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A desregulada globalização de um sistema económico assente em opções neo-liberais tem conduzido à aceleração dos processos de transferências selvagens de empresas ou estabelecimentos de um país para outro a que se tem dado o nome de deslocalização.
Os processos de deslocalização, de que Portugal e os trabalhadores portugueses têm vindo a sofrer graves efeitos, assentam numa concepção depredadora do investimento empresarial que busca, sobretudo, obter o maior saque possível de recursos, apoios e mão-de-obra, obtendo num relativo curto espaço de tempo elevados volumes de lucros, após o que se deslocam para outras paragens onde repetem o mesmo comportamento, deixando atrás de si um rasto de desemprego e de depressão. É o chamado “investimento beduino”. No nosso País, o que se tem vindo a passar com a unidade portuguesa do grupo inglês de calçado C & J Clarks (588 trabalhadores) – considerada, aliás, a mais produtiva do grupo – em Castelo de Paiva, em processo de deslocalização para a Roménia, é somente o exemplo mais recente. O mesmo grupo actuou de idêntico modo em 2001 com a unidade de Arouca (368 trabalhadores). Mas recordemos os casos passados de deslocalização e reestruturação da Texas Instruments Samsung Electronic (TISE) – 740 trabalhadores - na Maia; a Longa Vida – Nestlé, em Matosinhos; a ERU, em Carcavelos; a Renault, de Setúbal e Cacia; a Grundig Auto-Rádios, em Braga (107 trabalhadores); a Indelma (600 trabalhadores), no Seixal; a Goela Fashion, em Santo Tirso (137 trabalhadores), a Schoeller (200 trabalhadores), em Vila Real; a ERES (500 trabalhadores), no Fundão; a Bagir (283 trabalhadores), em Coimbra, a Melka (170 trabalhadores), em Palmela; a Schuh Union (440 trabalhadores), na Maia; a ARA (300 trabalhadores), em Seia; etc. Ou o caso em curso da Lear (Palmela) - empresa produtora de capas para bancos de automóvel - abrangendo cerca de 1.500 trabalhadores ou a Alcoa (1.000 trabalhadores), dedicada à produção de cablagens para a indústria automóvel. Mas este comportamento não é exclusivo de multinacionais estrangeiras. Por exemplo, a Maconde, segundo as noticias vindas a público, está a encarar a transferência de uma parte da sua produção para a Roménia ou Bulgária.
Grande parte, senão a totalidade das empresas que se deslocalizam instalaram-se beneficiando de subsídios e outros apoios nacionais, municipais e comunitários e muitas delas abandonam os investimentos sem, sequer, cumprirem os contratos que assinaram (vejam-se os casos, entre outros, da Lear, em Palmela, da Texas Instruments, na Maia ou, agora da C & J Clarks, em Castelo de Paiva).
São, aliás, processos que não afectam somente Portugal e que, numa próxima oportunidade, poderão vir a afectar mesmo os próprios países para os quais hoje se deslocalizam empresas, num processo de transferências sucessivas para novas áreas geográficas sempre em busca de mais privilégios.
Apesar do coro generalizado de criticas e condenação por tais comportamentos, a verdade é que nem as instituições internacionais como a União Europeia ou a OCDE nem o Estado português adoptaram qualquer legislação que permitisse travar e penalizar estes processos. E, reconhecendo que num quadro de livre circulação de capitais este é um fenómeno que não se pode resolver inteiramente nos limites de um só País, nem por isso deixa de ser possível e necessário regular no plano nacional uma parte deste tipo de actuações e intervir no plano internacional, designadamente comunitário, para que nesse âmbito se legisle de forma mais global. Mas é precisamente isto que os Governos portugueses não têm feito, apesar da Assembleia da República, por proposta do PCP, ter aprovado em 1999 a Resolução n.º 25/99 publicado no Diário da República n.º 75/99, Série I-A, de 30 de Março de 1999 onde se pronunciava favoravelmente à adopção de um conjunto de medidas contra a deslocalização de empresas.
Apesar disto existem, contudo, algumas normas comunitárias que, embora de forma tímida, abrem perspectivas para alguma regulação e penalização das entidades que cometam irregularidades na execução de projectos de investimento apoiados por subvenções e para a intervenção dos trabalhadores nos processos de deslocalizações, transferências e despedimentos colectivos. São os casos da Directiva 98/59/CE do Conselho de 20 de Julho de 1998 relativa “à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes aos despedimentos colectivos”, da Directiva 2001/86/CE do Conselho de 8 de Outubro de 2001 que “completa o estatuto da Sociedade Europeia no que respeita ao envolvimento dos trabalhadores”, da Directiva 2002/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de Março de 2002 que “estabelece um quadro geral relativo à informação e à consulta dos trabalhadores na Comunidade Europeia” ou do Regulamento (CE) n.º 1260/1999 do Conselho de 21 de Junho de 1999 que “estabelece disposições gerais sobre os Fundos Estruturais” ou o “Livro Verde” que promove “um quadro europeu para a responsabilidade social das empresas”.
Neste contexto o PCP, na sequência de iniciativas anteriores, entende que é possível e necessário que o Estado português legisle no sentido de regular os processos de deslocalização de empresas em termos tais que não seja um factor de afastamento do investimento, estrangeiro ou nacional, sério e sustentado que, aliás, necessita ele próprio de um quadro regulamentar que o proteja da concorrência desleal que lhe é movida pelo “investimento beduino” e que está na origem dos processos de transferências irregulares de empresas e estabelecimentos de um país para outro não servindo nenhum processo sustentado de desenvolvimento económico e social.
O Projecto de Lei que o Grupo Parlamentar do PCP agora apresenta é uma iniciativa inovadora e constitui um contributo sério para a defesa da economia nacional, regional e local e dos postos de trabalho criados e a criar e para a própria defesa e atracção do investimento que assume os seus compromissos no quadro de práticas socialmente responsáveis.
No Projecto de lei que se segue propomos:
· Que todo o investimento suportado por ajudas públicas seja obrigatoriamente sujeito a contrato escrito onde figure, nomeadamente, um nível mínimo de incorporação nacional (o que, obviamente, dificulta depois o processo de transferência para além de constituir um valor acrescentado para o País), um tempo mínimo de duração de investimento nunca inferior a cinco anos, a regular em função da actividade principal e da dimensão do investimento; o volume e o perfil de emprego a criar;
· Que uma empresa que viole as condições contratuais a que se obrigou reembolse e indemnize o Estado português e o município ou municípios afectados num montante a fixar judicialmente segundo o princípio da proporcionalidade e tendo em conta as consequências económicas e sociais do seu acto;
· Que tais empresas fiquem impedidas de apresentar candidaturas a novas ajudas públicas nos cinco anos subsequentes à deslocalização e que os respectivos bens fiquem sujeitos a arresto judicial;
· Que o gestor ou gestores da empresa em causa respondam civil e criminalmente pelas consequências sociais a que a deslocalização der causa;
· Que os trabalhadores alvo de processos de despedimento colectivo na sequência de uma deslocalização tenham direito, no mínimo, a uma indemnização fixada no dobro do montante máximo previsto na lei geral, sem prejuízo de outros montantes devidos pela ilicitude do despedimento;
· Que toda a intenção de deslocalização, transferência, encerramento de estabelecimento ou empresa ou despedimento colectivo deva ser previamente comunicada às estruturas representativas dos trabalhadores, com uma antecedência mínima de 180 dias (ou 365 dias para investimentos cujo valor exceda 25 milhões de euros), no quadro dos procedimentos de informação e consulta previstos em directivas da União Europeia;
· Que, nestes casos, as estruturas representativas dos trabalhadores tenham acesso a toda a informação necessária à verificação e análise dos fundamentos técnicos, económicos ou outros apresentados para a deslocalização;
· Que seja instituído um Fundo Extraordinário de Apoio á Criação de Emprego, cujas receitas serão constituídas, entre outras, pelo produto dos reembolsos e indemnizações que as empresas que se deslocalizem sejam obrigadas a pagar e por dotações do Orçamento de Estado;
· Que o Fundo tenha como objectivo apoiar a recuperação da actividade económica e consequente manutenção ou criação de postos de trabalho e, neste quadro, seja também aplicado em iniciativas de criação de emprego promovidas e apresentadas pelos trabalhadores sujeitos a processos de despedimento;
· Que o Governo informe a Comissão Europeia, a OCDE e a OMC de todas as empresas que se deslocalizarem em condições irregulares e que promova junto das instâncias judiciais, nacionais e comunitárias, os competentes processos;
· Que o Governo, no prazo de noventa dias após a aprovação deste diploma, proponha ao Conselho Europeu que tome as medidas necessárias à criação de condições de estabilidade do investimento estrangeiro, designadamente quanto a períodos mínimos de estadia e ao estabelecimento de compensações e indemnizações a outorgar em caso de violação dos compromissos contratuais;
· Que o Governo português proponha também ao Conselho Europeu a criação efectiva de um Observatório Europeu Permanente com vista à verificação e fiscalização dos processos de deslocalização de empresas.
· Que o Governo torne público os contratos e ajudas públicas outorgadas a empresas protagonistas de processos irregulares de deslocalização.
Assim, os deputados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projecto de Lei:
Artigo 1ºA presente lei visa regular os processos de deslocalização de empresas.
Artigo 2º
Âmbito
A presente lei incide sobre os investimentos, nacionais ou estrangeiros, afectados a uma operação realizada com participação de Fundos ou outro tipo de comparticipação da União Europeia ou do Estado português, seja da Administração Central, Regional ou Local.
Artigo 3º
Condições do Investimento
1. Todo o investimento suportado por ajudas públicas será obrigatoriamente sujeito a contrato escrito onde figurem, nomeadamente:
a) Um nível mínimo de incorporação de valor acrescentado nacional tendo em conta o sector de actividade e a sua localização;
b) Um tempo mínimo de duração de investimento nunca inferior a cinco anos, a regular em função da actividade principal e da dimensão do investimento;
c) O volume e os perfis de emprego a criar;
d) As condições de formação e qualificação dos trabalhadores;
e) Os critérios a utilizar na selecção dos trabalhadores;
f) O método previsto para o cálculo de qualquer eventual indemnização de despedimento que não decorra da lei nacional.
2. O Governo certifica-se do cumprimento das condições contratuais assumidas e que essa operação não sofre alterações que afectem a sua natureza ou as suas condições de execução, designadamente quanto ao termo ou à mudança de localização do todo ou parte da respectiva actividade produtiva.
Artigo 4º
Deslocalização
1. Quando uma empresa deslocalizar a totalidade ou parte das suas actividades com violação das condições contratuais do investimento a que se obrigou, nomeadamente as que decorrem de subvenções comunitárias ou nacionais, fica obrigada ao reembolso das ajudas públicas que lhe foram outorgadas e indemnizará o Estado português e o município ou municípios afectados, num montante a fixar judicialmente atendendo, segundo o principio da proporcionalidade, à natureza da irregularidade ou da alteração e às consequências económicas e sociais produzidas.
2. As empresas referidas no número anterior, bem como todas aquelas que com elas tenham uma relação de domínio, definida nos termos do art.º 13.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-lei n.º 298/92 de 31 de Dezembro, ficam impedidas de apresentar candidatura a novas ajudas públicas nos cinco anos subsequentes ao processo de deslocalização.
3. Os bens das empresas que violem as condições contratuais ficam sujeitos a arresto decretado judicialmente, como dependência da acção de cumprimento, nos termos da legislação nacional.
Artigo 5º
Responsabilidade do Gestor
1. O gestor responde civil e criminalmente tanto pela violação das condições contratuais, como pelas consequências sociais a que a deslocalização da empresa der causa, na medida do exercício da sua gestão, nos termos da legislação nacional.
2. Considera-se culposa a actuação do gestor quando ele agir em desconformidade com as condições contratuais.
3. Havendo dois ou mais gestores que tenham agido conjuntamente, são solidárias as suas obrigações.
Artigo 6º
Garantia dos trabalhadores
Os trabalhadores alvo de processos de despedimento na sequência da deslocalização de uma empresa verificada nos termos previstos no art.º 4.º deste diploma têm direito a auferir uma indemnização determinada com base num valor correspondente ao dobro do montante máximo de indemnização fixado na lei, sem prejuízo de outros montantes devidos pela ilicitude do despedimento.
Artigo 7º
Informação aos trabalhadores
1. Toda a intenção de deslocalização, transferência, encerramento de estabelecimento ou empresa ou despedimento colectivo deve ser previamente comunicada às estruturas representantes dos trabalhadores no quadro das condições dos processos de informação e consulta previstos, designadamente, nas Directivas 98/59/CE do Conselho, de 20 de Julho de 1998, 2001/86/CE do Conselho de 8 de Outubro de 2001 e 2002/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Março de 2002.
2. A comunicação referida no número anterior é feita com uma antecedência mínima de 180 dias e deve conter os fundamentos técnicos, económicos ou outros que fundamentam a decisão.
3. No caso de investimentos cujo valor exceda 25 milhões de euros o prazo referido no número anterior é de 365 dias.
4. As estruturas representativas dos trabalhadores têm direito a solicitar esclarecimentos aos gestores da empresa e a receber a informação necessária à verificação e análise dos fundamentos apresentados nos termos do número anterior.
Artigo 8º
Fundo Extraordinário de Apoio
1. É instituído um Fundo Extraordinário de Apoio à Criação de Emprego com vista à recuperação da actividade económica e consequente manutenção ou criação de postos de trabalho.
2. O Fundo Extraordinário será gerido por uma comissão directiva à qual compete efectuar, em nome e por conta e ordem do Fundo, todas as operações necessárias à realização dos seus objectivos.
3. Constituem receitas do Fundo Extraordinário designadamente:
a) Os valores resultantes dos reembolsos e indemnizações previstos no artigo 4º;
b) As dotações do Orçamento do Estado;
c) As subvenções, comparticipações, subsídios ou donativos concedidos por quaisquer entidades nacionais, bem como a receita da venda de bens doados;
d) O rendimento dos bens que fruir a qualquer título;
e) O produto de legados ou heranças.
Artigo 9º
Criação de novos empregos
O Fundo Extraordinário previsto no artigo anterior será também aplicado em iniciativas de criação de emprego promovidas e apresentadas pelos trabalhadores sujeitos a processos de despedimento resultante de deslocalização de empresas.
Artigo 10º
Informação
1. O Governo informa a Comissão Europeia, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e a Organização Mundial do Comércio (OMC) de todas as empresas que se deslocalizarem nas condições integrantes deste diploma.
2. O Governo deve promover junto das instâncias judiciais, nacionais e comunitárias, o competente processo com base na violação das condições contratuais.
Artigo 11º
Notificação comunitária
O Governo, nos noventa dias seguintes à aprovação da presente lei, proporá ao Conselho Europeu que tome as medidas necessárias à criação de condições de estabilidade do investimento estrangeiro, designadamente quanto a períodos mínimos de estadia; compensações e indemnizações a outorgar em caso de violação dos compromissos contratuais bem como outras sanções e ainda a implementação de um Observatório Europeu Permanente com vista à verificação e fiscalização dos processos de deslocalização de empresas.
Artigo 12º
Publicidade
O Governo tornará público, no prazo máximo de trinta dias após a notificação pela empresa do processo de deslocalização ou despedimento colectivo, os contratos e ajudas públicas outorgadas à empresa em causa.
Artigo 13º
Regulamentação
O Governo regulamentará no prazo de noventa dias as normas da presente lei que de tal careçam e designadamente as que se referem ao art.º 8.º
Artigo 14.º
Entrada em vigor
A presente lei, na parte relativa à alínea b) do n.º 3 do art. 8.º deste diploma, entra em vigor com a aprovação do próximo Orçamento de Estado.
Assembleia da República,em 29 de Janeiro de 2003