Outro referendo absurdo

Fernando Blanqui Teixeira
Membro da Comissão
Central de Controlo

O segundo referendo realizado no nosso País não contribuiu - e o mesmo sucedeu com o primeiro realizado em Junho do ano passado - para um avanço democrático da nossa sociedade assente num melhor conhecimento e maior consciência sobre questões importantes da vida nacional. De novo, não se conseguiu caminhar em frente. Aqueles que impedem o progresso do País continuam a ser muito poderosos.

Há quase 23 anos

Há quase 23 anos, desde 2.4.76, que a Constituição da República Portuguesa, uma muito importante conquista do 25 de Abril, no seu título sobre o Poder Local, afirma: “A organização democrática do Estado compreende a existência de autarquias locais”. E especifica: “No continente as autarquias locais são as freguesias, os municípios e as regiões administrativas.” Quanto à Região Administrativa, com excepção da introdução, em 1997, do referendo, também se tem mantido quase todo o texto inicial (de 1976) sobre a sua “criação legal”, a sua “instituição em concreto”, as suas “atribuições”, o seu “planeamento”, os “órgãos da região” (Assembleia e Junta) e o “representante do Governo”.

Passos dados na democratização do Estado

Como se sabe, após o 25 de Abril, no caminho da democratização do Estado, avançou-se a nível da freguesia (acabaram os regedores escolhidos pelo Governo e passou-se a eleger a Assembleia de Freguesia e, por esta, a Junta de Freguesia) e a nível do município (os membros das Câmaras deixaram de ser impostos pelo Governo; são as populações que elegem a Assembleia e a Câmara Municipais). Também foram criadas as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.

Nunca se considerou que a democratização do Poder Local era um salto no escuro (1). E a experiência mostra que as leis que, em pormenor, regem as finanças locais, as competências e outras leis a que a Constituição se refere, podem, só posteriormente, ser aprovadas pela Assembleia da República.

Entretanto, já em 1991, sob proposta do Governo Cavaco Silva, o Parlamento aprovou, por unanimidade, a Lei Quadro das Regiões Administrativas. São 48 artigos que contemplam os “Princípios Gerais”, a “Instituição concreta das regiões”, as “Atribuições das regiões”, os “Órgãos”, as “Finanças regionais”, o “Governador Civil regional” e as “Disposições finais e transitórias”.

E, em 1995, o PCP apresentou três Projectos de Lei, nºs 49/VII, 50/VII e 51/VII, respectivamente “Sobre as Atribuições das Regiões Administrativas”, “Sobre as Finanças das Regiões Administrativas” e “Sobre as transferências de Serviços e Património da Administração Central para as Regiões Administrativas”.

O PCP, ao avançar com as suas opiniões sobre a regionalização, partiu da realidade existente, que eram os distritos, e procurou conhecer o que pensavam as Assembleias Municipais. Foi o resultado deste inquérito, realizado em 211 dos 275 municípios então existentes no continente, que ditou a concretização das regiões defendida pelo PCP. Os concelhos que não participaram foram aqueles em que o PSD e o CDS/PP tiveram possibilidade de recusar esta forma simples de conhecer opiniões concretas (2).

A ignorância da situação actual

Apesar da unanimidade da Assembleia da República sobre a instituição das regiões administrativas, sobre a eleição dos seus órgãos, sempre os governos foram adiando um passo tão importante para a descentralização e o desenvolvimento do País. É bom lembrar que todos esses governos, desde 1976, em que participaram o PS, o PSD e o CDS, defenderam sempre uma política de direita. Todos eles cometeram uma flagrante inconstitucionalidade, por omissão, a respeito das regiões administrativas.

Como não era possível conduzir a administração do Estado sem “qualquer coisa” a um nível superior aos concelhos, mantiveram-se os distritos e foram-se criando as cinco Comissões Coordenadoras Regionais e muito diversas Direcções e outras entidades regionais (ao todo 74) que nem sequer têm base geográfica comum. Estabeleceu-se um sistema extremamente complexo, muito pouco racional, que, naturalmente, tem reflexos no aumento das burocracias e das despesas e no acerto e demora das decisões.

A grande massa dos votantes a quem impingiram o medo do desconhecido não sabe nada ou muito mal conhece o que actualmente existe a nível regional.

Também foi espalhado que, com a democratização das regiões, as mais desenvolvidas progrediriam mais que as mais atrasadas. Como se a experiência de duas décadas não tivesse mostrado que foi exactamente isso que sucedeu sem a sua democratização. Como se o facto de dar uma voz a cada região não fosse uma condição e um incentivo ao progresso de cada uma delas e à sua aproximação em termos de desenvolvimento.

Promessas e falsidades

Foi em 1995 que Guterres prometeu criar as regiões administrativas e até apontou as respectivas eleições para 1997, em simultâneo com as autárquicas.

Também o novo dirigente do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa, manteve durante algum tempo, como seu, o objectivo de regionalização. Pouco depois, porém, mudou completamente de ideias, como é característico da sua personalidade. E aproveitou a última revisão constitucional (1997) para, com Guterres, acrescentar a necessidade de um referendo sobre “a instituição em concreto das regiões administrativas”.

Só a falta de interesse e a falsidadde de afirmações e promessas feitas sobre a regionalização podem explicar a aceitação deste referendo que, naturalmente, teve o apoio do CDS/PP.

E, de novo - tal como sucedeu em Junho passado - também em Novembro, para a grande maioria dos protagonistas do debate e dos que o acompanharam, o que se estava a referendar não era uma regionalização concreta mas uma parte da própria Constituição. Ainda se foi, agora, mais longe pois, no primeiro referendo, “só” se pretendeu - e conseguiu - negar e desrespeitar uma decisão da Assembleia da República.

O sim e o não

O debate sobre o último referendo serviu para, mais uma vez, se assistir a um grande espectáculo de fraude e de hipocrisia. O CDS/PP mostrou-se capaz de tudo para enganar os eleitores e caluniar os adversários. Afirmando que as eleições só escolhem corruptos, colocou-se abertamente contra a democracia. O PSD não lhe ficou longe. Até comparou a regionalização com uma bomba atómica... O PS, que “teoricamente” defendia o sim, não mobilizou a massa dos seus seguidores para uma actuação efectiva. Mas houve socialistas que se dispuseram a aparecer e se mostraram satisfeitos por, juntamente com os comunistas, participarem numa luta por valores de esquerda.

É bem conhecido que houve pessoas com posições de direita que defenderam, e até bem e muito bem, o sim, e também pessoas com posições de esquerda que defenderam o não. Mas as principais figuras do mundo do capital, aqueles cujos interesses económicos cada vez mais se tornam determinantes na política portuguesa e que também dominam a comunicação social, todos eles defenderam o não. É natural que não lhes interessassem decisões mais transparentes tomadas por quem está mais perto da realidade.


Os resultados do referendo (3), que se publicam a seguir, mostram a clara influência do PCP na votação pelo sim..

A regionalização mantém-se na Constituição. A democratização desse tão importante patamar das autarquias locais continua a ser um objectivo válido. É necessário que o esclarecimento da sua importância e da sua necessidade para o progresso de Portugal continue a ser realizado nas diversas regiões do País.
Notas:

(1)Aqueles que classificaram a democratização das regiões como um salto no escuro não levantaram nem levantam uma palavra sobre o verdadeiro salto no escuro que é a entrada de Portugal na moeda única.
(2) A actual presidente da Câmara de Leiria, Isabel Damasceno, vice-presidente do PSD, “acusa o seu partido de ter «cometido um erro estratégico ao não ter respondido», através das assembleias municipais, às consultas sobre as propostas das regiões” (DN, 4/11/98).
(3) Para simplificar os quadros não se indicam as abstenções (podem ser obtidas pela diferença entre os inscritos e os votantes) nem os votos brancos e nulos (podem ser obtidos pela diferença entre votantes e a soma dos sim e dos não, que são os votos validamente expressos).

«O Militante» Nº 238 - Janeiro / Fevereiro - 1999