A ofensiva do imperialismo e a resistência iraquiana

 



Professor, colaborador da Secção Internacional

Oito meses após a entrada das tropas norte-americanas em Bagdade, os planos e desígnios do imperialismo estão em crise. Essa crise tem uma causa central: a resistência do povo iraquiano à ocupação do seu país. Não será a captura de Saddam Hussein a alterar esse facto central.

1. A resistência

Quando, em Abril passado, as tropas dos EUA entraram na capital iraquiana, quase sem encontrar resistência, muitos terão acreditado que a superioridade militar do imperialismo norte-americano havia alcançado mais uma vitória categórica e de longo alcance. No nosso país, como um pouco por todo o planeta, os yes-men do imperialismo apressaram-se a troçar das advertências e prevenções que muitos (até mesmo entre os defensores incontestáveis do sistema) haviam feito soar nas vésperas de mais esta guerra de rapina e conquista. E, como sempre acontece quando a força dos vencedores parece inquestionável, alguns outros se terão apressado a declarar “aliviados” e a afirmar que “afinal terá sido melhor assim”, e que “o mundo está melhor sem Saddam”. Como se alguma vez tivessem sido motivações “democráticas” ou “humanitárias” a ditar as razões desta guerra.

Os oito meses transcorridos mostraram uma realidade radicalmente diferente. Centenas de mortos entre as tropas de ocupação (mais de 100 apenas no mês de Novembro)(1) e mais de 10 mil feridos (2) representam um número considerável de baixas para uma força de ocupação de cerca de 150 mil soldados. Os espectaculares ataques contra helicópteros, hotéis albergando altos dirigentes políticos dos EUA, os próprios centros militares das forças de ocupação, assim como as incessantes acções diárias que vitimam os soldados numa acção de desgaste permanente, falam por si só sobre o fracasso do imperialismo em controlar a mais recente vítima do seu voraz apetite de dominação.

Uma resistência com esta dimensão e eficácia só é possível se contar com um apoio e simpatia esmagadores no seio do próprio povo, sobretudo num contexto mundial onde escasseiam as possíveis retaguardas. Seguramente diversificada na natureza das forças que a integram e nas suas formas de organização, a resistência iraquiana exprime, sem margem para dúvidas, a vontade de luta de um povo que sofre de forma brutal, desde há muitas décadas, as consequências das políticas de dominação do imperialismo.

2. O dilema

As dificuldades que a resistência iraquiana está a provocar às tropas de ocupação estão a ter reflexos em todos os campos.

No plano estritamente militar surgem numerosas indicações de que as baixas no seio das forças militares dos EUA estão a minar a moral e a vontade de combater. A divergência entre os mitos de uma população ansiosa pela chegada das tropas de ocupação e a realidade no terreno é gritante. O número de tropas obrigadas a permanecer no Iraque, muito para além dos planos iniciais do Pentágono, está a dificultar a normal rotação dos soldados nos “campos de batalha” e a obrigar ao uso cada vez mais alargado de unidades da Guarda Nacional dos EUA (3). As dificuldades de recrutamento para as forças armadas profissionais começam a ser referidas.

Tudo isto enfraquece a máquina de guerra norte-americana, que é a principal arma de afirmação do poderio do imperialismo norte-americano no mundo. E cria reais dificuldades na concretização de novas guerras de agressão envolvendo a ocupação de países ou regiões cuja população lhe seja hostil.

Às dificuldades de ordem militar, somam-se as dificuldades de ordem política. O mito da “invencibilidade” dos EUA está a abrir brechas. Por entre o controlo cada vez mais apertado da comunicação social (4), os povos do mundo vão-se apercebendo que o poder do imperialismo norte-americano tem limites: o imperialismo não é omnipotente. A possibilidade de uma derrota dos EUA no Iraque, com consequências potencialmente devastadoras para o sistema de dominação imperialista, começam a ser tema de comentários preocupados na comunicação social do sistema (5). As dificuldades reforçam as clivagens e divisões no seio da classe dominante dos EUA e das restantes potências capitalistas. Entretanto, a incapacidade revelada pelo imperialismo norte-americano em concretizar os seus desígnios de ocupação do Iraque encorajam e dão alento a outros povos e a novas resistências, até por parte de governos nacionais.

Para além das dificuldades políticas, existem também as dificuldades económicas e financeiras. As receitas provenientes do petróleo iraquiano estão aquém do previsto, graças às acções de sabotagem constantes. Por outro lado, os custos da ocupação para o erário público norte-americano sobem em flecha. Bush viu-se obrigado a pedir um reforço de verba de 87 mil milhões de dólares no Orçamento de Estado para 2004, a fim de fazer face às despesas de guerra e ocupação do Iraque. Nem mesmo a cínica decisão do Congresso dos EUA de considerar parte dessa verba como um «empréstimo» ao Iraque (!) impede que as despesas adicionais reforcem o já astronómico deficit orçamental da maior potência capitalista do planeta (cerca de 500 mil milhões de dólares). Esse deficit recorde, vem juntar-se ao igualmente astronómico deficit comercial norte-americano. E se é verdade que as despesas militares dos EUA contribuíram para valores positivos de crescimento do Produto Interno Bruto dos EUA na ponta final de 2003, é igualmente verdade que esse crescimento resulta dum ulterior e rápido aumento da já colossal dívida norte-americana, cujas proporções levaram a revista The Economist a publicar um preocupado suplemento (20.9.03) sobre os perigos da saúde económica dos EUA para o «sistema económico global». Existe a possibilidade real de que, à semelhança de outros impérios na História, os actuais governantes ao serviço do grande capital dos EUA estiquem demasiado a corda do militarismo e acabem por minar a viabilidade económica do seu país (6).

O conjunto destas dificuldades está a acirrar os elementos de crise na situação interna dos EUA e na sua posição de superpotência a nível mundial. Os grandes capitalistas dos EUA têm seguramente consciência desse facto. Mas enfrentam um dilema de difícil solução: como sair do pântano em que se envolveram, sem sofrer uma derrota humilhante que afectaria seriamente a posição de potência mundial hegemónica a que tão claramente ambicionam?

3. Perigos e potencialidades

Se é certo que a resistência do povo iraquiano à ocupação militar do seu país está a criar enormes dificuldades ao imperialismo, tal facto não significa que tenham desaparecido os perigos para a paz mundial e para a independência dos povos.

A política de imposição da hegemonia planetária do imperialismo norte-americano através de todos os meios, com destaque para os meios militares, não é uma política de circunstância, resultante apenas de delírios de um ou outro governante. Trata-se duma estratégia concebida e desenvolvida ao longo de vários anos, após a derrocada do sistema socialista mundial nos finais dos anos 80, e que tem recolhido o apoio da quase totalidade da classe dirigente norte- -americana. A arrogância com que esta estratégia tem vindo a ser concretizada tornou claro aos olhos do mundo inteiro os verdadeiros objectivos da política oficial dos EUA. Sendo assim, um recuo seria hoje visto como uma clara derrota, que enfraqueceria seriamente a posição do grande capital norte-americano no mundo. A classe dirigente norte-americana dificilmente aceitará esse desenlace enquanto tiver condições políticas para o evitar.

3 A experiência histórica mostra que o imperialismo é capaz de cometer os maiores crimes a fim de alcançar os seus objectivos. Não é de excluir a adopção de medidas ainda mais brutais de repressão interna no Iraque e fora dele. Como afirmou o coronel norte-americano Sassman ao jornal New York Times (7.12.03): «com uma forte dose de medo e de violência e muito dinheiro para projectos, penso que conseguiremos convencer esta gente que estamos aqui para os ajudar» (!) (7) Não devem ser encaradas com ligeireza as declarações do General Franks, ex-comandante das tropas dos EUA nas guerras do Afeganistão e Iraque, falando em cenários em que ‘acções terroristas’ «levam a nossa população a pôr em causa a nossa própria Constituição e a começar a militarizar o nosso país de forma a evitar uma repetição de acontecimentos que provoquem de novo numerosas baixas»(8). E, se novas ocupações militares que exijam a intervenção directa de largas dezenas de milhar de soldados dos EUA parecem actualmente mais difíceis, é bem possível que o imperialismo norte-americano desencadeie novas guerras onde a sua clara supremacia em meios tecnológicos os coloque ao abrigo de grandes baixas, como na guerra aérea da NATO contra a Jugoslávia. Tal como é seguro que prosseguirá uma longa história de intervenções mais ou menos encapotadas, utilizando a subversão, a corrupção e a acção de bandos armados criminosas (como os mudjahedine afegãos, os contras nicaraguenses, o UÇK do Kosovo, ou a Unita) para alcançar os seus objectivos de dominação mundial. Não é de excluir que, no Iraque, jogue a carta da desintegração do país.

A derrota do imperialismo terá de ser obra da resistência e luta dos trabalhadores e povos do planeta, quer nos países que são vítimas directas da agressão, quer nos centros do imperialismo mundial. (9) A lição que a resistência iraquiana dá aos trabalhadores e povos do mundo é que essa resistência é possível e pode ser bem sucedida. Uma derrota do imperialismo no Iraque será um factor da maior importância para inverter o refluxo na luta de libertação dos trabalhadores e dos povos que tem caracterizado os últimos anos. A solidariedade de todas as forças progressistas para com a resistência nacional iraquiana é, pois, um imperativo da hora actual. Em Portugal, essa solidariedade passa pelo combate à política de humilhante subserviência do Governo Barroso/Portas que, a troco de algumas lentilhas no prato do invasor, sacrifica os efectivos da GNR e a dignidade do nosso país.

 

(1) O site da Internet www.iraqwar.ru refere que até ao dia 5 de Dezembro, o total de mortes anunciadas oficialmente (incluíndo as catalogadas como resultantes de acidentes) ascendia a 529 (445 dos EUA, 53 britânicos, 18 italianos, 10 espanhóis, 1 dinamarquês, 1 ucraniano e 1 polaco). O mês de Novembro foi o mais mortífero, mesmo incluíndo o período da guerra “clássica”.
(2)The Orlando Sentinel, 28.11.03, citando fontes do Pentágono. Em Setembro (14.9.03) o jornal britânico The Observer referia o número de 6 mil, enquanto que o Los Angeles Times, no início de Novembro (9.11.03) falava em mais de 7500 feridos de guerra desde Abril.
(3)Uma espécie de milícia nacional, teoricamente ligada a missões em território nacional, em situações de emergência.
(4)As tentativas de censurar, com ou sem a colaboração da comunicação social de regime, as notícias sobre a situação no terreno são evidentes. Vários meios de comunicação social foram já proibidos no Iraque pelas novas autoridades “democráticas” (não apenas as televisões Al Jazeera e Al Arabiya, mas numerosos órgãos de comunicação social iraquianos). Não existem imagens de caixões ou funerais das centenas de soldados norte-americano mortos em combate. Vários jornalistas, até de meios de comunicação social “ocidentais”, já perderam a vida ou foram alvo de agressões físicas pelas forças de ocupação.
(5) Os títulos das notícias sobre o Iraque da revista britânica The Economist são reveladoras: «Tem de haver uma saída» (15.11.03); «Perdido, ou ainda recuperável?» (6.12.03). Neste último artigo, o subtítulo reza: «Não é claro, para a América e os seus aliados iraquianos, se o que os espera é o êxito ou o fracasso».
(6)Veja-se, a respeito do declínio da posição económica dos EUA no mundo, o interessante artigo de Richard B. DuBoff na revista Monthly Review de Dezembro de 2003. A tradução deste artigo para português encontra-se no site Internet www.resistir.info
(7) O jornal britânico Ther Guardian (9.12.03) titula: «Israel treina esquadrões da morte dos EUA no Iraque». O New York Times (7.12.03) escreve que «soldados americanos começaram a cercar aldeias inteiras com arame farpado (...) [e] começaram a prender familiares de presumíveis guerrilheiros, na esperança de que estes se entreguem». Uma das aldeias cercadas foi a aldeia onde Saddam Hussein foi capturado.
(8)The Criminalization of the State, Michel Chossudovsky, 23.11.03, em globalresearch.ca
(9) São de assinalar as magníficas manifestações de protesto à recente visita de George Bush a Londres.

 

«O Militante» - N.º 268 Janeiro/ Fevereiro de 2004