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Projecto de Lei nº 419/VII
Define a natureza da GNR e o Estatuto dos seus membros, retirando-lhes as características militares

Situação


1 - O PCP traz à ordem do dia a questão da alteração da natureza da GNR e do Estatuto dos seus membros. Trata-se de fazer cessar o ultrapassado e hoje inaceitável estatuto de corpo militar que continua a ser atribuído à GNR.

A filosofia que deve presidir à natureza e estrutura das forças de segurança e ao estatuto dos seus membros exige-se hoje cada vez mais que seja civilista, isto é, adequada ao exercício de funções num quadro de proximidade dos cidadãos e de participação da comunidade. As forças de segurança não podem ter qualquer semelhança com "forças de ocupação do território social". Os seus membros devem estar inseridos na comunidade, dispor de um sentido de responsabilidade cívica, privilegiar o conhecimento dos problemas sociais e humanos da zona onde actuam.

Ora, a natureza de corpo militar tem de empurrar a GNR para o contrário disto tudo. Os corpos militares actuam contra um inimigo, em operações onde a disciplina e o espírito de corpo são a regra de ouro. O espírito militar é o adequado e necessário às operações militares que incumbem às Forças Armadas, mas não tem rigorosamente nada a ver com o modelo de actuação de uma força de segurança neste limiar do Século XXI.

2 - Não existe hoje assim qualquer justificação para que tal qualificação militar continue a ser dada a uma força de segurança como a GNR. A GNR realiza normais operações de policiamento nas zonas a seu cargo, em tudo semelhantes às que realiza a PSP. Na execução dessas operações, a GNR vive no meio da sociedade civil, contactando-a regularmente tal como faz a PSP. Nos seus postos, entram cidadãos, fazendo queixas ou por outros motivos, tal como fazem nas esquadras da PSP. Por outro lado, é à GNR que incumbe a vigilância das estradas e do cumprimento do respectivo Código, cabendo-lhe aí o contacto com os automobilistas e outros utentes da rodovia.

Ora, para este tipo de funções, que sentido faz a natureza de corpo militar?

Que sentido faz falar de quartéis? Que sentido faz construir "quartéis" como uma espécie de fortes, como sucedeu ainda há pouco tempo em Samora Correia e Vila Nova da Barquinha?

Num país onde o poder político quer acabar com o serviço militar obrigatório considerando-o "desnecessário", não faz qualquer sentido manter uma força de segurança como um corpo militar!

Por outro lado, que sentido tem hoje expressões como o "militar da Guarda", aplicada a alguém que é polícia e exerce funções de polícia?

Que sentido tem a direcção superior da GNR confiada a oficiais do Exército? A GNR não está em guerra contra os cidadãos. É até desprimoroso para os oficiais das Forças Armadas atribuir-lhe missões de polícia, com toda a carga política que envolve a questão da segurança interna.

Que sentido faz utilizar na estrutura da GNR os conceitos de organização de um exército, designadamente "brigadas", "regimentos" e "companhias"?

Que sentido faz utilizar a expressão militar "quadrícula" para referir a zona à responsabilidade de determinada parte da GNR? Quadrícula corresponde ao conceito de território ocupado e não de território à responsabilidade.

3 - É chocante também o que se passa com os profissionais da GNR. É um abuso e uma prepotência mantê-los sob o RDM (Disciplinar Militar) e CJM (Código de Justiça Militar). Os profissionais da GNR devem ser encarados e tratados pela lei por aquilo que efectivamente são, isto é, membros de forças de segurança.

Com o enquadramento disciplinar imposto aos militares da GNR, o que se pretende é fomentar um espírito de obediência cega, totalmente incompatível com o sentido de responsabilidade que deve ser estimulado em quem tem de contactar permanentemente os cidadãos. O que se pretende é fomentar um espírito de corpo, que é imprescindível para umas Forças Armadas, mas que, na função civilista que é a função "segurança", só pode ser fonte de equívocos e desvios, e alguns bem graves verificaram-se recentemente.

Mas este enquadramento é também uma forma de exploração do cidadão agente da GNR, já que, com a disponibilidade permanente que lhe é exigida, o Ministério encontrou a forma de ter agentes de segurança sem limite do horário de trabalho, chegando a ser feitas 80 horas numa semana. Isto é desumano, e incompatível com o estado de direito (e com o capítulo da Constituição sobre direitos dos trabalhadores). Além disso, do ponto de vista da prestação de serviço, não é possível exigir a quem trabalha 80 horas numa semana que se mantenha sempre em boas condições físicas e morais. As consequências são da responsabilidade de quem impõe esses horários desumanos.

Não é aceitável que o sistema de ensino assente na doutrina militar. Dir-se-á que os agentes da GNR também recebem formação como agentes de segurança. Mas, o problemas é que essa formação é toda ela enquadrada pela filosofia militar. É este que acaba por prevalecer na formação do agente.

Um caso extremo é o da aplicação da prisão disciplinar aos agentes da GNR. O Supremo Tribunal Administrativo já se decidiu pela inconstitucionalidade da norma que o permite. Mas, o Ministério e o Comando da GNR, com a alegação de que o Tribunal Constitucional ainda não declarou definitivamente a inconstitucionalidade da norma, continuam a aplicá-la, numa atitude que raia a provocação. Mas o que é verdadeiramente chocante é a ideia insinuada de que sem a prisão disciplinar não é possível manter a disciplina.

Não é seguramente isto que o País pensam dos agentes da GNR nem o que quer deles. Não os quer a fazer "faxinas", a serem tratados quase medievalmente, a serem explorados.

4 - O princípio subjacente ao projecto do PCP é o de que, estabelecendo a Constituição uma distinção clara entre as forças militares (às quais foi reservada a componente militar de defesa nacional) e as forças de segurança (às quais foram atribuídas as missões de segurança interna), a qualificação da GNR como uma força de segurança é de todo incompatível com um estatuto militar.

É um dado assente que ao nível europeu se vem afirmando a natureza civil das forças de segurança e que, consequentemente, se vem assistindo à desmilitarização de corpos policiais (caso da direcção civil da Guardia Civil, de Espanha, ou da desmilitarização da Gendarmerie belga).

Numa força empenhada e cada vez mais vocacionada para missões de estrito âmbito policial como é a GNR, apresentam-se falhos de justificação a sua natureza militar e o seu enquadramento pelo Exército ao nível dos postos de comando mais elevados, para mais quando esta corporação já possui o seu próprio corpo dirigente, que, por via desta situação, se encontram fortemente condicionado na progressão na carreira.

A GNR é uma força de segurança. As suas missões específicas situam-se todas na área da segurança interna.

A qualificação do estatuto da GNR como corpo militar é assim não só inconstitucional como indesejável e inadequada à filosofia que deve presidir ao funcionamento das forças de segurança e ao seu relacionamento com a sociedade.

5 - A par da opção pela natureza militar da GNR, foi imposto aos respectivos profissionais um estatuto retrógrado e de todo inaceitável. Os profissionais da GNR estão sujeitos à aplicação do Código de Justiça Militar e do Regulamento de Disciplina Militar. Para além de verem negados direitos elementares de participação e serem sujeitos a um regime absurdo de disponibilidade permanente para o serviço, que se traduz, na prática, em oitenta horas de trabalho semanais.

Rejeita-se a aplicação do estatuto militar e considera-se a necessidade de definir um regime que permita instituir um sistema de representação profissional por via associativa.

Assim o PCP propõe que aos profissionais da Guarda deixem de ser aplicáveis o Código de Justiça Militar e o Regulamento de Disciplina Militar (substituído pelo regulamento disciplinar da PSP, devidamente adaptado), que lhes seja aplicado o princípio do horário semanal de trinta e seis horas e ainda que sejam adoptadas gradualmente medidas para que o pessoal da GNR venha a ser exclusivamente constituído por pessoal do respectivo quadro permanente.

6 - Nestes termos, os deputados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte:

Projecto de lei

Artigo 1º

Definição e natureza da GNR

  1. A Guarda Nacional Republicana é uma força de segurança e tem por atribuições defender a legalidade democrática, garantir a ordem e a tranquilidade públicas no respeito pelos direitos dos cidadãos, e exercer as funções de polícia criminal nos termos estabelecidos na lei processual penal.
  2. A GNR é uma força de segurança, armada e uniformizada, nos termos do respectivo Estatuto.
  3. A GNR depende do Ministério da Administração Interna.
  4. A organização da GNR é única para todo o território nacional.


Artigo 2º

Prossecução do interesse público

No exercício das suas funções, a GNR está exclusivamente ao serviço do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.

Artigo 3º

Direitos, liberdades e garantias

É aplicável aos profissionais da GNR, com as adaptações necessárias, o disposto quanto a direitos e deveres, isenção, direito de associação e restrições ao exercício de direitos nos artigos 3º, 4º, 5º e 6º da Lei nº 6/90, de 20 de Fevereiro, na sua redacção originária.

Artigo 4º

Representação dos profissionais no Conselho Superior da Guarda

A representação dos profissionais da GNR no Conselho Superior da Guarda é assegurado através de:

  1. Representantes das três categorias de profissionais eleitos por sufrágio directo e secreto pelos respectivos membros, com base em normas definidas em regulamento próprio;
  2. Três vogais eleitos de entre os candidatos apresentados pelas associações profissionais legalmente constituídas.


Artigo 5º

Quadro orgânico e carreiras

  1. O Governo adoptará as providências necessárias para que o pessoal ao serviço da GNR venha a ser constituído exclusivamente por pessoal do respectivo quadro permanente.
  2. A aplicação do disposto no número anterior deve ser gradual, definindo o Governo medidas transitórias que permitam atender às legítimas expectativas e à dignidade própria de todos os interessados.
  3. O Governo providenciará a criação de carreiras próprias do pessoal da GNR e de escolas próprias com formação a todos os níveis, incluindo comando, excluindo a formação militar em estabelecimentos militares.


Artigo 6º

Horário de trabalho

  1. É aplicável aos profissionais da GNR, com as adaptações necessárias, o regime de prestação de serviço estabelecido no Decreto-Lei nº 321/94, de 29 de Dezembro.
  2. Os horários de prestação de serviço são definidos por despacho do Ministro da Administração Interna, não podendo o horário normal exceder as trinta e seis horas de trabalho semanais.


Artigo 7º

Alterações legislativas subsequentes

  1. A presente lei entra em vigor no prazo de 180 dias após a sua publicação, devendo nesse prazo o Governo propor ou publicar os diplomas necessários à sua plena execução.
  2. No prazo previsto no número anterior, o Governo promoverá as alterações à Lei Orgânica e Estatuto da GNR necessárias para a sua adaptação ao disposto na presente lei.
  3. No mesmo prazo, o Governo deve apresentar à Assembleia da República uma proposta de regulamento disciplinar do pessoal da GNR que elimine a condição militar dos seus profissionais e determine, nomeadamente, que não lhes sejam aplicáveis o Código de Justiça Militar e o Regulamento de Disciplina Militar.


Assembleia da República, 9 de Outubro de 1997

Os Deputados