Imperialismo em cavalgada para Leste
Para onde vai a Ucrânia?

 

Luís Carapinha
Colaborador da Secção Internacional

Com mais de metade dos ucranianos desiludidos com o novo poder do presidente Iúchenko, os EUA, NATO e UE apertam o garrote, procurando amarrar a Ucrânia aos seus objectivos estratégicos expansionistas direccionados para Leste.

Apenas sete meses bastaram para que a «coligação laranja» que há um ano fora aclamada na Praça da Independência de Kiev se desfizesse, pondo a nu as contradições e disputas acesas que perpassam a grande burguesia no Estado da ucrainização imperialista que o grande capital tenta, estrategicamente, firmar nas margens do Dniepre.

A ruptura entre as facções do presidente Iúchenko e da ambiciosa ex-chefe do governo, Iúlia Timochenko, há muito anunciada mas só consumada a 8 de Setembro, assumiu contornos de verdadeiro escândalo, com acusações mútuas de corrupção e incompetência arremessadas para a praça pública. O país assistiu, chocado e melancólico, aos episódios da luta fratricida pela redivisão da propriedade e o protagonismo político, instalada agora no seio da «equipa» triunfante na contenda de 2004, e envolvendo directamente os seus «heróis».

Para trás ficavam as promessas de uma falsamente proclamada «revolução», pese embora «laranja», realizada sob o alto patrocinado dos Estados Unidos, que se propusera libertar a Ucrânia da corrupção, associada ao regime clânico do anterior presidente Kutchma. O homem que à frente dos destinos do país, não deixou de conceder favores inestimáveis ao imperialismo, de que são exemplo, o acordo que abriu as portas da Ucrânia à NATO ou o envio de um contingente de cerca de 1700 soldados ucranianos para o Iraque, onde pelo menos dezena e meia acabaria por perecer.

Os sete meses do «eclético» governo Iúchenko-Timochenko, em que também participou o partido socialista da Ucrânia, não ajudaram à melhoria das condições de vida dos ucranianos. Pelo contrário. Ao longo de 2005, confirmou-se a tendência de desaceleração de uma economia fortemente dependente das exportações de matérias-primas e produtos de limitada incorporação tecnológica (1), e ainda não refeita do vendaval provocado pelo desmantelamento da URSS. A inflação aumentou, tornando mais exíguo o orçamento de milhões de famílias. Ao mesmo tempo, prosseguiu o processo de diferenciação social e de afirmação da burguesia, incluindo as suas camadas intermédias. No reverso da medalha, milhões de ucranianos continuaram a ser relegados para um patamar abaixo do limiar de subsistência. Na Ucrânia «democrática», a mortalidade atinge quase o dobro da natalidade.

Desde a tomada de posse de Timochenko, em Fevereiro de 2005, a acção principal do novo poder centrou-se num vasto programa de reprivatizações. Foi decretada a «nacionalização» de algumas das empresas mais lucrativas vendidas ao desbarato nos últimos 10 anos. Com o intuito de iniciar, logo de seguida, a sua nova alienação, indo ao encontro do apetite insaciável dos novos protagonistas do poder e de renovados interesses clientelistas.

A generalidade destas empresas encontra-se em transição para as mãos do capital estrangeiro, ou na sua mira. O caso mais significativo é o da Krivorojstal, o gigante da indústria siderúrgica, que acabou por ser vendido, já com o sucessor de Timochenko na chefia do governo, a uma multinacional do sector.

Esta situação enquadra-se certamente na exigência, formulada por centros analíticos do imperialismo, como a Heritage Foundation, de integração da «Ucrânia na economia mundial» (2). O que pressupõe, segundo a mesma fonte, a adesão da Ucrânia à OMC e, principalmente, à UE, o que «conduzirá à alteração do balanço geopolítico no Leste europeu», a preocupação maior dos EUA.

A UE, sem condições para «absorver» a curto prazo a Ucrânia, promove um processo de «aproximação» a conta-gotas, dando prioridade à aplicação de todo o seu pacote impositivo. É significativo, e configura um acto de ingerência não inocente, o anúncio do arranque de uma missão da UE de 100 efectivos para monitorização da fronteira entre a Ucrânia e a Moldova.

O receituário da mencionada fundação estadunidense passa igualmente pelas recomendações a Kiev de reduzir a carga fiscal, reforçar a defesa dos direitos de propriedade (privada, claro) e de liberalizar a economia na sua totalidade. Além do mais, a administração do presidente Iúchenko, que em 2005 visitou os EUA por duas vezes, é convidada a «contratar uma empresa estrangeira de consultoria para avaliação do processo existente de tomada de decisões e a elaboração da orientação política», sendo que, o seu pagamento «deverá processar-se no âmbito da ajuda técnica concedida pelos EUA»!

De facto, os EUA, e o «Ocidente» em geral, canalizaram na última década muitos milhares de milhões de dólares de fundos, estatais e privados, para assegurar a «transição democrática» na Ucrânia, incluindo, naturalmente, o financiamento do bloco político «Nossa Ucrânia» de Iúchenko.

Do lodaçal em que chafurda a política ucraniana têm tirado partido, acima de tudo, os Estados Unidos, agente principal da desestabilização do país.

A Ucrânia, para além do seu valor intrínseco como «mercado» de dimensão não desprezível, constitui uma peça chave no cerco que se aperta à Rússia. O imperialismo não abandonou o velho sonho de submeter e desmembrar o maior país do planeta, e apoderar-se das suas incomensuráveis riquezas. O que, muito pragmaticamente, não contraria, antes se complementa, com as tarefas da sua actual agenda na zona, rica em hidrocarbonetos, do Cáspio à Ásia Central, aliando-as também à crescente «preocupação» com a China.

A concertação transatlântica e da Tríade dependem, apesar de assentes em relações desiguais, da possibilidade de rapina global comum. Desta forma, a Rússia, não obstante a restauração capitalista, para a qual o imperialismo tanto contribuiu, não deixa de se perfilar, não tanto como parceiro ou, mesmo, rival a conter, mas, mais do que tudo isso, como um «objectivo estratégico».

O Kremlin está consciente da situação. Todavia, o carácter e os interesses de classe do regime russo constituem um perigo latente para a segurança da Federação Russa, apesar da necessidade de afirmação de um «capitalismo nacional» na Rússia.

A realidade confirma os propósitos agressivos comandados pelos EUA.

Demonstrando que os alertas do PCP nos início dos anos 90 eram totalmente válidos, o imperialismo prossegue com a sua ofensiva geral no Leste. A NATO continua a sua expansão, e os EUA instalam novas capacidades militares cada vez mais perto das fronteiras russas.

Recentemente, em Dezembro de 2005, os EUA acordaram com o governo servil da Roménia a instalação de quatro bases militares. O facto coincidiu com o anúncio da criação de uma força de intervenção da Europa de Leste (Eetaf), com um estado-maior na base aérea romena Mihail Kogalniceanu, por sinal um dos locais onde foi denunciada a existência de prisões secretas da CIA.

Há informações de que países como a Polónia, Bulgária e Hungria também estão na calha para seguir o caminho de Bucareste. Relativamente à Polónia, onde a direita ultra-conservadora recentemente chegada ao poder preconiza uma aliança preferencial com os EUA «para conter a Rússia», os EUA já apresentaram uma proposta para instalação de uma base anti-míssil. O objectivo é claro: os EUA, que em 2002 se retiraram unilateralmente do Tratado de Defesa Anti-míssil assinado em 1972 com a URSS, buscam anular o poder dissuasor nuclear russo – embora afirmem que está apenas em causa a criação de um escudo de protecção contra a ameaça do «terrorismo nuclear» proveniente de «Estados párias».

A este respeito, não passou despercebido o reconhecimento público, por parte de generais russos no activo, das ameaças oriundas dos EUA, e, mais relevante ainda, o facto de a Rússia estar a modernizar os seus vectores nucleares estratégicos.

Em resultado das «revoluções coloridas» no espaço da antiga URSS, nomeadamente na Geórgia e Ucrânia, activaram-se os projectos de «alianças regionais» desenhados em Washington. Depois do revés no agora já só GUAM (3), com a saída do Uzbequistão em Maio, a Geórgia – país onde os salários dos ministros são financiados a partir do orçamento dos EUA – e a Ucrânia anunciaram em Agosto a formação de «uma aliança estratégica de Estados democráticos». A ideia peregrina «evoluiu» depois para uma «Comunidade da Escolha Democrática», agregando num cordão de segurança e de ingerência contínua, em dominó, os novos países da NATO e os ainda só candidatos à aliança militar, na extensa região do Báltico, Cáucaso e Europa Central. Em Dezembro, realizou-se em Kiev o seu fórum experimental. Um dos convidados foi o «candidato único» da oposição da Bielorrússia às eleições de 2006, o país que falta domar nesta nova linha de divisão e conflito na Europa.

Logicamente, a própria adesão da Ucrânia à NATO está em cima da mesa, mas debate-se com dificuldades relevantes, a maior das quais consiste na falta de apoio da população. Apesar de toda a contra-informação dos media capitalistas, a maioria dos ucranianos reconhece o carácter agressivo da NATO. Por outro lado, a adesão à NATO significaria o desmantelamento da indústria militar da Ucrânia, acarretando sérias consequências sociais e económicas para o país.

O último Conselho da NATO saúda o estabelecimento de um «diálogo intenso» com Kiev e afirma que a integração do país na aliança vai depender da «progressão das reformas» – incluindo no sector da defesa e segurança, ou seja, no avanço da sua privatização – e a realização de «eleições livres e justas» em 2006. Nesta ordem de ideias, o secretário-geral da organização afirmou que a próxima cimeira da NATO, que terá lugar em Riga em Novembro de 2006, poderá «ser decisiva para a Ucrânia» (4).

A alusão às eleições legislativas de Março de 2006 é compreensível. A reforma constitucional que entrou em vigor no início deste ano, retira poderes ao presidente. A possibilidade real do bloco de Iúchenko sair derrotado é motivo de apreensão, e por isso os EUA aumentam a pressão, afivelando também os «cavalos» de segunda linha. O imperialismo teme uma eventual reaproximação da Ucrânia a uma Rússia, que, com hesitações, vai endurecendo a sua posição para com a deriva pró-EUA do país vizinho, passível de profundas repercussões na sua própria casa.

O frenesim de acordos e alianças pré-eleitorais, incluindo o anunciado entre Timochenko e Ianukovitch, candidato presidencial derrotado na «revolução laranja», em mais uma pirueta das sórdidas batalhas políticas em curso, atinge o auge. Contudo, não diminui a opacidade em relação às questões de fundo que se colocam, em primeiro lugar, ao futuro da Ucrânia e do seu povo.

Notas

(1)Com a principal excepção da indústria militar, que conserva estreitos laços com a Rússia.
(2)The Heritage Foundation, 16.07.05, em «É tempo da Ucrânia rever a sua política económica», de Ariel Cohen, citado em www.inosmi.ru.
(3)Organização «paralela» à C.E.I. (Comunidade de Estados Independentes), formada actualmente pela Geórgia, Ucrânia, Azerbeijão e Moldava.
(4)Itar-Tass, 08.12.05.

 

«O Militante» - N.º 280 Janeiro /Fevereiro 2006