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Exposição de motivos
Perspectiva histórica
I
Desde épocas muito remotas, os transportes fluviais e a pesca desempenham
papel primordial nas relações económicas entre povoações
da bacia hidrográfica do Tejo, partindo de formas muito humildes de embarcações
e da sua não menos humilde utilização.
A marcante presença dos rios no território português, fonte
de recursos alimentares e vias de transporte foram, muito provavelmente, um
grande desafio para os habitantes deste território, que necessitaram
encontrar as formas de tirar partido deles, quer como recurso alimentar, quer
como forma de se deslocarem e alargar fronteiras.
Na Idade do Ferro, já era possível encontrar, pelo menos no Tejo,
uma variedade de embarcações, umas vindas do Próximo Oriente
(sobretudo Fenícias) destinadas ao comércio de longo curso e outras,
indígenas, destinadas à pesca e ao transporte de cabotagem. Nesta
época é pouco provável que as embarcações
fossem construídas por profissionais da construção naval
mas, é provável que os seus construtores se dividissem entre a
construção naval e a pesca. Pelo menos desde o séc. VII
a.C. que o estuário do Tejo assistiu à construção
de embarcações de madeira.
Durante o período romano, com a necessidade de transportar produtos e
de reparar as embarcações, devem ter existido estaleiros ao longo
da costa portuguesa, aproveitando a existência de portos de abrigo, madeiras
e conhecimentos técnicos dos indígenas. Daí para a frente
não mais parou a construção naval cujo principal incremento
se dá no reinado de D. Dinis que mandou plantar o pinhal de Leiria com
duas finalidades: a retenção das areias dunares e a construção
naval, isto para além de um conjunto de leis de protecção
à marinha. Nesta época situava-se na área de Leiria um
importante porto de mar, o de Pedreneira, entretanto desaparecido.
Aproveitando as condições naturais proporcionadas pelas praias
e pequenas restingas abrigadas, portinhos e antigos esteiros, constituíram-se
ao longo dos séculos na “Outra Banda”, alguns espalmadeiros
(estaleiros), nos quais se fixaram profissionais das mais diferenciadas procedências
e especialidades, de que retemos como exemplo: os Calafates, Carpinteiros de
Machado, Ferreiros, Pregueiros, Serradores, Esparaveleiros, Cordoeiros de Calabre,
Correeiros, Marceneiros, Fundidores, Tanoeiros, Entalhadores e muitos outros,
constituindo um imenso “escol” de artistas navais, muitos dos quais
construíram as Naus da Índia, que se fabricavam ali mesmo ao lado,
na Feitoria da Telha, entre o Barreiro e Palhais.
Em 1284, são imensas as embarcações de Almada que fazem
o transbordo de passageiros e mercadorias entre Cacilhas e a Capital.
Por volta de 1330, reinando D. Afonso IV, são feitas referências
aos estabelecimentos navais do rio Coina, aludindo ao facto da sua criação
se ter verificado numa época multo anterior.
No reinado de D. Fernando, em 1360, é na “Outra Banda”, entre
o rio Coina e Cacilhas que se abrigam os navios da Esquadra Real, procedimento
que se manterá com D. João I, em 1390 e D. Afonso V em 1460, porque
sendo o Porto de Lisboa completamente aberto, não era prudente estarem
ancoradas as embarcações em desarmamento.
Certamente que com a expansão portuguesa a construção naval
tem um outro período áureo, registando-se um número crescente
de estaleiros de construção naval do Minho ao Algarve. Paralelamente
com esta marinha de comércio, a pesca efectuava-se em toda a costa portuguesa
e no interior dos rios e lagoas, com uma enorme diversidade de embarcações,
respondendo às diferentes necessidades, técnicas e tradições
construtivas de um país tão pequeno mas tão diverso. As
espécies pescadas, desde pequenos peixes a cetáceos e as diferentes
condições da costa produziram também as suas adaptações
nas embarcações.
No lugar da Telha, antiga freguesia de Santo André Apóstolo, anexa
à Paróquia de São Lourenço de Alhos Vedros, entre
o Barreiro e Palhais, também conhecida pela designação
de “Feitoria”, foi, segundo alguns autores, o primeiro sítio
onde se fabricaram Naus em Portugal e sede do Arsenal de Marinha.
Completavam este complexo industrial na margem sul, as instalações
dos fornos de biscoitos do Vale da Zebro, os armazéns da Azinheira, no
Seixal e o antigo presídio da Trafaria em Almada, onde se mantiveram
durante muitos anos as Galeotas Reais.
No declinar do século XVIII, eram muitos os estaleiros que laboravam
na bacia do Tejo, contando-se na margem norte, só entre São Paulo
e as carvoarias de Santos, vinte e nove, instalados em abarracamentos provisórios
onde labutavam Tanoeiros, Calafates e Carpinteiros de Machado entre outros.
Em 1893, todos estes estaleiros tinham desaparecido das praias de Santos, aquando
da obra do aterro do Porto de Lisboa.
Foi predominante o papel desempenhado pelos estaleiros improvisados da margem
norte no surto de construção dos navios e embarcações
que circulavam no Tejo, mas não foi menos importante o contributo das
modestas oficinas e abarracamentos que se estendiam do Porto Brandão
no concelho de Almada à Amora, do Seixal ao lugar da Telha no concelho
do Barreiro, sendo ainda importante este tipo de actividade nos lugares da Moita,
Montijo e Alcochete.
II
A referência expressa ao funcionamento de estaleiros de construção
naval em Almada, na primeira metade do século XIX, refere o Porto Brandão
como o local onde esta indústria havia adquirido alguma importância
e uma actividade regular.
É a época em que Celestino Soares faz alusão aos estaleiros
do Seixal, Porto Brandão e Amora, nos quais, juntamente com os da Junqueira
e de Santos, se construíam entre dez a doze bons navios por ano.
Em 1852, José Pedro Colares, proprietário da fábrica de
motores a vapor “Promitente”, fundada em Lisboa no ano de 1809,
participa no capital de uma sociedade que havia obtido do Governo a concessão
para a construção de docas e planos inclinados no lugar do Porto
Brandão, aproveitando os apoios que o Estado conferia ao primeiro industrial
que introduzisse aquela tecnologia em Portugal.
Supõe-se que os objectivos não foram de imediato alcançados,
pois em 1861 é feita nova concessão à “Empresa dos
Planos Inclinados”, de que são subscritores António José
de Sousa Almada e Thomás White.
Por Decreto de 18 de Março, sancionado por Lei de 30 desse mês,
é aprovada a construção de dois planos inclinados nesta
localidade, que o segundo subscritor se propunha construir e o primeiro explorar.
O Decreto de 28 de Fevereiro de 1863, vem declarar a utilidade pública
e consequente expropriação de uma parcela do largo do Porto Brandão,
para armazéns e oficinas dos concessionários, encontrando-se nessa
época em adiantado estado de construção, o plano inclinado
para alagem de embarcações de 700 toneladas, segundo informação
prestada pelos elementos que procederam a uma vistoria oficial ao local três
dias antes da publicação daquele Decreto e que declaravam estarem
as carreiras assentes, assim como parte da aparelhagem.
Em 1865, já o plano inclinado (pioneiro em Portugal), se encontrava em
funcionamento, sendo os carros de alagem movidos com o auxílio de uma
poderosa máquina a vapor .
Apenas em 1949 nos surgem novas referências a estas instalações,
relacionando-as com os melhoramentos introduzidos pelo industrial de Construção
Naval, Gonçalo José Gonçalves, por alcunha “O Pitrolino”,
o qual havia explorado durante anos um pequeno estaleiro na Boa-Vista, em Lisboa,
transferindo posteriormente a sua actividade para a cidade de Lagos, no Algarve
e depois para o Porto Brandão em Almada, onde construiu e reparou várias
traineiras de pesca do alto, famosas pela qualidade dos seus acabamentos e por
aguentarem muito mar.
No ano de 1953, o plano inclinado e as respectivas oficinas são vendidos
a Alfredo “Ceguêta”, até que a Cooperativa “Os
Catraeeiros” passa a utilizar essas instalações no apoio
à sua frota de rebocadores. O Porto Brandão constitui, desde tempos
longínquos, um lugar com tradição na arte da construção
naval em madeira, uma vez que eram aí fabricadas também as embarcações
dos pescadores locais, assim como da vizinha Trafaria e os característicos
“Meia-lua” da Costa de Caparica, de que restam apenas recordações.
III
Pelo menos desde o século XIII que na enseada da Margueira, ao longo
da praia que ligava o Pontal de Cacilhas à povoação da
Romeira Velha, na Cova da Piedade, os navios de alto-bordo iam abrigar-se dos
grandes temporais e das sortidas das esquadras inimigas, fazer inspecções
aos costados e fundo dos cascos, assim como pequenos concertos e reparações.
Aproveitando a tradição do local para a prática da querenagem
e as condições naturais de um baldio que existia junto à
Quinta do Outeiro, uma das sete propriedades que a Casa do Infantado possuía
no Alfeite, o industrial António José Sampaio instala um pequeno
estaleiro nesse terreno junto ao salgado do rio, confinando a Sul com a referida
Quinta do Outeiro, a Poente com a Romeira Velha, a Norte com o Caramujo e a
Nascente com o rio Tejo.
Este estaleiro, vocacionado apenas para a construção de embarcações
em madeira, encontrava-se em plena laboração em 1850. Em 1855,
o seu proprietário, por escritura notarial celebrada em Lisboa no dia
27 de Janeiro, toma de foro ao Conde de Mesquitela, um pedaço de terreno
na praia da Mutela, junto à Margueira, para ali instalar uma caldeira
em estacaria ou de pedra e cal, na extremidade da qual projectava construir
duas rampas para querenagem de embarcações.
Desconhecem-se pormenores da actividade destes dois estaleiros, a não
ser o facto de ambos se terem mantido na posse daquele industrial até
Dezembro de 1892, altura em que o Governo, pretendendo proceder à reforma
dos meios navais, consulta os industriais do ramo, procurando avaliar das condições
de que dispunham os seus estaleiros para efectuarem a construção
dos navios necessários. Os documentos da época esclarecem que
efectivamente nem o estaleiro de António José Sampaio se encontrava
preparado para construir os navios metálicos, nem os orçamentos
apresentados pelo seu proprietário mereceram a apreciação
favorável das entidades responsáveis da Armada.
Duvida-se que António José Sampaio tenha concluído o projecto
da construção das rampas de querenagem segundo o projecto de intenções
subscrito em 1855, por duas razões objectivas: a primeira, porque o local
aforado na Mutela era extremamente exíguo e em condições
semelhantes já aquele industrial possuía o estaleiro da Praia
do Outeiro, muito melhor abrigado. A segunda razão encontra-se relacionada
com o facto de em 1865, Sampaio se preparar para dar início à
construção de um grande estaleiro na Praia da Lapa, em Cacilhas,
dotado de duas docas secas, sendo deste modo previsível que este último
projecto o levasse a colocar em segundo plano das suas prioridades o investimento
na Mutela.
Desconhecem-se por quanto tempo estas instalações se mantiveram
na posse da família após a morte de António José
Sampaio, tendo como certo que desde finais do século XIX, João
Gomes Silvestre, conhecido por “João Marcela”, natural de
Ovar, surge como proprietário do estaleiro da Mutela, partilhando a sua
direcção com o irmão Bernardino Gomes Silvestre.
Em 1917, ainda na posse dos mesmos industriais, o estaleiro mantinha as mesmas
confrontações do aforamento primitivo, apenas acrescido da serventia,
para arrecadação de ferramentas, de um moinho de maré que
era propriedade dos herdeiros dos Condes de Mesquitela, e se encontrava desactivado.
O estaleiro dos “Silvestres” funcionou até 1947, ano em que
teve lugar um processo de expropriações, tendo por objectivo a
abertura do troço da Estrada Nacional n° 10, ligando Cacilhas à
Cova da Piedade. Com este estaleiro naval desapareceram muitos outros que se
situavam nas imediações, como os de Manuel Caetano, Américo
Cravidão, Francisco Cavaco, João Fialho, Joaquim Maria da Silva,
ou Pedro Lopes e Serafim Matos, transferindo-se alguns para o concelho do Seixal
enquanto outros simplesmente deram por terminada a sua actividade.
Supomos que na origem da fixação de tão elevado número
de oficinas navais na Outra Banda, estarão as obras do aterro do Porto
de Lisboa, que nos finais do século XIX expulsaram das praias de Santos
mais de duas dezenas de estaleiros artesanais de gestão familiar, a que
se vieram juntar mais tarde muitos outros que subsistiam na Junqueira, encerrados
compulsivamente pelos mesmos motivos.
IV
Em 10 de Junho de 1865, António José Sampaio procede à
escritura do aluguer de um pedaço de salgado na Praia da Lapa, em Cacilhas,
para aí construir um estaleiro de maiores dimensões que aqueles
que possuía nas proximidades da Quinta do Outeiro e no lugar da Mutela.
Em 17 de Dezembro de 1872, aquele industrial paga à Câmara Municipal
de Almada, pelo foro do referido salgado situado em Cacilhas, a importância
de vinte e dois mil e quinhentos réis.
Durante duas décadas, serão construídas e reparadas naquele
estaleiro imensas embarcações e navios de tonelagem variável,
em madeira e aço, até que em 31 de Dezembro de 1893, o estaleiro
é vendido à firma Parry & Son, por noventa contos de réis,
confirmando-se a transacção por escritura de 15 de Julho de 1899.
A firma H. Parry tinha sua sede na Boa-Vista, em Lisboa, possuindo porém
umas instalações navais no lugar do Ginjal, junto à “Praia
das Lavadeiras”, no sopé do morro em que assenta o castelo de Almada.
Desconhece-se em que condições se instala no Ginjal, mas é
um facto que são ali construídas a partir da segunda metade do
século XIX, muitas e importantes embarcações, tanto de
madeira como metálicas, entre os quais o navio de passageiros “Belém”,
lançado à água no dia 25 de Abril de 1864, o primeiro navio
com casco em aço a ser construído em Portugal.
A partir desta data desenvolve-se uma indústria naval diferente, baseada
na construção de embarcações de cascos de ferro,
exigindo técnicas diferentes, equipamentos e condições
de estaleiro diferentes. É nesta data que a foz do Tejo assume, novamente,
um papel fundamental e quase exclusivo no panorama da indústria naval
nacional.
No início do séc. XX acentua-se este papel com a implantação
de novos estaleiros na margem Norte e na margem Sul do Tejo, bem como de empresas
de pesca de arrasto. Toda esta actividade de construção naval
e pesca vai fazendo surgir empresas ligadas à reparação
naval, aos aprestos marítimos, etc. ao mesmo tempo que o número
de operários ligados a estas actividades cresce. O peso da actividade
naval na economia portuguesa era cada vez maior e na foz do Tejo esse peso era
muito significativo.
No séc. XX outras empresas de construção e reparação
naval instalam-se ou reinstalação na margem Sul do Tejo como são
o caso do Arsenal de Marinha ou da Lisnave.
Em 2 de Janeiro de 1954, os herdeiros de H. Parry cederam todos os seus interesses
a Jacques de Lacerda, personalidade que tendo sido admitido na empresa em 1
de Setembro de 1922, aos 14 anos de idade, como ajudante de guarda-livros, virá
anos mais tarde a assumir a posse plena da empresa. Em 1972, 51% do capital
da firma é vendido ao grupo C.U.F., no qual a família MeIo detinha
a maioria do capital social, até que, em 1975, com a Revolução
de Abril o estaleiro é nacionalizado.
A falência é decretada em Maio de 1986, por proposta do Instituto
de Investimentos e Participações do Estado, sendo mais tarde arrematada
em hasta pública pela Lisnave, pela importância de 245 mil contos.
Segue-se o despedimento colectivo dos trabalhadores, o encerramento das actividades
e o derrube total das instalações, restando da firma H. Parry
& Son, apenas a memória e as docas secas no largo de Cacilhas.
V
Um ano antes de o industrial António José Sampaio estabelecer
com a Câmara de Almada as cláusulas do acordo para o arrendamento
da Praia da Lapa, debatia-se ao mais alto nível do Estado, a necessidade
de transferir a Direcção de Construções Navais,
mais conhecida por Arsenal de Marinha de Lisboa, da antiga Ribeira das Naus,
para lugar mais adequado, na Outra Banda.
Em 1871, o engenheiro Miguel Pais havia indicado a Margueira, lugar situado
no concelho de Almada, como o ideal para tal empreendimento, fundamentando a
sua opinião com a apresentação de um ambicioso projecto
de estaleiro e base naval para a Armada, situando-o entre o Pontal de Cacilhas
e a foz do rio Coina, precisamente o mesmo espaço que pouco antes o Governo
dos Estados Unidos da América do Norte havia solicitado, em regime de
arrendamento, para aí construir instalações de apoio às
suas esquadras que estacionavam nesta área do Atlântico.
Era uma época em que a indústria naval de ferro e aço tinha
iniciado o seu desenvolvimento em Portugal, não faltando trabalho nos
pequenos estaleiros que no Tejo se ocupavam das construções tradicionais
em madeira, que eram maioritárias, quer nas actividades da pesca, quer
na cabotagem de mercadorias e pessoas. Na ausência de estradas e caminhos
dignos desse nome, o Tejo era a via por excelência, através da
qual se fazia a ligação ao grande mercado que era a Capital e
os grandes navios que asseguravam as relações comerciais com o
mundo exterior.
Em 1901, o Almirante Augusto de Castilho sugere pela primeira vez o lugar do
Alfeite como estrategicamente aceitável para a instalação
do novo Arsenal, lembrando que: “Pensando-se trazer a via férrea
de Sul e Sueste até Cacilhas, se podiam conjugar os dois empreendimentos“.
Na mesma época, o engenheiro Adolfo Loureiro apontava por sua vez os
lugares de Coina, Montijo e até o Mar da Palha para a instalação
do novo Arsenal.
A ideia de um Arsenal de Marinha na Outra Banda toma forma em 1906, com a apresentação
de um anteprojecto da autoria do engenheiro militar António dos Santos
Viegas, não obtendo, porém, resultados práticos. Nova comissão,
novo projecto em 1922, até que em 1918 é criada a Junta Autónoma
para as obras do Arsenal de Marinha na margem sul do Tejo.
A situação irá arrastar-se durante anos e, em 1926, por
decreto ditatorial da Junta Governativa, a questão volta à ordem
do dia. Novo projecto foi elaborado, mais modesto que os anteriores, prevendo
o recurso a verbas das Reparações de Guerra que a Alemanha nos
teria de pagar, para suportar o financiamento dessa obra.
Apresentaram-se a concurso três concorrentes alemães, sendo a obra
adjudicada à firma "Grun & Bilfinger", de Mannhein.
Encontravam-se os trabalhos em adiantado estado de construção,
quando em 1931 a Alemanha resolveu unilateralmente dar por terminadas as reparações
de guerra, pelo que as obras foram interrompidas, recomeçando apenas
em 1933, sob a direcção da Comissão Administrativa Autónoma
das Obras do Arsenal do Alfeite.
No dia 31 de Dezembro de 1937, o Arsenal é dado por concluído
e o seu património avaliado em 95.577.741$00, sendo inaugurado em cerimónia
oficial que teve lugar em 3 de Maio de 1939, passando a reparar todos os navios
da Armada e a proceder à construção de embarcações
e grades navios, tanto militares como em resultado de encomendas de armadores
civis.
VI
Até meados do séc. XIX a construção naval portuguesa
utilizava exclusivamente a madeira na estrutura principal das embarcações,
aproveitando os recursos arbóreos do continente e das colónias
de África, Ásia e América. Contudo, desde muito cedo, à
madeira se juntaram artefactos metálicos, cuja cada vez maior utilização,
fez aparecer um conjunto de especialistas que aumentaram o leque de trabalhadores
envolvidos na construção das embarcações. Assim,
aos carpinteiros de machado, carpinteiros de limpos e calafates, juntaram-se
os fundidores, os ferreiros, os serralheiros, os caldeireiros, etc..
Apesar da indústria naval, fruto de uma tradição marítima
se estender por todo o território nacional, a maior especialização
a que a construção naval em ferro obrigava, acabou por concentrar
esta indústria pesada em áreas particulares como são o
caso de Viana do Castelo e a área metropolitana de Lisboa.
A construção naval tradicional, vocacionada para a construção
de embarcações de pesca de casco de madeira, continuou a fazer-se
um pouco por todo o litoral onde quer que houvesse um porto de pesca. Na área
metropolitana de Lisboa, à medida que se construíam os grandes
estaleiros de construção e reparação naval de navios
de casco metálico, os pequenos estaleiros tradicionais foram-se acantonando
em zonas mais interiores do rio, continuando a laborar com as mesmas técnicas
artesanais, resistindo até onde puderam à concorrência e
à morte das embarcações tradicionais.
VII
A Companhia Portuguesa de Pesca instala-se em Almada em 1920, no Convento de
São Paulo, com o capital de 3.600.000$00, tendo por objectivo a reparação
e apoio aos seus navios de pesca longínqua.
Com a recessão surgida na década de sessenta a empresa entra num
período de crise, situação em que se encontrava em 1974,
quando tem lugar a Revolução de Abril. Em 1976 é nacionalizada,
sucedendo-se nos anos seguintes sete comissões de gestão, encontrando-se
a sua frota totalmente paralisada no ano de 1977, até que o Governo decreta
a sua extinção.
Igual destino teve a Sociedade de Reparação de Navios, criada
em 1942 por acordo entre a Sociedade Nacional de Armadores do Bacalhau e Sociedade
de Armadores de Pesca do Arrasto, tinha por objectivos a reparação
e transformação de navios e utensílios de navegação
de pesca, pertencentes a armadores seus associados, os quais gravitavam na orbita
de influência do Almirante Henrique Terneiro.
O estaleiro dividia-se por duas oficinas, uma no Ginjal, em Cacilhas, outra
mais pequena na Doca Pesca, em Lisboa.
Instalado no sopé da falésia, com cais privativo, ali laboravam
a 20 de Maio de 1977 um efectivo de 630 trabalhadores, dos quais 52 mulheres,
distribuídos por vinte secções.
Na década de 80, por decisão governamental, a S.R.N. encerrava
as suas portas.
VIII
O industrial Alfredo da Silva, líder do grupo C.U.F., negoceia em 1937
com o Porto de Lisboa a concessão do estaleiro da Rocha do Conde de Óbidos,
fundando deste modo a primeira empresa do sector, a que foi dado o nome de CUF
– Estaleiros Navais de Lisboa.
A empresa prosperou e em 1961 o nome foi alterado para NAVALIS, Estaleiros Navais
de Lisboa, sendo dois anos mais tarde adoptada a denominação social
LISNAVE, Estaleiros Navais de Lisboa.
A nova designação marcou o início de uma era de expansão
e de modernização que funcionou em dois sentidos e com dois objectivos:
por um lado, trazer para Portugal a tecnologia mais avançada que existia
no exterior, com relevo para o Norte da Europa, reforçando a experiência
acumulada, por outro, concorrer decididamente no mercado internacional.
Três estaleiros holandeses e dois suecos, juntamente com bancos e companhias
de navegação portuguesas, tomaram o capital social da Lisnave
em 1963. O objectivo da empresa assim reformulado era o de construir e operar
um estaleiro com capacidade suficiente para que pudesse receber os maiores navios
que existiam no Mundo, tendo em especial atenção o previsto aumento
de tráfego na Europa Ocidental, no Mediterrâneo e no Atlântico.
Em 1964 começa a construção do estaleiro da Margueira,
projectado para proceder à reparação de grandes navios
e inaugurado em 1967, sendo possuidor, a partir de 1971, da maior doca seca
do Mundo.
De resto, a Lisnave manteve elos de ligação de formas diversas
com estaleiros espalhados pelo Mundo, como são os casos da Setenave,
Cabnave, em Cabo Verde, Estalnave, Sorefame e Sayde Mingas, em Angola, Guinave,
na Guiné-Bissau, Emana, em Moçambique, Asry , no Bahrain e Isry
, na Arábia Saudita.
No fim da década de noventa, a Lisnave encerrou as suas actividades em
Almada, deslocalizando para a Setenave os seus equipamentos e parte do pessoal,
enquanto a maioria dos trabalhadores acabou por ser dispensada.
Resta em Almada o estaleiro do Arsenal do Alfeite, virado por razões
estratégicas exclusivamente para o seu único cliente, que é
a Armada.
Primeiras iniciativas para a preservação museológica
IX
A concentração industrial que integrava no concelho de Almada
a Lisnave, o Arsenal do Alfeite, a Sociedade de Reparação de Navios,
a Companhia Portuguesa de Pesca, o H. Parry & Son, a Sociedade Nacional
dos Armadores do Bacalhau, empregava cerca de 15 mil trabalhadores nos anos
70 do séc. XX tendo diminuído o seu peso com o encerramento sucessivo
destas empresas. No cálculo de trabalhadores ligados à indústria
naval não estão contabilizados os trabalhadores de pequenas empresas
metalúrgicas e metalo-mecânicas ou de electricidade naval e outras,
que no conjunto acabavam por empregar um número significativo de trabalhadores
e que acabaram, muitas delas, por encerrar dado que os seus clientes preferenciais
cessaram a actividade. Esta situação provocou uma grave crise
económica e social em toda a margem sul tendo alterado a sua composição
económica, remetendo o sector de serviços para o primeiro lugar
na estrutura económica da região quando, até aí,
o sector secundário era primordial.
Esta rápida alteração na estrutura económica, com
o fecho e desmembramento das empresas da área da construção,
reparação naval e pescas, originou igualmente a perda de um património
industrial muito importante e a perda de referências da população
da zona ribeirinha do Tejo.
Sendo uma actividade especializada, o desaparecimento destas empresas lançou
para o desemprego um número significativo de operários especializados,
formados ao longo de décadas nas escolas das empresas, cuja colocação
noutras empresas, quer pela especialização quer, muitos deles,
pela idade, era muito difícil. Assim, à perda de um importante
património industrial junta-se um património humano ímpar
e que acabou abandonado à sua sorte.
Em 1984, com a criação do Museu Municipal de Almada, iniciou-se
a recolha de materiais da indústria naval, quer das empresas de construção
e reparação naval quer das pescas contudo, tratando-se de um património
que se situava maioritariamente no concelho de Almada, pela dimensão
e importância tinha um âmbito claramente nacional, ultrapassou rapidamente
a capacidade de recolha e tratamento do Museu.
Com o encerramento das empresas seguia-se a venda do seu equipamento cujo destino
foi, na maioria dos casos, o ferro-velho e a refundição.
Das raras excepções a esta situação, a Companhia
Portuguesa de Pesca, onde se localizaram algumas pequenas empresas do sector,
acabou por conservar em parte das suas instalações as oficinas
e equipamentos da antiga Companhia. Hoje ainda se encontram apetrechadas as
oficinas de fundição, serralharia e caldeiraria, as quais poucas
alterações sofreram desde a constituição da Companhia
Portuguesa de Pesca em 1920.
Sendo uma das últimas empresas com instalações construídas
de raiz e adequadas às funções e com equipamentos ainda
conservados no local e outros em reserva no Museu Municipal de Almada, sendo
uma actividade cuja dimensão nacional é inegável e cujo
património é cada vez mais escasso, até porque sofreu uma
profunda evolução tecnológica, é fundamental e sem
perda de tempo criar o Museu Nacional da Indústria Naval, pelo peso secular
da região de Lisboa, e particularmente da margem sul do Tejo, e pelas
razões apontadas, situá-lo nas instalações da antiga
Companhia Portuguesa de Pesca.
Acresce que toda a zona ribeirinha adjacente a estas instalações
foi fruto de uma profunda intervenção da Câmara Municipal
de Almada no âmbito do Programa de Reabilitação Urbana NovAlmadaVelha,
tendo reconstruído a Fonte da Pipa, local onde as embarcações
que saíam para as descobertas faziam a agoada, criado o Jardim do Rio
e o Elevador Panorâmico, que requalificaram o espaço e criaram
novas acessibilidades ao local, tornando um espaço de lazer muito aprazível.
Defender o sector naval, valorizar a sua memória e identidade
X
Apreciando em perspectiva a evolução histórica da indústria
da construção e reparação naval, bem como a sua
importância social e económica para todo o país e para a
região da grande Lisboa – com especial destaque, nos últimos
séculos, para o concelho de Almada na margem sul do Tejo – conclui-se
que um precioso património da nossa memória colectiva e identidade
cultural tem ficado aquém do digno tratamento e da fruição
que poderia (e deveria) merecer.
Sendo vital para o desenvolvimento económico do país a defesa
e a valorização da indústria naval portuguesa, dos seus
trabalhadores, da sua tecnologia e dos pólos de actividade que tem dinamizado,
não podemos ignorar que as opções de sucessivos governos
têm resultado no desmantelamento generalizado do sector produtivo nacional,
em que a indústria naval assumiu e assume um papel fundamental.
É indispensável inverter o curso das políticas que têm
vindo a ser seguidas e apostar na defesa e no desenvolvimento da indústria
nacional da construção e reparação naval, um sector
com uma tradição de inovação e de vanguarda técnica,
consolidada ao longo dos séculos no saber dos seus trabalhadores.
Por outro lado, afirmar e valorizar esse saber, essa inovação
e essa evolução histórica passa também pela promoção
do importante acervo que é possível e necessário recolher,
sistematizar e divulgar, prosseguindo e aprofundando a intervenção
que tem sido desenvolvida.
Neste contexto, em articulação com os agentes locais, com as comunidades
educativas, com os trabalhadores e suas estruturas representativas, com as empresas
do sector, é inegável a importância de uma iniciativa do
Estado Português no sentido da criação e actividade do Museu
Nacional da Indústria Naval.
Nestes termos, ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais
aplicáveis, os Deputados do Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português
abaixo-assinados apresentam o seguinte Projecto de Lei:
Capítulo I
Criação e Atribuições
Artigo 1º
Criação
1 - É criado o Museu Nacional da Indústria Naval, na dependência do Ministério da Cultura.
2 - O Museu terá a sua sede em Almada.
Artigo 2º
Atribuições
São atribuições do Museu:
a) Promover a recolha de máquinas, equipamentos, instrumentos, ferramentas,
bem como todos os materiais, incluindo os documentais, relacionados com a indústria
de reparação e construção naval em Portugal.
b) Promover a recolha audiovisual, arquivística e museológica
de testemunhos materiais e outros.
c) Proteger, estudar e divulgar todo o acervo recolhido.
d) Contribuir para implementar o interesse do público pelos aspectos
históricos que representam a herança cultural da indústria
naval.
e) Promover, designadamente através de exposições, colóquios,
seminários, publicações, visitas guiadas e conferências
o conhecimento acerca das formas culturais promovidas pela industrialização
e o desenvolvimento tecnológico, bem como do carácter social das
épocas a que as mesmas estão vinculadas.
f) Prosseguir todas as atribuições nas áreas da museografia,
da investigação e da acção cultural nos termos da
legislação em vigor.
Capítulo II
Órgãos e serviços
Artigo 3º
Órgãos
São órgãos do Museu:
a) o director;
b) o conselho consultivo;
c) a secção de administração geral.
Artigo 4º
Director
1 – O Museu é dirigido por um director, equiparado, para todos os efeitos a director de serviço.
2 – Compete ao Director:
a) Dar execução às disposições legais e às
determinações superiores relativas à organização
e funcionamento do Museu;
b) Convocar as reuniões do conselho consultivo e presidir a elas, com
voto de qualidade;
c) Superintender em todos os serviços e actividades do Museu;
d) Propor, ouvido o conselho consultivo, a nomeação e exoneração
do pessoal;
e) Elaborar anualmente um relatório sobre a vida do Museu, as actividades
prosseguidas e a prosseguir e as necessidades existentes e previsionais.
Artigo 5º
Conselho Consultivo
1 – O Conselho Consultivo é composto pelo director e o máximo de seis vogais nomeados pelo Ministro da Tutela e por dois vogais em representação do Município de Almada e da Área Metropolitana de Lisboa designados pelos órgãos competentes.
2 – Ao Conselho Consultivo compete:
a) Colaborar com o director na orientação geral do Museu;
b) Formular sugestões no sentido do melhoramento dos serviços
e da mais eficiente realização dos objectivos do Museu;
3 – Compete ainda ao Conselho Consultivo apresentar uma proposta de regulamento interno do Museu.
4 – O exercício das funções do vogal do Conselho Consultivo é em princípio gratuito, mas com direito a um abono para despesas a fixar por Portaria.
Artigo 6º
Secção de Administração Geral
1 - A secção de administração geral é o
serviço de apoio do Museu, funcionando junto do Director.
2 - À secção de Administração Geral compete:
a) Assegurar a gestão administrativa e financeira do Museu;
b) Promover a organização e permanente actualização
do cadastro dos imóveis e do inventário dos móveis pertencentes
ao Museu ou na sua posse.
Artigo 7º
Quadro de Pessoal
O Quadro de Pessoal do Museu será o constante de lista nominativa aprovada por despacho do Ministro da Tutela, de igual formalidade dependendo a sua alteração.
Artigo 8º
Pessoal
A gestão, a administração e o provimento do quadro de pessoal do Museu serão feitos de acordo com as disposições legais em vigor.
Capítulo III
Património e Receitas
Artigo 9º
Património
1 - Constituem património do Museu
a) A Sede do Museu constituída pelos edifícios, espaços
e zona de cais da ex-Companhia Portuguesa de Pesca, sitos no Olho de Boi/Ginjal,
na Freguesia de Almada e Concelho de Almada.
b) Os edifícios, construções, maquinaria, ferramentas,
outros objectos e documentos que sejam adquiridos pelo Estado com essa afectação
ou que sejam adquiridos pelo Museu através de verbas próprias.
c) Os materiais de qualquer tipo que resultem da sua actividade.
d) Os materiais de qualquer tipo que adquira por herança ou doação.
2 - O Museu poderá aceitar em depósito materiais e colecções que caibam dentro das suas atribuições.
Artigo 10º
Receitas
Constituem receitas do Museu:
a) As verbas para ele inscritas no Orçamento do Estado;
b) O produto das vendas de publicações ou outros materiais produzidos
pelo Museu;
c) Os subsídios, donativos ou legados de entidades públicas ou
privadas;
d) Quaisquer outras receitas atribuídas por lei ou autorizadas pelo Ministro
da Tutela.
Capítulo IV
Comissão Instaladora
Artigo 11º
Comissão Instaladora
1 - No prazo de 30 dias após a publicação da presente
lei, o Ministério da Cultura procederá à constituição
de uma Comissão Instaladora, com a seguinte composição:
a) Um representante do Ministério da Cultura.
b) Um representante do Instituto Português de Museus.
c) Um representante da Área Metropolitana de Lisboa.
d) Um representante do Município de Almada
2 - No prazo de 60 dias após a sua entrada em funcionamento, a Comissão Instaladora apresentará uma proposta de diploma regulamentar e uma relação dos materiais e documentos a incorporar no Museu.
Capítulo V
Disposições finais e transitórias
Artigo 12º
Disposições finais e transitórias
1 - O Ministério da Tutela tomará as providências necessárias
para, no prazo de 60 dias a contar da apresentação das propostas
da Comissão Instaladora:
a) Instalar os órgãos do Museu;
b) Proceder à transferência do património a que se refere
a alínea a) do n.º 1 do artigo 9º;
2 – O regulamento interno do Museu será aprovado por Portaria do Ministério da Tutela.
Artigo 13º
Entrada em vigor
A presente lei, na parte relativa à alínea a) do artigo 10º deste diploma, entra em vigor com a aprovação do próximo Orçamento do Estado.
Assembleia da República, em 7 de Maio de 2003