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Projecto de Resolução Nº 286/IX
Sobre o acesso público à água
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A água é contínua no ciclo hidrológico, parte integrante e fundamental do constante movimento e evolução da natureza, determinante da composição atmosférica, do clima, da morfologia, das transformações químicas e biológicas, das condições de toda a vida na Terra.

Insubstituível e essencial nas suas funções de suporte à vida e ao bem-estar humano e à maioria dos processos produtivos.

Sempre a mesma água, as mesmas moléculas, móveis e sucessivamente reutilizadas através de milénios.

Os homens não consomem água, assim como não a produzem. Apenas a tomam de empréstimo por um período fugaz e constantemente renovado, devolvendo-a à natureza em condições que dificultam, mais ou menos, a sua reutilização.

A vida e as actividades humanas dependem dessa circulação comum que liga todos os seres vivos, passados, presentes e futuros.

Mas cada uso repercute-se no funcionamento do ciclo da água e nos processos associados, desencadeando, para além do propósito desejado, uma sucessão de efeitos próximos e remotos na natureza, que por sua vez arrastam uma cadeia de repercussões sociais directas e indirectas.

Os efeitos sociais agudizam as desigualdades existentes, pois o desígnio directo do decisor é satisfeito e as consequências negativas recaem sobre outros, penalizando principalmente os mais vulneráveis e desprotegidos.

A exposição solar e a água são as mais importantes riquezas naturais do território português. A sua distribuição quotidiana, de fertilidade e energia, inclusive alternativas, constitui um vastíssimo potencial estratégico profundamente mal aproveitado num país tão carente de «matérias-primas».

Este potencial não é armazenável e exaurível como uma mina de ouro ou um jazigo de petróleo. Esgota-se e renova-se em cada dia e em cada estação do ano. O potencial de cada instante é usufruído na passagem ou perdido para sempre.

O descuro deste constante movimento e transformação, a incapacidade de interagir em harmonia com esse fluxo constante, o uso desregrado da água e do solo, a actuação individual, o despejo egoísta de lixos e venenos, tem vindo a degradar o potencial de aproveitamento, em vez de o aumentar.

 

O uso da água não pode ser tratado na perspectiva de apropriação nem de comércio, mas como a participação num fluxo, a harmonia de processos dinâmicos com dimensões no tempo e no espaço, transformações permanentes e interligadas. Não há lugar a individualismo, nem a competição, nem à procura de mais-valias de curto prazo. A menos que se queira comprometer o futuro.

É a solidariedade da circulação comum, uma solidariedade que tem de ser extensiva às gerações futuras e a todos os seres vivos, a única base possível na relação da sociedade com a água.

 

 

Assim, a Assembleia da República resolve, nos termos do nº 5 do artigo 166º da Constituição da República Portuguesa, recomendar ao Governo:

 

 

  1. O respeito pelo princípio de que a água não pode ser encarada como uma mercadoria, não lhe devendo ser aplicáveis os mecanismos de mercado, tendo o dever de prosseguir uma política de água norteada pela defesa do primado do carácter público na sua gestão.
  2. O estabelecimento de uma gestão da água na base da solidariedade, de unidade do ciclo hidrológico e de harmonia com a dinâmica dos processos naturais.
  3. O estabelecimento de uma gestão da água como responsabilidade pública inalienável do Estado, a exercer directamente, designadamente:

    a) o planeamento, administração, licenciamento e fiscalização do uso da água e do domínio público hídrico;

    b) o ordenamento da utilização pública e privada da água.

  4. O estabelecimento como responsabilidade pública inalienável do Estado, garantir que todas as pessoas usufruam o direito à água potável e proteger pessoas e bens de efeitos perversos de utilizações por outros da água ou do domínio hídrico, assim como das cheias naturais.
  5. A consideração como parte integrante do domínio público hídrico:

    a) das grandes barragens, respectivas albufeiras e órgãos de exploração associados;

    b) dos aproveitamentos de fins múltiplos;

    c) das infra-estruturas de sistemas públicos de abastecimento de água e águas residuais, assim como todas as infra-estruturas associadas à água que tenham sido declaradas de interesse público;

    d) dos terrenos ocupados por essas infra-estruturas e dos terrenos adjacentes que tenham sido adquiridos ou expropriados no âmbito dos empreendimentos referidos;

    e) dos sistemas aquíferos que alimentem captações para abastecimento público, assim como dos terrenos abrangidos pelos perímetros de protecção dessas captações;

    f) das margens e leitos de todos os cursos de água onde existam, ou estejam previstas, captações para abastecimento público, ou que tenham uso balnear ou de recreio, bem como das praias fluviais e das marítimas.

  6. A elaboração de uma proposta detalhada de hierarquização das funções da água e de institucionalização da sua aplicação, incluindo a respectiva apreciação pela Assembleia da República para apreciação, sendo que o direito à água potável, a segurança de vidas humanas e a saúde pública deverão ser consideradas como primeiras prioridades.
  7. O estabelecimento do direito de cada cidadão ao uso privado e gratuito do domínio público hídrico desde que de forma a que não lhe introduza alterações, não afecte a qualidade do uso por outros, não seja patente de imputar riscos a terceiros, nem prejudique ou ponha em risco as funções ecológicas da água.
  8. A obrigação de titularidade específica, emitida por organismo da administração directa do Estado, para qualquer uso privado do domínio público hídrico que lhe possa vir a causar alterações, a reduzir o acesso público, a perturbar ou impedir o uso actual ou potencial por outros, a alterar o regime de escoamento ou a qualidade da água, ou a afectar os ecossistemas., nos seguintes termos:

 

 

 

 

 

Assembleia da República,em 12 de Novembro de 2004