A Reforma da Segurança Social e da Saúde
Declaração de Edgar Correia, da Comissão Política do PCP
15 de Abril de 1998
1. A proposta do Governo de estabelecer negociações para a reforma dos sectores da Segurança Social e da Saúde carece de duas clarificações prévias.
A primeira para sublinhar o entendimento dos comunistas de que as alterações que é necessário - e até urgente - introduzir nestas duas áreas fundamentais, devem ser portadoras de um sentido perfeitamente inequívoco: mais e melhor Saúde, mais e melhor Segurança Social, para todos os portugueses.
É legítima a alegria que o país sente perante realizações nacionais como a Ponte Vasco da Gama. Ou como a EXPO 98, que abrirá as suas portas dentro de pouco mais de um mês. Ou como o prosseguimento da construção de auto-estradas. Mas quase vinte e cinco anos decorridos depois do 25 de Abril, quando já nos posicionamos à entrada do século XXI, a apreciação sobre a sociedade a que pertencemos e a qualidade da vida que nela é vivida, não pode estar confinada aos sinais exteriores da modernização técnica.
É preciso olhar para as pessoas. E esse olhar mostra, de forma crua, a enorme distância social que nos separa dos países mais desenvolvidos, com indicadores que nos remetem para a cauda da Europa. Mostra que o problema fundamental da Segurança Social é o nível muito baixo das pensões da Segurança Social auferidas depois de uma vida de trabalho. Mostra, ao lado de um velho e de um novo riquismo voraz, as crescentes desigualdades sociais, que atingem a grande maioria da população. E mostra, também, no acesso à prestação de cuidados de saúde, a persistência e o agravamento de discriminações de natureza classista, bem como a inadmissível situação existente em muitos serviços, com filas de espera, atrasos e falta de condições mínimas de atendimento dos utentes.
A justiça social, em todas as suas dimensões, necessita de ser assumida como o novo rumo político do país.
A segunda clarificação prévia que os comunistas entendem fazer prende-se com os equívocos conceitos de "pacto" ou de "Plataforma de Acordo do Regime" utilizados pelo Governo na apresentação do seu objectivo negocial .
Sejamos directos: para o PCP, o grande e único "pacto" político - social que rege a vida democrática chama-se Constituição da República. E este sublinhado é tanto mais importante quanto a própria Lei Fundamental consagra, explicitamente, o quadro dos direitos sociais dos portugueses e as incumbências do Estado em relação à sua concretização.
Recorde-se, em relação à protecção social, que a nossa Constituição não se limita a proclamar, no seu Artigo 63º, que "todos têm direito à segurança social" e no Artigo 64º, que "todos têm direito à protecção da saúde". Ela estabelece igualmente que "incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado", ao mesmo tempo que explicita que "o sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, na velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho". É também o texto constitucional que fixa que "o direito à protecção à saúde é realizado" nomeadamente "através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito"; e que "para assegurar o direito à protecção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado (entre outros aspectos) garantir o acesso a todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação, garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde, e orientar a sua acção para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos".
É neste quadro que o PCP manifesta a sua disponibilidade para participar na negociação, proposta pelo Governo, com vista à reforma da Segurança Social e da Saúde.
Disponibilidade que não é dissociável do activo - e simultâneo - empenho dos comunistas, na afirmação pública das suas próprias análises e propostas. E que se estende, igualmente, a um alargado processo de consulta e de diálogo que pretendemos impulsionar, abrangente quer das organizações representativas dos trabalhadores, com destaque para a CGTP-IN, quer de todo um vasto leque de organizações sociais e de individualidades que têm vindo a manifestar-se, de formas muito diversas, pelo direito à segurança social e à saúde, e pela defesa e aperfeiçoamento dos sistemas públicos que são instrumentos da sua concretização.
Sublinha-se, ainda, a ideia de que as reformas da Segurança Social e da Saúde, porque tocam de uma forma muito directa interesses vitais de toda a população, não podem ser realizadas no segredo dos gabinetes, fora de um salutar quadro de informação e de debate públicos, com o mais amplo envolvimento e participação dos cidadãos que for possível.
Pela parte do PCP assumimos o princípio fundamental de uma negociação permanentemente aberta ao debate público e à mobilização social. Do Governo esperamos - não evitamos as palavras, reclamamos - condições para uma constante e rigorosa informação e esclarecimento da opinião pública, designadamente através da mobilização do serviço público de comunicação social (RTP e RDP) que até agora tão reduzida e tão pouco pluralista atenção tem prestado a estas matérias.
As condições de partida para a negociação agora proposta pelo Governo, e por exclusiva responsabilidade deste, estão longe de ser as melhores.
Na realidade, não foi cumprida a promessa eleitoral do PS - que consta do "Contrato de legislatura" aprovado nos seus "Estados Gerais" - de confiar a elaboração de um "Livro Branco" sobre o sistema de Segurança Social a "uma equipa de peritos independentes de nomeação parlamentar". O que aconteceu - e que vivamente se deplora - é que o Governo tenha chamado a si a nomeação de uma tal Comissão, tenha definido uma composição maioritariamente identificada com os interesses ou com os pontos de vista das seguradoras privadas e das sociedades gestoras de fundos de pensões, e tenha entregue a sua presidência a um conhecido dirigente do partido que suporta o executivo governamental. O facto de terem emergido, no seio da Comissão, um conjunto de qualificadas e corajosas vozes, que assumiram pública e frontalmente pontos de vista claramente diferenciados das opções neo-liberais da "maioria" nomeada pelo Governo - atitude que sem dúvida valorizamos - não esbate a crítica fundamental que dirigimos ao facto da Comissão não ter emanado da Assembleia da República e de não ter sido garantida a participação, nos seus trabalhos, de representantes de todos os partidos com assento parlamentar.
Crítica aliás análoga à que também dirigimos ao Governo, a respeito da origem, composição e natureza, do Conselho de Reflexão sobre a Saúde, que foi nomeado pelo executivo para "proceder a estudos e apresentar propostas" sobre a reforma do sistema de saúde.
2. No que respeita às propostas apresentadas pelo Governo na Assembleia da República referentes ao "enquadramento, objectivos e propostas para uma reforma da Segurança Social" e aos "princípios fundamentais da reforma estrutural da Saúde", sem prejuízo de um ulterior, mais concreto e detalhado pronunciamento pela parte do PCP, torna-se desde já necessário exprimir um primeiro e breve comentário.
Trata-se de documentos que combinam algumas linhas de carácter genérico, orientações vagas, medidas pontuais de natureza e interesse muito diversos, - cuja utilidade substantiva, nesta fase, não se visiona - com uma clara opção por teses e medidas de inspiração neo-liberal nos pontos politicamente mais sensíveis. E que se fossem adoptadas conduziriam os sistemas públicos de Segurança Social e de Saúde, através de um calculado gradualismo, pelos caminhos da efectiva desresponsabilização do Estado nas áreas sociais, da redução dos direitos sociais dos portugueses, e da progressiva transferência da protecção social para a esfera das actividades lucrativas do sector financeiro e, em particular, das seguradoras.
A título de exemplo referem-se, em relação à Segurança Social:
- a adopção de uma filosofia conducente à substituição da segurança social, enquanto direito social universal e enquanto sistema público que lhe serve de suporte, por um sistema assistencialista, confinado na prática ao sector da população de mais baixos recursos, e que desvaloriza fortemente os direitos adquiridos através das contribuições dos trabalhadores;
- a introdução do plafonamento, ou seja, a redução, através de um tecto do sistema público, quer da segurança social, quer do regime da Função Pública, apesar de não ter sido demonstrada qualquer vantagem dessa medida para os activos / beneficiários e para o próprio sistema, e das desvantagens serem evidentes; conjugada com a atribuição de incentivos fiscais à aquisição de produtos de poupança privada para o desenvolvimento de esquemas complementares de reforma acima do plafond;
- a clara tentativa de redução de direitos, a pretexto da "equidade", nomeadamente através da generalização da selectividade (apresentada como uma "renovação do conceito de universalidade" !), da limitação de prestações à "condição de recursos", da sujeição das pensões adquiridas por contribuições ao conceito da regressividade, e da restrição da atribuição de pensões de sobrevivência;
- a redução da Taxa Social Única, a ser compensada por receita fiscal através de uma "contribuição de solidariedade", mas sem quaisquer garantias de que ela não venha a sobrecarregar ainda mais os trabalhadores, em relação aos empregadores, do que sucede actualmente;
- a não assumpção de qualquer compromisso efectivo de pagamento, mesmo a prazo, da elevadíssima dívida do Estado em relação à Segurança Social; e a ausência de qualquer perspectiva temporal, seja a 10 ou 15 anos, de aproximação das prestações sociais ao nível médio que vigoram na generalidade dos países da União Europeia.
Em relação à Saúde, é consensual e positivo o propósito de proporcionar ganhos em saúde aos cidadãos. Mas a estudada opacidade dos enunciados relativos à concretização de alguns dos objectivos para a reforma estrutural do sector, não consegue ocultar a gravidade das orientações propostas pelo Governo no domínio do financiamento.
Trata-se de uma política de redução progressiva do Serviço Nacional de Saúde a fins assistenciais correntes, de forma a condicionar o acesso gratuito à saúde a um pacote limitado de cuidados clínicos essenciais e aos actos de saúde pública. Conjugada com uma política de alargamento do financiamento público da prestação de cuidados de saúde por entidades privadas, e de afectação a essas entidades de mais vastos recursos públicos.
Estas orientações, se viessem a ser adoptadas, não deixariam de conduzir a dois resultados particularmente indesejáveis: ao agravamento do já elevadíssimo nível de despesas de saúde privadas, pagas pelos portugueses directamente do seu bolso (que é de cerca de 40% no nosso país, em vivo contraste com os 25% da média da União Europeia); e à pressão para o aumento das despesas com a saúde determinada pela lógica do lucro do capital financeiro e transnacional ao estenderem o seu domínio no sector.
3. O PCP elaborou e apresentou oportunamente ao país, um conjunto de fundamentadas orientações e medidas, com vista à implementação de profundas reformas democráticas no Serviço Nacional de Saúde e na Segurança Social.
A postura dos comunistas parte da valorização dos passos dados no domínio da protecção social no nosso país, depois do 25 de Abril. Avalia, com particular insatisfação, o nível de concretização ainda baixo dos direitos à segurança social e à saúde dos portugueses. E assume claramente não só a necessidade, mas a possibilidade e a vantagem de uma reforma democrática que defenda, aperfeiçoe e melhore a Segurança Social e o Serviço Nacional de Saúde, como patrimónios sociais maiores dos trabalhadores e do povo português.
É nessa direcção que continuamos vivamente empenhados em impulsionar todas as nossas energias.