Projecto
de Lei nº 380/VII (PCP)
Define as condições de acesso e exercício da actividade de intérpretes de língua
gestual
Intervenção do deputado Bernardino Soares
11 de Fevereiro de 1998
Senhor Presidente,
Senhores Deputados:
A comunidade surda paga ainda hoje o preço da estigmatização a que as suas línguas
foram sujeitas desde o século passado.
O tristemente simbólico "Congresso sobre a educação dos surdos" realizado
em Milão no ano de 1880 decretou que as línguas gestuais das diferentes comunidades
surdas em vários países não eram verdadeiramente línguas. Consequentemente,
baniu de todas as instituições de ensino frequentadas por surdos as línguas
gestuais.
Provavelmente teve influência nesta absurda decisão o facto de apenas estar
presente um único congressista surdo.
O peso da discriminação das línguas gestuais sente-se com grande força até aos
dias de hoje. E isto é muito grave. É grave porque representa o desprezo pela
riqueza cultural e linguística que são as línguas gestuais. Mas é ainda mais
grave porque a negação e o menosprezo das línguas gestuais são um obstáculo
ao direito de participação e integração plena da comunidade de surdos, isto
é, dos surdos, mas também dos pais, professores e amigos que integram esta comunidade.
Esta comunidade não precisa de língua gestual para funcionar em circuito fechado
no seu meio mais restrito. Ao invés precisa da língua gestual para que haja
verdadeira comunicação e integração de todos os seus elementos na sua comunidade
nacional.
A necessidade de remover as barreiras que impedem o reconhecimento das línguas
gestuais tem estado presente em diversos documentos de cariz internacional.
Assim, vários congressos de surdos a nível internacional, recomendaram quer
o reconhecimento das línguas gestuais, quer da profissão de intérprete.
Também as Nações Unidas se pronunciaram sobre o assunto, integrando esta problemática
na Resolução nº 48/96 que definiu as "Normas sobre igualdade de oportunidades
para as pessoas com deficiência".
Finalmente, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução sobre línguas gestuais que prevê a abolição pelos Estados-membro dos obstáculos à utilização das línguas gestuais e sublinha a importância de intérprete de língua gestual.
Também a Constituição Portuguesa passou a ter, após a última revisão constitucional referência à Língua Gestual Portuguesa.
Também em Portugal a comunidade de surdos tem a sua língua - Língua Gestual Portuguesa. Trata-se de uma língua própria, diferente da língua portuguesa e das línguas gestuais dos outros países, isto é, das outras comunidades de surdos. É a primeira língua para os surdos, aquela que em primeiro lugar e naturalmente utilizam para comunicar.
A Língua Gestual Portuguesa é por isso um instrumento indispensável para a verdadeira integração dos surdos portugueses e para que usufruam da sua plena cidadania.
As crianças e os jovens surdos são talvez os principais afectados
por não estar ainda garantido o ensino e o acesso à Língua Gestual Portuguesa
e a sua utilização nas mais diversas situações da sociedade, com especial incidência
no ensino.
A sua consagração no artigo 74º, dedicado ao ensino demonstra bem a importância
fundamental que tem nesta área para a igualdade de oportunidades dos surdos.
A não existência de intérpretes no sistema de ensino, nomeadamente no ensino
superior, constitui um obstáculo quase intransponível ao acesso dos surdos a
este direito.
De resto, o mesmo acontece no acesso a tantos outros direitos como a saúde em
que a inexistência de intérpretes nos vários serviços públicos leva a que sejam
discriminados os cidadãos surdos.
Diversos passos são necessários para que a actual situação, em que são insuficientes
as condições de acesso à utilização da Língua Gestual Portuguesa.
O projecto que o PCP hoje aqui apresenta é apenas uma parte daquilo que é preciso
fazer nesta área.
Mas é uma parte muito importante. Trata-se afinal de criar o quadro legal para
o acesso e exercício da profissão de intérprete de língua gestual.
Esta é uma profissão que existe há vários anos e que começou por ser uma ocupação
de carácter não profissional feita por pessoas que contactavam com frequência
com a comunidade surda, em especial os próprios familiares dos surdos.
Embora ainda hoje a maioria dos intérpretes sejam familiares de surdos, a criação
da Associação dos Intérpretes de Língua Gestual Portuguesa abriu a possibilidade
de uma formação e exercício da profissão em moldes mais profissionais.
É preciso ter em conta que esta tem necessariamente de ser uma profissão em
crescimento rápido e urgente. De outro modo continuarão a ser inúmeras as situações
em que os surdos vêm cerceado o seu acesso ao ensino, aos serviços públicos,
especialmente os de saúde, e a todos os direitos decorrentes de serem cidadãos
de pleno direito.
Impõe-se por isso um investimento forte na formação de intérpretes de Língua
Gestual, para que cada vez mais sejam vencidas as barreiras que aos surdos se
colocam.
Ora este investimento e o crescimento desejável do número de intérpretes necessita
do reconhecimento legal desta profissão. Por várias razões.
Desde logo porque estes profissionais devem exercer a sua profissão com garantias.
Têm o direito de ver definidos na lei os princípios por que se devem reger,
bem como as condições de acesso a esta profissão.
Mas também porque o desenvolvimento rápido que se deseja da formação de intérpretes
deve ser ancorado em sólidas bases que lhe garantam a qualidade indispensável
à importância do serviço que prestam. Não é admissível que a profissão de intérprete
de Língua Gestual Portuguesa continue numa situação de semi-clandestinidade
e no esquecimento dos que legislam e dos que governam.
O projecto de lei que o PCP hoje apresenta tem como grande fonte as propostas
da Associação Portuguesa de Surdos. Define desde logo o que são os intérpretes
de Língua Gestual e quais as suas funções. Presta depois atenção aos requisitos
mínimos para o exercício da actividade em que para além da escolaridade obrigatória
e do curso de intérprete se exige a maioridade o que no conjunto garante a qualidade
técnica e a estabilidade e maturidade necessárias para o desempenho desta função.
Presta-se depois especial atenção à formação através da definição das linhas
gerais dos cursos de intérpretes de língua gestual. Nestes assegura-se a existência
do papel regulador do estado na homologação dos curricula, abrindo-se espaço
à organização dos cursos a outras entidades e assegurando-se a participação
das organizações de surdos e dos intérpretes de Língua Gestual.
Propõe-se também um conteúdo mínimo para o currículo do curso, considerado essencial
para que se constitua uma base sólida de formação.
O projecto que apresentamos avança igualmente com algumas regras do foro deontológico
indispensáveis para que o exercício de actividade se faça de modo idóneo. São
exemplos disso os deveres de sigilo, de interpretação fiel ou de não influencia
das partes a que o intérprete está sujeito.
Finalmente, é necessário que se institua um período e mecanismos de transição,
já que não podemos esquecer os intérpretes que têm ao longo dos anos dado o
seu contributo para vencer a barreira da língua. A estes deve ser facultado
um curso de reciclagem, que lhes permita alcançar o pleno reconhecimento à luz
do novo estatuto legal.
Não é admissível que o legislador, que a Assembleia da República continue a
ignorar a necessidade desta profissão e da criação de condições para um completo
reconhecimento da Língua Gestual Portuguesa.
É preciso que a Assembleia da República estabeleça as regras com que esta profissão
se deve reger e com isso contribua decisivamente para o salto qualitativo e
quantitativo que é preciso dar nesta matéria.
Sabemos que esta lei não é por si só suficiente para resolver todos os problemas
dos intérpretes, dos surdos e da aplicação da Língua Gestual Portuguesa. Mas
é condição necessária para que isso aconteça e para que se dê um passo em direcção
a uma sociedade que todos receba por igual.
Disse.