Em torno da Conferência
Nacional
Revisitando 2001
Vitor Dias in "Militante"nº258
Maio/Junho
1. Mesmo que não se procure ou queira limitar
no tempo o exame dos factores que podem ter contribuído
para a grave erosão da influência eleitoral do PCP
nos dois últimos actos eleitorais e essa é
uma questão sobre a qual compreensivelmente se centram
muitas das atenções e preocupações
dos membros do Partido e que estará necessariamente presente
no debate preparatório da Conferência Nacional do
Partido marcada para 22 de Junho -, a verdade é que tem
particular importância revisitar e reflectir com rigor sobre
a orientação e acção política
do Partido desde o XVI Congresso (Dezembro de 2000) até
às eleições de 17 de Março último,
ou, de forma talvez mais precisa, durante o ano de 2001.
Esta relativa delimitação temporal
é tanto mais justificada quanto é certo que alguns
membros do Partido, com particular insistência e articulação
depois das eleições autárquicas mas, de facto,
no desenvolvimento de teses e opiniões que já tinham
começado a exprimir publicamente a partir do momento (Primavera
de 2001) em que uma sondagem deu pela primeira vez o PSD à
frente do PS, passaram a responsabilizar predominantemente as
orientações políticas saídas do XVI
Congresso e o desenvolvimento da acção política
posterior do Partido pelos maus resultados eleitorais.
É neste quadro de análise que se multiplicaram
as referências e afirmações de que, após
e por causa das conclusões do XVI Congresso, o PCP teria
enveredado por uma orientação de deliberado «enquistamento»,
«enconchamento» e «sectarismo», teria
passado a protagonizar uma política de «quanto pior
melhor» e a considerar o PS como seu «inimigo principal»
e com uma política absolutamente equivalente à do
PSD, e sobretudo assim teria assumido uma grande responsabilidade
na não configuração e não concretização
de uma alternativa de esquerda.
Porque, a nosso ver, se trata de um conjunto de
teses, opiniões e acusações que, fiadas na
falta de memória e na correspondente volatilidade dos juízos,
assentam numa deliberada viciação das orientações
consagradas no XVI Congresso e numa propositada rasura do que
politicamente se passou em Portugal no ano de 2001, importa introduzir
no debate e na reflexão individual e colectiva um distinto
conjunto de análises, factos e opiniões que, a serem
falsos ou erróneos, mereceriam uma contestação
concreta e fundamentada e não a mera repetição
dogmática e generalista das mesmas teses acusatórias.
2. Assim, começa por ser útil lembrar
o que parece estar esquecido, ou seja, que a governação
do PS não começou no final de 1999 mas sim no final
de 1995 e que interessa lembrar que quer o Partido quer os membros
do Partido que agora enunciam opiniões diferentes expressaram
juízos sobre a natureza dessa governação
e suas orientações políticas fundamentais
relativamente a um período não de um mas de seis
anos.
É também útil lembrar que,
sem prejuízo de desenvolvimentos e ajustes conjunturais,
o juízo político e o posicionamento do PCP face
aos Governos do PS, e designadamente a colocação
do PCP como «oposição de esquerda»,
foram definidos nas reuniões do Comité Central de
8 de Dezembro de 1995 e de 20 e 21 de Novembro de 1999, sem que
haja memória ou anotação de qualquer reserva
ou divergência significativa a esse respeito entre os membros
de então dos organismos executivos e do Comité Central.
3. Por outro lado, e no que respeita ao XVI Congresso
(Dezembro de 2000), por mais que pesquisemos e reflictamos, a
verdade é que continuamos a não perceber que alterações
de sentido «sectário» ou de «auto-guetização»
e «enconchamento» as suas conclusões consagraram
por comparação com anterior Congresso (1996) em
matéria de apreciação da política
e da governação do PS, do relacionamento e atitude
do PCP face ao PS e da orientação do PCP quanto
à luta e aos caminhos para a construção de
uma alternativa de esquerda.
Com efeito, embora seja impossível aqui recordar
toda a densidade de reflexões e orientações
contidas sobre estas matérias na Resolução
Política do XVI Congresso, e que só uma (re)leitura
designadamente do seu Cap. III permitirá utilmente reavivar,
aí se afirmava, entre tantos exemplos que desmentem e derrotam
tantas caricaturas e deturpações circulantes, que
«é ainda indispensável que, com firme rejeição
de pretensões hegemónicas de quem quer que seja
e no rigoroso respeito da autonomia e identidade dos participantes,
se amplie e aprofunde o diálogo político, a reflexão,
as formas de cooperação ou acção comum
entre forças, correntes e sectores democráticos,
movimentos sociais e cidadãos que se reconhecem na aspiração
a uma alternativa de esquerda».
E, numa explicitação que não
constava do texto do anterior Congresso, aí se precisava
que a luta por uma alternativa de esquerda «exige também
a compreensão de que, tratando-se da concretização
de uma alternativa no quadro das instituições democráticas
e do regime constitucional, é uma condição
institucional básica para a sua viabilidade a existência
de uma maioria parlamentar, designadamente de deputados do PCP
e do PS, mas marcada politicamente pelo reforço da representação
do PCP. Desta condição básica, ou seja, necessária
mas não suficiente, decorre a conclusão de que,
a manter-se o actual quadro partidário, o PS, necessariamente
com outras orientações e opções de
fundo, deve ser considerado como uma das componentes do leque
de forças indispensáveis para concretizar uma alternativa».
Aí se acentuava que «a luta por uma
alternativa de esquerda (...) é a luta por uma política
alternativa à política de direita (seja a realizada
pelo PSD seja a desenvolvida pelo PS) mas também, e indissociavelmente,
por uma alternativa política, isto é, um projecto
de exercício do poder que abrange necessariamente as orientações
de uma maioria parlamentar e a política e composição
do governo do País» .
E, sempre num quadro de vinculação
a uma política de esquerda, aí se enfatizava que
«o PCP não procede nem procederá a nenhuma
espécie de autolimitação do seu papel e legítimas
ambições na vida nacional» e «não
consente nem consentirá qualquer apagamento da sua qualidade
de força portadora de um projecto de alternativa e da sua
aptidão e qualificação para o exercício
de responsabilidades governativas».
4. E, a este respeito, deve também salientar-se
que sobre estas matérias, e exceptuando uma ou outra referência
à questão da «plataforma» (referência
então sempre nebulosa, sempre codificada e sempre não
desenvolvida e, por isso mesmo, pouco propiciadora de um debate
mais produtivo e mais esclarecedor), seja ao nível dos
organismos mais responsáveis seja em sede de propostas
apresentadas por militantes à Comissão de Redacção
do Projecto de Resolução Política, não
apareceram as objecções e discordâncias que
alguns membros do Partido começaram a manifestar em meados
de 2001 e intensificaram depois das eleições autárquicas.
Como é evidente, qualquer membro do Partido
tem o direito a mudar de opinião e a não ficar eternamente
preso a análises que antes tenha partilhado ou não
tenha contestado. Só que, nesse caso, é uma exigência
de seriedade que se assuma que se mudou de opinião (de
preferência explicitando porquê), em vez de, como
tem sido corrente, reivindicar uma antiguidade de divergências
que não é verdadeira e, pior do que isso, acusar
agora, na base de caricaturas, simplificações e
deturpações, o PCP e a sua direcção
por afirmações (exemplo: a classificação
da política do PS como uma «política de direita»)
que os próprios escreveram e disseram centenas de vezes
e, em algumas ocasiões, em termos com bem menos «nuances»
e rigor e bem mais rudes e agressivos que o discurso político
do Partido.
5. São também conhecidas opiniões
que, na sequência lógica da retroactiva atribuição
ao XVI Congresso de erradas «orientações estratégicas»,
são particularmente veementes na responsabilização
das orientações, decisões e acção
políticas do PCP no ano de 2001 pelo desperdício
da oportunidade resultante da existência de uma folgada
maioria (numérica) parlamentar constituída pelo
PS, PCP, Verdes e BE para uma convergência de esquerda ou
para a construção de uma alternativa de esquerda
que tivesse poupado o país ao regresso da direita ao governo.
Salvo melhor opinião, estas teses parecem
resultar de artificiais congeminações de alguém
que, por um lado não tenha estado no país no ano
de 2001, e, também por isso, não queira identificar
nem a verdadeira orientação seguida pelo PCP nem
a intensa actividade (que também valerá a pena revisitar)
que, sem prejuízo de insuficiências ou desacertos,
desenvolveu nesse ano politicamente muito condicionado pelos prementes
e incontornáveis exigências da preparação
das eleições autárquicas.
Com efeito, pensamos que persiste como um estranho
mistério como é que alguém pode com razoabilidade
e sinceridade sustentar que, estando o PS no Governo desde o final
de 1995, o ano 2001 teria sido a grande ocasião para construir
a alternativa de esquerda ou para o PCP celebrar um «acordo
de incidência parlamentar ou governativa» ou um «acordo
político de legislatura» com o PS, quando nos parece
incontroverso que o que mais marcou politicamente esse ano foi
a mais acentuada viragem à direita que o PS empreendeu
com a remodelação governamental de Junho, acompanhada
do anúncio do chamado «programa de contenção
da despesa pública» (leia-se ataque aos salários)
a repercutir no Orçamento para 2002 e do seu assumido recuo
numa componente essencial da reforma fiscal, tudo num quadro de
triste e humilhante cedência a uma articulada ofensiva de
pressões e chantagens do grande capital.
E, falando francamente, não nos parece nem
sério nem sinal de boa-fé que alguém possa
pretender que era possível ao PCP, que criticou vivamente
esta acentuação da viragem à direita, ter
impedido este caminho tão fria e premeditadamente escolhido
pelo PS e que, significativamente, até o levou, como é
sabido, a sacrificar e despachar em grande velocidade um Ministro
das Finanças que era um preferido de António Guterres.
6. É tempo agora de sustentar que, havendo
dezenas de repetitivas afirmações acusando o PCP
de uma orientação sectária no ano de 2001
e responsabilizando-o predominantemente pela falta de uma alternativa
de esquerda (nesses discursos, as referências às
responsabilidades do PS são muitas vezes apenas a conveniente
«cobertura» ou intróito para a outra responsabilização),
curiosamente, apesar de dezenas de artigos de opinião,
entrevistas e declarações públicas, há
esclarecimentos que nunca aparecem.
Na verdade, nunca aparece a negação
das dezenas e dezenas de propostas positivas, de variado alcance
e importância, que o PCP, numa postura construtiva que nunca
abandonou, de facto aprovou com o PS.
Nunca aparece a lista dos projectos, propostas,
políticas ou medidas positivas formuladas pelo PS que o
PCP tenha rejeitado por alegado «sectarismo» ou «enconchamento».
Nunca aparece a lista das orientações
ou políticas do Governo do PS que o PCP efectivamente combateu
mas que porventura se entenda que não devia ter combatido
e antes devia ter apoiado.
É certo que não aparecendo nada disto,
apareceu porém, tanto nas vésperas do debate do
Orçamento para 2002 como depois disso, a tese de que o
PCP devia ter manifestado mais disponibilidade para negociar a
viabilização desse Orçamento, tese essa que,
noutras formulações, surge associada à ideia
de que isso teria evitado eleições antecipadas,
quando é uma evidência que o Governo do PS não
caiu na AR e que as eleições de 17 de Março
foram deliberadamente provocadas pela demissão de Guterres
após os resultados das autárquicas.
Só que aquela tese recoloca um outro mistério
que é o de perceber porque é que quem, no exercício
de altas responsabilidades partidárias, sempre convalidou
a estável e inalterada postura e orientação
para o debate e tipo de voto do PCP face a seis Orçamentos
do Governo do PS, só ao sétimo (o para 2002) passou
a defender uma orientação diferente sem ter em conta
que esse Orçamento era explicitamente tributário
da acentuação da viragem à direita ocorrida
em Junho de 2001.
Ainda assim, nessa conjuntura que, convém
não esquecer, precedia as eleições autárquicas,
não é verdade que o PCP não tenha feito os
maiores esforços de carácter construtivo em relação
a esse Orçamento de Estado.
Com efeito, podem alguns querer fingir que não
leram e não sabem, mas a verdade é que esse esforço
de apresentação de propostas construtivas e alternativas
do PCP está claramente testemunhado nas linhas fundamentais
para a elaboração do OE/2002 constantes do memorandum
entregue pelo PCP ao Primeiro-Ministro (e que pode ser consultado
em www.pcp.pt/actpol/temas/orcam/frset-oe2002.html)
e a que este nem respondeu e nas propostas de alteração
na especialidade formuladas pelo PCP (aumentos dos salários
da função pública e das reformas, dotações
para ensino superior público, política fiscal, etc.),
e que o PS, ou com a solidariedade ou com a abstenção
do PSD e do CDS-PP, implacavelmente rejeitou e chumbou.
7. Neste contexto, é de anotar que também
já foi formulada a tese sobre as alegadamente negativas
consequências de a direcção do PCP, no último
ano, não ter «assumido um desafio ao partido socialista
e a outras formações de esquerda para se analisar
formalmente a possibilidade de se encontrarem linhas de convergência
com o propósito explícito de se estabelecer um acordo
político de legislatura».
A este respeito, e para além do que já
foi acima referido sobre a grande marca política do ano
de 2001, cremos ser de observar que há quem manifestamente
precise de revisitar a atitude «isolacionista» e arrogante
do PS no momento crucial da formação dos seus governos,
quer em 1995 quer em 1999, e como nesses ou noutros momentos nunca
mostrou a mais pequena abertura para negociações
ou entendimentos globais com o PCP.
Por outro lado, parece-nos manifestamente superficial
e ligeira a ideia de apresentar o «desafio» para negociações
formais como um espécie de novo «abre-te-Sésamo»
em relação à questão da convergência
entre forças democráticas ou da alternativa de esquerda.
Quem partilha desta concepção parece
esquecer que também há diálogo político
e negociação nas propostas que uns fazem e outros
rejeitam, no encontro ou desencontro de soluções
no Parlamento, nos encontros formais com o Primeiro-Ministro e
que em muito disto se desvenda perante o país o que querem
e não querem as diversas forças políticas,
as suas convergências e as suas divergências.
É certo que o «desafio» ou a
«proposta» para negociações formais
podem ser, sem dúvida, em precisas circunstâncias
e oportunidades, um instrumento legítimo e útil
de acção política (e a isso alude a Resolução
Política do XVI Congresso).
Mas também há circunstâncias
e oportunidades em que, como disso há experiência,
pode não passar de um fugaz «facto político»
que, tirando uns perversos títulos de jornais sobre «namoros»
e «tampas», dura meia dúzia de horas, precisamente
as que podem separar a sua apresentação da sua rejeição
pelo PS, com a consequente consolidação na opinião
pública da ideia pouco mobilizadora e esperançosa
- de um total bloqueamento ou impossibilidade da alternativa de
esquerda. Como, em nossa opinião, teria sido o caso da
ideia avançada de que o PCP deveria ter apresentado ao
PS, em plena pré-campanha das legislativas, uma «plataforma
política» (que, entretanto, ninguém se atreveu
a desenhar no concreto) com o argumento suplementar de que se
o PS a recusasse então arcaria com as responsabilidades.
Cremos porém que, a ser possível a sua elaboração,
a ser séria e a não representar uma rendição
do PCP, uma tal «plataforma» teria sido liminarmente
rejeitada pelo PS com a muito negativa consequência de,
em plena campanha, desanimar a esperança num eventual entendimento
pós-eleitoral entre o PCP e o PS. E talvez assim se possa
ver como certas propostas embrulhadas em celofane de «abertura»
e de «convergência à esquerda» poderiam,
na prática, descambar em actos sectários, em tácticas
egoístas de duvidosa eficácia e em prejuízos
para todo o campo democrático, em indirecto benefício
para a direita.
***
Terminadas estas longas mas ainda assim incompletas anotações,
sublinhamos que as vemos sobretudo como um contributo de informação,
de opinião e de reflexão de eventual utilidade para
o progresso e aprofundamento do debate colectivo e que nelas não
há o intuito de negar ou ocultar problemas, derrotas, deficiências,
desacertos ou erros no PCP, nem a menor insensibilidade face aos
consequentes e compreensíveis desencantos, insatisfações,
preocupações e inquietações, nem nenhuma
dúvida de que devemos ser exigentes na indagação
e pesquisa das razões e causas das dificuldades que enfrentamos.
Mas apenas a convicção de que não há
nenhum debate sério nem nenhum caminho para dar resposta
aos problemas e desafios que defrontamos que se possa erguer sobre
terraplanagens guiadas ou inspiradas por deturpações,
precipitações ou reescritas do passado recente.