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Projecto de Lei nº 1/IX
Interrupção Voluntária da Gravidez

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I - Introdução

Portugal continua a ter uma das mais atrasadas legislações penais da Europa em matéria de Interrupção Voluntária da Gravidez. A lei penal portuguesa continua a tratar como criminosas as mulheres que recorrem à IVG.

Nos tempos mais recentes o debate em torno da despenalização da interrupção voluntária da gravidez ficou marcada pela realização em 1998 de um referendo nacional, acordado entre as lideranças do PS e do PSD, que incidiu sobre matéria constante num projecto de lei já aprovado na generalidade na Assembleia da República.

O referendo de 28 de Junho de 1998, em que votaram apenas 31,9% dos eleitores inscritos, não foi vinculativo, não existindo portanto qualquer limitação legal à capacidade de a Assembleia da República legislar neste campo. A Assembleia da República toda a legitimidade jurídica e também política para tratar esta questão. Não é aceitável que se invoque um referendo que foi imposto após uma votação na generalidade, impedindo a continuação do processo legislativo em curso, para negar legitimidade política à Assembleia da República para intervir nesta matéria.

Passados quase 4 anos comprova-se que a manutenção da criminalização do recurso à interrupção não tem qualquer eficácia no combate ao aborto clandestino. Estimam-se entre 20 a 40 mil os abortos clandestinos efectuados em Portugal em cada ano; nos últimos 6 anos cerca de 9 000 mulheres portuguesas deslocaram-se a Espanha aportar em clínicas privada espanholas; nas jovens entre os 15 e os 19 anos uma em cada duzentas já abortaram; nas jovens adultas de 19 anos essa proporção aumenta para uma em cada cinquenta (5%).

Em 1998 e 1999 foram registados e investigados pelas autoridades policiais 49 casos e em 2000, 23 casos. Para além disso registaram-se em 1998 e 1999, 11 processos, com 13 arguidos, tendo sido condenadas 8 pessoas.

Assumiu especial destaque, pela sua projecção mediática e pela onda de solidariedade nacional e internacional que gerou, o julgamento de 17 mulheres no tribunal da Maia, de que resultou aliás a condenação de uma delas. Caíram por terra os hipócritas argumentos de que da penalização inscrita na lei não resultaria julgamento e condenação efectiva. Entre outros assumiu também importância o recente julgamento de Setúbal onde a ausência de perícias médicas e legais que provassem ter existido gravidez, levou a que o processo fosse declarado nulo.

O PCP tem intervindo desde 1982 na Assembleia da República em matéria de alteração da lei penal tendo na anterior legislatura apresentado igualmente um projecto de lei de despenalização da IVG que não chegou a ser discutido, mercê da dissolução da Assembleia da República.

Lutámos de forma empenhada em todos os momentos pela despenalização da IVG, ao mesmo tempo que nos empenhámos na consagração de medidas visando reduzir a sua prática. Propusemos e vimos consagradas medidas relativas à defesa da educação sexual, ao reforço das garantias do direito à saúde reprodutiva ou ao reconhecimento e protecção da função social da maternidade e paternidade, áreas em que continuaremos a lutar por mais direitos.

Foi aliás por iniciativa do PCP que se aprovaram já na VIII Legislatura a Lei n.º 9/2001, de 21 de Maio, que "Reforça os mecanismos de fiscalização e punição de práticas laborais discriminatórias em função do sexo e a Lei nº 90/2001, de 20 de Agosto, de "Medidas de apoio social às mães e pais estudantes".

Mas o reforço nos meios preventivos do aborto não elimina o problema do aborto clandestino, ainda que o atenue.

Por isso continua a ser essencial a despenalização. Porque os graves problemas sociais das mulheres portuguesas continuam a empurrá-las para o aborto clandestino, realizado no estrangeiro ou, como é mais habitual, através do recurso à rede de prestação clandestina destes serviços ou utilizando bárbaros métodos caseiros ao dispor das menos afortunadas.

Todas estas mulheres são vítimas de uma lei penal geradora de mais danos do que aqueles que visa prevenir, sejam do foro físico ou psíquico. Por vezes perdem a própria vida.

Portugal não pode pois continuar a situar-se entre os países que negam à mulher a liberdade de decidir em matéria de direitos sexuais e reprodutivos, componente fundamental do direito à igualdade.

II- Síntese do Projecto de Lei

O projecto de lei que apresentamos corresponde no essencial aos Projectos apresentados na anterior legislatura.

Propomos:

- A exclusão da ilicitude da interrupção voluntária da gravidez quando realizada nas primeiras 12 semanas a pedido da mulher para garantir o direito à maternidade consciente e responsável.

- Nos casos de mãe toxicodependente o alargamento do período atrás referido para as 16 semanas;

- A especificação de que, havendo risco de o nascituro vir a ser afectado pelo síndroma de imunodeficiência adquirida, o aborto (eugénico) poderá ser feito até às 24 semanas (situação que já está compreendida na actual lei, mas que convirá explicitar dadas algumas resistências ainda existentes relativamente à aplicação da lei);

- O alargamento de 12 para 16 semanas do prazo dentro do qual a IVG pode ser praticada sem punição, nos casos em que a mesma se mostre indicada para evitar perigo de morte ou de grave lesão para o corpo ou saúde física ou psíquica da mulher grávida. Na verdade, a vida demonstrou, nomeadamente nas doentes submetidas a tratamentos antidepressivos, a necessidade de alargamento do prazo;

- O alargamento para 24 semanas no caso de vítimas de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual quando menores de 16 anos ou incapazes por anomalia psíquica;

- A obrigação de organização dos serviços hospitalares, nomeadamente dos distritais, por forma a que respondam às solicitações de prática da IVG;

- A impossibilidade de obstruir o recurso à IVG através da previsão da obrigação de encaminhar a mulher grávida para outro médico não objector de consciência ou para outro estabelecimento hospitalar que disponha das condições necessárias à prática da IVG;

- A despenalização da conduta da mulher que consinta na IVG fora dos prazos e das condições estabelecidas na lei;

- Acesso a consultas de planeamento familiar.

Com o presente projecto de lei pretende o PCP que se institua um regime legal mais adequado do que o vigente, nomeadamente tendo em atenção os conhecimentos da medicina, o qual tem de ser acompanhado por políticas que garantam a realização pessoal dos cidadãos e que protejam a maternidade e a paternidade.
Assim, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projecto de Lei:

Artigo 1.º
(Interrupção da gravidez não punível)

O artigo 142.º do Código Penal passa a ter a seguinte redacção:

1 - Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, quando realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez a pedido da mulher para preservação do direito à maternidade consciente e responsável.

2 - De igual modo, não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, com o consentimento da mulher quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina:

a) (actual alínea a) do n.º 1 do artigo 142.º);

b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física e psíquica da mulher e for realizada nas primeiras 16 semanas de gravidez;
c) (actual alínea c) do n.º 1 do artigo 142.º, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 90/97, de 30 de Julho);
d) Houver seguros motivos que indiciem risco de que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de HIV (síndroma de imunodeficiência adquirida) e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, comprovadas nos termos referidos na alínea anterior;
e) (actual alínea d) do n.º 1 do artigo 142.º, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 90/97, de 30 de Julho);
f) Nos casos referidos na alínea anterior, sendo a vítima menor de 16 anos ou incapaz por anomalia psíquica se a interrupção da gravidez for realizada nas primeiras 24 semanas comprovadas nos termos referidos na alínea c).

3 - Sempre que se trate de grávida toxicodependente não é punível a interrupção da gravidez efectuada a seu pedido nas condições referidas no n.º 1 durante as primeiras 16 semanas de gravidez.

4 A verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez, referidas no nº 2, é certificada em atestado de médico, escrito e assinado antes da intervenção, por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, a interrupção é realizada.

5 -Actual n.º 3.
6.-Actual n.º 4.

Artigo 2.º
(Despenalização da conduta da mulher grávida)

O artigo 140.º do Código Penal passa a ter a seguinte redacção:

Artigo 140.º
(Interrupção da gravidez)

1 - Actual n.º 1.

2 - Actual n.º 2.

3 - Eliminado.

Artigo 3.º
(Garantias de prática da IVG nos termos da presente lei)

1 - Os estabelecimentos públicos de saúde, nomeadamente a nível distrital, serão organizados por forma a dispor dos serviços necessários à prática da interrupção voluntária da gravidez, de acordo com o previsto na presente lei, sem prejuízo do direito à objecção de consciência dos médicos e demais profissionais de saúde.

2 - A objecção de consciência deverá ser declarada na altura em que for solicitada a interrupção da gravidez, e terá de constar de documento então assinado pelo objector, sendo tal objecção imediatamente comunicada à mulher ou a quem, no seu lugar, pode prestar o consentimento.

3 - A comunicação referida no número anterior deve ser acompanhada de informação sobre o profissional que não seja objector de consciência.

4 - Sempre que um estabelecimento público de saúde não disponha de condições para a prática de interrupção voluntária da gravidez, as solicitações de intervenção ali apresentadas serão imediatamente encaminhadas por aquele serviço ao estabelecimento de saúde mais próximo onde seja praticada a interrupção voluntária da gravidez, por
forma a que esta seja efectuada nas condições e prazos previstos na presente lei.

Artigo 4.º
(Planeamento familiar)

A instituição onde se tiver efectuado a interrupção voluntária da gravidez providenciará para que a mulher, no prazo máximo de sete dias, tenha acesso a consulta de planeamento familiar.

Artigo 5.º
(Entrada em vigor)

A presente lei entra em vigor no dia imediato ao da sua publicação.

Assembleia da República, em 10 de Abril de 2002