário. São os que lutam, até às últimas consequências, pela liberdade e pela democracia. Os que acreditam e afirmam que a actual geração não tem de se habituar a viver pior do que a geração que a antecedeu. Não é esse o sentido geral da História. Acertemos então o passo com a marcha da História. Com coragem, com audácia, com determinação!
Fixemos no presente e no futuro de Portugal os valores de Abril e o seu horizonte de fraternidade, liberdade, igualdade e esperança!