(Preâmbulo)
No segundo semestre de 1996 teve lugar em Portugal um processo de regularização extraordinária da situação de cidadãos estrangeiros indocumentados, ao abrigo da Lei n.º 17/96, de 24 de Maio, que ficou muito longe dos seus proclamados objectivos.
O PCP alertou atempadamente para a possibilidade real da aplicação da Lei n.º 17/96 se traduzir num relativo fracasso. Apesar de na altura, por proposta do PCP, ter sido possível introduzir algumas alterações na Proposta de Lei apresentada pelo Governo, tornando menos problemático o processo de regularização de muitos cidadãos, era manifesto - e o PCP denunciou-o - que alguns aspectos inadequados dessa legislação, como a excessiva policialização do processo, poderiam contribuir para manter na ilegalidade muitos cidadãos que poderiam, nos termos da lei, ter obtido a sua regularização.
O resultado da falta de vontade do Governo para levar a cabo um processo extraordinário de regularização em termos adequados foi que, passados quase 5 anos sobre o encerramento do processo, existem ainda requerimentos em número significativo que não obtiveram até à data uma resolução final, e, pior do que isso, permaneceram indiscutivelmente em Portugal muitos milhares de cidadãos estrangeiros em situação ilegal.
Acontece que, em 1998, o Governo fez publicar o Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, sobre a entrada, saída, permanência e expulsão de estrangeiros do território nacional, consagrando uma política de imigração de "portas fechadas", deixando as escassas possibilidades de um cidadão estrangeiro ter acesso a um visto de trabalho em Portugal inteiramente nas mãos da vontade discricionária da Administração, e recusando a adopção de um qualquer procedimento legal destinado a possibilitar, sem discriminações injustas, a regularização de muitos milhares de trabalhadores imigrantes que permanecem em Portugal, vivendo e trabalhando nas mais precárias situações.
Apesar de, ainda por iniciativa e proposta do PCP, ter sido possível introduzir alguns melhoramentos significativos na "lei de estrangeiros" aquando da sua apreciação parlamentar, os aspectos essenciais dessa legislação continuam profundamente negativos, tendo o PCP já assumido no seu programa eleitoral o firme propósito de, na presente legislatura, tomar a iniciativa legislativa com vista à sua revisão global.
Impõe-se entretanto, sem prejuízo dessa revisão, adoptar com toda a urgência medidas legislativas que permitam resolver a situação de milhares de trabalhadores que permanecem em situação ilegal.
Para o PCP, a solução não passa pela reabertura de um processo extraordinário de regularização, limitado no tempo, que venha repetir os erros de processos anteriores e, a prazo, deixar tudo na mesma. E não passa, tão pouco, como está bem à vista, por mecanismos excepcionais (como o constante do artigo 88º da actual lei) que deixam a possibilidade de regularização na absoluta discricionariedade do Governo.
A situação dos indocumentados em Portugal constitui uma flagrante violação de direitos fundamentais dos cidadãos. E o Governo não o ignora. O Governo não ignora que as obras públicas do passado recente, do presente, e do futuro próximo, foram em larga medida construídas com o suor de milhares de imigrantes e que muitos de entre eles foram - e são - recrutados por sub-empreiteiros, que lhes negam quaisquer direitos, em alguns casos mesmo o direito ao salário, beneficiando da chantagem que a situação ilegal desses trabalhadores possibilita.
A integração social plena dos cidadãos estrangeiros que se encontram a residir e a trabalhar em Portugal é uma obrigação indeclinável do Estado Português. Só por essa via será possível pôr fim à exploração infame a que esses trabalhadores estão sujeitos, respeitar os seus direitos mais elementares, e evitar a eclosão entre nós de manifestações racistas e xenófobas que estão tristemente a ensombrar a Europa nos nosso dias.
O racismo e a xenofobia não se combatem com a exclusão social dos imigrantes, cedendo a pressões racistas e xenófobas. Combatem-se precisamente com a integração social, tratando todos os cidadãos com a dignidade a que, como seres humanos, têm direito.
O PCP propõe assim, através do presente Projecto de Lei, que os cidadãos estrangeiros que se encontrem a residir em Portugal sem a autorização legalmente necessária possam obter a sua legalização desde que disponham de condições económicas mínimas para assegurar a sua subsistência e, em qualquer caso, desde que tenham cá residido permanentemente nos dois anos anteriores à apresentação do requerimento.
Propõe-se de igual modo a adopção de processos de decisão dotados de transparência, correcção e rigor, a concessão de autorização provisória de residência aos cidadãos que tendo requerido a sua regularização aguardem decisão final, a aplicação extensiva da regularização ao agregado familiar dos requerentes e a adopção de mecanismos de fiscalização democrática do processo através do Conselho Consultivo para os Assuntos da Imigração e, em última instância, pela própria Assembleia da República.
Nestes termos, os Deputados do grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projecto de Lei:
Artigo 1º
(Objecto)
A presente lei regula os termos a as condições aplicáveis à regularização da situação dos cidadãos não nacionais que se encontrem a residir em Portugal sem a necessária autorização legal.
Artigo 2º
(Condições de admissibilidade)
1 - Os cidadãos que se encontrem a residir em Portugal sem a autorização legalmente necessária podem requerer a regularização da sua situação desde que demonstrem:
a) Dispor de condições económicas mínimas para assegurar a sua subsistência, designadamente através do exercício de uma actividade profissional remunerada por conta própria ou de outrém;
b) Permanecer no território nacional desde data anterior a 1 de Janeiro de 2000.
2 - A situação de desemprego involuntário não obsta à regularização desde que o requerente demonstre ter exercido uma actividade profissional nos termos na alínea a) do número anterior.
3 - podem ainda requerer a regularização nos termos da presente lei os cidadãos que, à data da apresentação do requerimento, demonstrem residir permanentemente em Portugal há mais de dois anos.
Artigo 3º
(Condições de exclusão)
Não podem beneficiar da regularização prevista na presente lei, os cidadãos que:
a) se encontrem em qualquer das circunstâncias previstas como fundamento de expulsão do território nacional, com excepção da entrada irregular no país e do desrespeito das leis portuguesas referentes a estrangeiros.
b) Tendo sido expulsos do país, se encontrem no período de subsequente interdição de entrada no território nacional.
Artigo 4º
(Excepção de procedimento judicial)
1. Os cidadãos que requeiram a regularização da sua situação nos termos da presente lei não são susceptíveis de procedimento judicial com base em infracções à legislação laboral ou à relativa à entrada e permanência em território nacional.
2. As entidades empregadoras que declarem as situações de irregularidade de emprego nelas praticadas em relação aos cidadãos que requeiram a regularização da sua situação nos termos da presente lei, não são passíveis de procedimento judicial, nem lhes é aplicável o regime correspondente às transgressões decorrentes de tal facto.
Artigo 5º
(Suspensão e extinção da instância)
1. Até à decisão final dos requerimentos apresentados no âmbito da presente lei, é suspenso todo o procedimento administrativo ou judicial que tenha sido movido aos requerentes por infracções à legislação sobre imigração.
2. A decisão de regularização favorável ao requerente produzirá o efeito da extinção da instância.
Artigo 6º
(Apresentação dos requerimentos)
Os cidadãos que pretendam beneficiar da faculdade conferida pela presente lei devem apresentar os seus requerimentos:
a) Ao Governador Civil da área da sua residência, ou ao Ministro da República caso residam em Região Autónoma.
b) Na sede ou nas delegações do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
Artigo 7º
(Elementos constantes dos requerimentos)
1. O requerimento a apresentar nos termos da presente lei deve ser assinado pelo requerente, deve conter o seu nome completo, data de nascimento, estado civil, naturalidade, filiação, nacionalidade, lugar de residência habitual, actividade exercida e deve ser acompanhado por uma fotografia.
2. O requerimento deve ser instruído com a prova da data de entrada do requerente em território nacional, que consistirá em documento ou em outro meio de prova bastante.
3. Caso o requerente formule a sua pretensão ao abrigo do n.º 1 do artigo 2º, deve ainda instruir o requerimento com documento comprovativo da existência de rendimentos próprios ou declaração de exercício de actividade remunerada, a qual, sendo exercida por conta de outrém, deve ser emitida pela respectiva entidade empregadora.
4. Caso não seja possível, por motivo não imputável ao requerente, obter da entidade empregadora a declaração referida no número anterior, pode esta ser substituída por declaração emitida por um sindicato representativo do sector em que o requerente exerça a sua actividade, ou ser feita pelo próprio requerente desde que a sua veracidade seja confirmada por duas testemunhas devidamente identificadas.
5. O agregado familiar do requerente, constituído para os efeitos da presente lei, pelas pessoas que com ele residam em economia comum, deve ser identificado nos termos exigidos no n.º 1 para que lhe seja extensivamente aplicado o regime estabelecido na presente lei.
6. As entidades habilitadas para a recepção dos requerimentos devem solicitar ao centro de Identificação Civil e Criminal, por telecópia ou por outro meio expedito, o certificado de registo criminal dos requerentes para instrução do processo.
Artigo 8º
(Autorização provisória de residência)
1 - A entidade receptora dos requerimentos apresentados na presente lei deve emitir um documento comprovativo da sua recepção, a entregar ao requerente, que funciona como autorização provisória de residência para os cidadãos abrangidos até à decisão definitiva sobre a sua situação.
2 - O documento referido no número anterior tem a validade de 90 dias, prorrogáveis por iguais períodos até que seja tomada uma decisão definitiva sobre a situação do seu titular.
Artigo 9º
(Processo de decisão)
1 - A decisão sobre os requerimentos apresentados nos termos da presente lei compete ao Ministro da Administração Interna, sendo precedida de parecer do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
2 - Nos trinta dias seguintes à apresentação de qualquer requerimento pode o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras solicitar ao requerente a junção de elementos em falta.
3 - Os elementos a solicitar devem sê-lo directamente para o endereço indicado pelo requerente, por carta registada com aviso de recepção, devendo a resposta deste efectuar-se no prazo máximo de 30 dias.
4 - A decisão final favorável ao requerimento apresentado, com a aplicabilidade extensiva ao agregado familiar, implica a concessão de autorização de residência nos termos legais.
5 - De decisão desfavorável ao requerimento apresentado cabe recurso contencioso que suspende os efeitos dessa decisão até trânsito em julgado.
Artigo 10º
(Aplicação extensiva)
1 - O regime de regularização previsto na presente lei é automaticamente aplicável aos cidadãos que tenham requerido a sua regularização ao abrigo do artigo 64º do Decreto-Lei n.º 59/93, de 3 de Março e do artigo 88º do Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto e cujos processo se encontrem pendentes.
2 - A regularização obtida nos termos do presente artigo é também extensiva ao agregado familiar do requerente.
Artigo 11º
(Acompanhamento)
1 - Compete especialmente ao Conselho Consultivo para os Assuntos da Imigração acompanhar a aplicação da presente lei.
2 - Para os efeitos previstos no número anterior deve o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras fornecer ao Conselho Consultivo toda a informação pertinente relativa à aplicação da presente lei, designadamente sobre os requerimentos entrados, deferimentos, indeferimentos e respectivas causas.
3 - O acompanhamento da aplicação da presente lei efectua-se designadamente através de reuniões regulares com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, sem prejuízo de outras providências que o Conselho Consultivo entenda adoptar.
4 - Com vista ao acompanhamento adequado da aplicação da presente lei o Conselho Consultivo tem acesso a todos os documentos constantes dos processos individuais de regularização e pode pronunciar-se junto do SEF sobre a correcção dos procedimentos utilizados por este Serviço.
5 - Compete ainda ao Conselho Consultivo apresentar à Assembleia da República um relatório sobre a aplicação da presente lei, passado um ano sobre a sua entrada em vigor, ou antes, se o entender conveniente.
Assembleia da República, em 24 de
Fevereiro de 2000
Os Deputados