Entre tensões sociais
e o jugodos nacionalismos |
Colaborador da Secção Internacional
A recente vaga terrorista na Rússia é mais uma acha na fogueira desestabilizadora que grassa no país. Apesar de todo o aparato da concentração do poder (capitalista) praticada pelo actual inquilino do Kremlin, a escalada de violência e terror, testemunhada no monstruoso “massacre dos inocentes” de Beslan na República autónoma da Ossétia do Norte, coloca de novo em plano de evidência a perigosa fragilidade do edifício da multinacional Federação Russa.
Os efeitos da decomposição social decorrentes do processo de restauração capitalista na Rússia, combinados com factores de ordem étnica e nacional, que não podem ser desligados do quadro geral da ofensiva imperialista no mundo e em particular no espaço da ex-URSS, assumem na região caucásica um carácter explosivo. São processos que não se confinam às fronteiras russas, abarcando toda a região, embora sujeitos à acção de forças externas de sentido oposto. Deixando de lado os aspectos formais da questão, referimo-nos à política de dois pesos e duas medidas adoptada pelo imperialismo na região: se relativamente às Repúblicas do Cáucaso russo, a estratégia dos EUA – com o apoio da UE, a NATO (e, inclusive, a própria OSCE) – propicia e explora as linhas de acção centrífuga e tendências de carácter desagregador, contribuindo para o enfraquecimento da Federação Russa, já na Geórgia, contrariamente, o imperialismo suporta o nacionalismo belicoso do regime protofascista de Saakashvili, contra o que Tbilissi designa de fenómenos de secessão.
O Cáucaso inclui as Repúblicas e regiões do Cáucaso do Norte que integram a actual Federação Russa, e os países da Transcaucásia: Azerbaijão, Arménia e Geórgia. A cadeia de montanhas que se estende entre o mar Negro e o mar Cáspio constitui um intricado mosaico de povos, etnias, culturas e religiões, e por isso um terreno propenso a antagonismos e disputas. Sendo uma região historicamente atrasada, possui contudo um valor estratégico privilegiado como via de acesso às riquezas de petróleo e gás do Cáspio, e devido à sua localização geográfica no eixo da placa euro-asiática. O que explica o interesse, já de longa data, das potências imperialistas.
A região caucásica foi palco dum dos principais conflitos inter-étnicos que influenciou o desmembramento da URSS – a guerra do Nagorno-Karabakh entre a Arménia e o Azerbaijão – que de momento se encontra em estado latente. No entanto, alguns dos conflitos que explodiram em consequência do colapso da URSS, encontram-se ali no estádio activo ou em convulsão intermitente. São os casos dos conflitos “separatistas” da Abkházia e da Ossétia do Sul na Geórgia – que em muito se constituíram em resultado do radicalismo nacionalista georgiano – ou da paradigmática guerra da Chechénia, na Rússia. Em termos práticos, toda esta região configura um crescentemente ameaçador “barril de pólvora”.
No território russo do Cáucaso do Norte, a violência tem penetrado, particularmente, de forma metódica e insidiosa, não se confinando apenas ao foco mais grave da Chechénia. De forma regular têm-se registado incursões armadas e atentados terroristas nas Repúblicas autónomas da Inguchétia, Daguestão e Ossétia do Norte. Recentemente, foram registados focos sérios de violência também na República da Cabardina-Balcária.
O reaparecimento do historicamente tão frequente quanto complexo fenómeno do nacionalismo no Cáucaso, não pode ser descontextualizado dos processos e circunstâncias em que se dá a derrota do socialismo e a consequente detonação da URSS, mas naturalmente não se esgota nestes aspectos, ganhando hoje novos desenvolvimentos. Recuando 13 anos até ao final soviético, recorde-se como no seguimento do pseudo golpe de Estado de 19 Agosto de 1991 (já com a defesa do socialismo em estado de colapso), e posterior proibição do PCUS, a agonia da perestroika foi coroada pelo verdadeiro golpe de Estado de 8 de Dezembro de 1991, com os presidentes das três Repúblicas eslavas soviéticas a decretaram a “liquidação instantânea” da URSS – tendo o cuidado de informar o então presidente dos EUA, Bush (pai), em primeira-mão. Apesar do acto inconstitucional que liquidou a URSS ter ocorrido apenas nove meses após 76% de soviéticos ter-se pronunciado em referendo a favor da continuidade da URSS, a reacção generalizada, no país que 69 anos antes, em Dezembro de 1922, Lenine ajudara a fundar, foi de completa passividade, desde as massas aos seus órgãos executivos e legislativos.
As consequências sangrentas do retalhamento em “carne viva” da União Soviética não se fariam esperar, saldando-se em centenas de milhares os mortos resultantes da miríade de guerras e conflitos armados desencadeados nos meses seguintes, em mais de metade dos países (fictícios) saídos do desmantelamento da URSS.
A essência contra-revolucionária do processo de derrocada soviética e brutal restauração capitalista imprimiu aos fenómenos de nacionalismo e separatismo o cunho respectivo. É o caso típico do independentismo chechene, que operando na base do largo descontentamento popular, aliado a elementos de cariz cultural e de identificação nacional profundamente arreigados, surge fundamentalmente como um instrumento profundamente reaccionário e obscurantista, e não como movimento de libertação nacional. Enquanto foi útil à destruição da estrutura sócio-económica socialista, o separatismo chechene foi estimulado e gozou da conivência dos “reformistas” (e dos seus mentores além-fronteiras), que em 1992 (sob o poder de Iéltsin e Gaidar e já depois da auto-proclamação da independência da Itchkeria) até deixaram “generosamente” nas suas mãos grande parte do arsenal militar do destacamento militar federal mandado evacuar da República. Ainda hoje o Kremlin olha o conflito chechene na óptica mistificadora do combate ao “terrorismo internacional” – apesar dos desabafos e alusões relativos à atitude dúbia do Ocidente, que se vão tornando frequentes depois de Beslan –, parecendo ignorar o facto da violência armada na Chechénia continuar a “pescar” com sucesso nas águas turvas do capitalismo russo: grande parte do armamento utilizado pelos separatistas é proveniente das forças armadas e policiais e das fábricas da indústria militar da Rússia. (1)
Os recentes acontecimentos de Beslan representam claramente um novo marco da espiral de instabilidade que caracteriza a situação no Cáucaso do Norte. A desestabilização passa certamente pela instigação das tensões inter-étnicas na região, nomeadamente entre inguches e ossetas, a continuação do alastramento da violência para fora das fronteiras chechenas e o aproveitamento da enorme insatisfação social existente, mas não se fica por aqui. Devido ao seu carácter e amplitude, Beslan – projectando-se como ponto culminante de um novo, ainda mais bárbaro, “ciclo de terror” na Rússia – afigura-se, acima de tudo, como um aviso e desafio dirigidos a Moscovo – ao titubeante Estado russo.
A análise da situação exige uma visão de conjunto dos processos que abrangem o Cáucaso na sua totalidade – não perdendo de vista o papel específico da Geórgia, que aliás já se perfila como futuro membro da NATO; processos que, por sua vez, se inserem na fase actual da cada vez mais visível “guerra-pós-guerra-fria”, movida pelas forças do imperialismo em todo o espaço pós-soviético, tendo como alvo principal a Rússia, e que encontram, precisamente, no Cáucaso o “elo mais fraco”.
No reverso da medalha, Beslan remete igualmente para o plano interno, do agravamento das dificilmente sanáveis contradições do processo actual da restauração capitalista na Rússia, que conduziu o país a um estado deplorável. Apesar da apregoada estabilização, nos últimos quatro anos verificou-se no país um aumento das desigualdades. A depressão social atinge com especial dureza a região do Cáucaso, onde as taxas de desemprego são altíssimas (nalgumas Repúblicas como o Daguestão ultrapassam os 50%) e o nível de vida é claramente inferior à média nacional. Não é previsível que a prossecução das “reformas neoliberais”, agora sob as vestes do neo-chauvinismo russo emanado do Kremlin, possa alterar radicalmente a situação nos territórios do Cáucaso do Norte, onde à crise social se juntam a corrupção massiva, o vácuo ideológico, o apagamento das culturas nacionais e o enfraquecimento dos laços inter-étnicos. l
São visíveis as dificuldades do Estado do capitalismo russo em afirmar-se e assumir o “fardo” – assegurando uma legitimidade de facto – da complexidade que representa a Rússia multinacional herdada do passado soviético, recorrendo crescentemente ao autoritarismo. A Rússia é hoje um país de soberania limitada – com traços de sub-imperialismo – profundamente parasitado por uma quinta coluna fiel a Washington.
Concomitantemente, na lógica da globalização imperialista, a Rússia capitalista deverá, na melhor das hipóteses, ser mantida nas margens de parceiro menor, basicamente como apêndice de recursos e matérias-primas nas mãos do grande capital. A sua eventual ascensão como grande potência à concertação (e partilha) inter-capitalista mundial encontra as portas fechadas no Ocidente. A própria natureza agressiva do imperialismo e a crise estrutural que o sistema capitalista mundial e, particularmente, o seu pólo principal enfrentam, agravam a feroz competição e as contradições no seu universo, impelindo a super-potência contemporânea para níveis crescentes de rapina, no limiar da irracionalidade “antropófaga” em que a “identidade de classe” na esfera internacional é relegada para um plano acessório.
É neste contexto que se desenvolve a investida do imperialismo no Cáucaso. Perseguindo os seus objectivos económicos, políticos e geo-estratégicos, os EUA proclamam a Transcaucásia como zona do seu “interesse vital”. Não o podendo fazer por ora em relação ao Cáucaso do Norte, prosseguem, contudo, o apoio (encoberto) ao terrorismo e a instrumentalização do separatismo chechene – veja-se, por exemplo, a composição do «Comité Americano para a Paz na Chechénia», onde pontificam alguns dos mais notáveis falcões norte-americanos do partido único “republicano-democrata”. Enquanto isso, promovem o nacionalismo títere georgiano e transformam o seu território – nas fronteiras de quase todas as Repúblicas russas do Cáucaso, incluindo da Chechénia – em plataforma da estratégica intervencionista no vizinho do Norte.
Estes desenvolvimentos são indissociáveis da estratégia de expansão da NATO para Leste e da deslocação das bases militares da Aliança para junto das fronteiras russas e fazem-se acompanhar de uma actividade febril do imperialismo euro-atlântico nas restantes Repúblicas soviéticas: desde o isolamento da Bielorússia e a diabolização do seu regime – impedindo a materialização da União russo-bielorussa –, passando pelas grosseiras pressões sobre a Ucrânia – «a Ucrânia deve aderir à NATO», sentenciou recentemente o sub-secretário da defesa norte-americano em Varsóvia (2) –, até à instalação de bases militares nos países da Ásia Central.
«A única coisa que me interessa no Cáucaso é a linha de caminho de ferro que transporta o petróleo de Baku. Estou-me a borrifar, se os habitantes locais se vão despedaçar uns aos outros». (3) Se substituirmos o caminho de ferro pelo pipeline, e o papel proeminente do colonialismo inglês pelo imperialismo dos EUA, dir-se-ia que as palavras de 1918 do então ministro dos negócios estrangeiros inglês, Balfour, se dirigem à actualidade e traduzem com precisão – hoje porventura ainda inconfessável – a estratégia imperialista no Cáucaso.
No Azerbaijão dos dias de hoje, um consórcio das grandes transnacionais petrolíferas (por sinal liderado pela BP) controla a fatia maior do petróleo azeri, “reavendo” assim o domínio que até à instauração definitiva do poder soviético em Baku, em 1920, foi exercido pela Inglaterra. É daqui que parte o dispendioso pipeline, em fase de construção, para escoamento do petróleo do Cáspio directamente para o mediterrâneo turco, através da Geórgia, um projecto megalómano auspiciado pelos EUA e concebido à medida dos seus interesses.
Quando a estratégia imperialista de “dividir para reinar” se impõe no Cáucaso, fazendo de novo irromper a violência, a experiência de tudo o melhor que encerra o internacionalismo soviético – e não é pouco: da luta de Chaumian e dos comissários de Baku, aos grandes avanços sociais e culturais alcançados –, adquire redobrada actualidade.
Os caminhos da justiça, independência e revolução social para os povos do Cáucaso, exigirão a sua avaliação profunda.
Notas:
(1) Sovietskaya Rossia, 30.09.04
(2) Paul Wolfowitz, citado pela agência Xinhua, 06.10.04
(3) Sovietskaya Rossia, 29.04.04
«O Militante» - N.º 273 Novembro/Dezembro de 2004