Bento Gonçalves
Inéditos e testemunhos*

 

Poucos são os escritos deixados por Bento Gonçalves, ao que não serão estranhas a curta duração da sua vida (2-3-1902 – 11-9-1942) e as precárias condições dos longos anos de deportação e prisão que sofreu. Não obstante, patenteiam bem a importância do seu papel na introdução do materialismo histórico em Portugal, em concreto e na prática, dos contributos que deixou para o conhecimento da história e da análise do movimento operário e sindical no nosso país, da divulgação do marxismo-leninismo entre nós – feita directamente por ele e por outros meios que dinamizou – e muito em especial quanto à actividade do PCP, de que, como é bem conhecido, e melhor se explicou atrás, foi o principal reorganizador em 1929, desde então sendo também o seu secretário-geral e vindo depois a sofrer numerosos anos como deportado e preso nos Açores, Cabo Verde e em especial no Tarrafal, onde faleceu.

Publicados uns em vida, com o seu próprio nome, sob o pseudónimo de Gabriel Baptista ou anonimamente, e outros postumamente – entre estes últimos, alguns dos mais importantes –, muitos desses escritos conhecidos estão hoje reeditados, alguns repetidamente, em diversas publicações e colectâneas. São concretamente os seguintes: Palavras Necessárias (1.a ed. cland., 1969), Duas Palavras (1.a ed. cland., 1971) – ambos redigidos no Tarrafal, mas sendo o primeiro talvez iniciado em Angra do Heroísmo –, vários relatórios e artigos publicados inicialmente nos jornais O Eco do Arsenal e O Proletário (1927-1930), a intervenção no Congresso dos Amigos da URSS em 12-11-1927 (publicada em 2000), a intervenção de abertura e outra na conferência reorganizativa de 21-4-1929 (publicada em 1984), um artigo intitulado «As massas portuguesas em luta sob a direcção do Partido Comunista» (que, já com o novo pseudónimo Albino, parece ter sido publicado em Correspondance Internacionale, n.o 38-39, 11-5-1935), a intervenção no VII Congresso da IC em 1935 (publicada em 1976, mas com divulgação anterior), a Contestação ao Tribunal Militar Especial – TME (divulgada em 1936) e os manuscritos de dois requerimentos profissionais e duas cartas familiares (publicados em fac-símiles respectivamente em 1975, 1976 e 1998).

Mas tudo isto está em boa parte desgarrado e, na quase totalidade, em edições esgotadas. Vai assim sendo tempo de – completando tais escritos com os até aqui desconhecidos que possam vir a ser identificados – se organizar um ou dois volumes que incluam todos. Senão também alguns dos mais significativos depoimentos existentes a seu respeito. E, mais ainda, há que ir pensando na elaboração de uma biografia desenvolvida muito para além das meras notas habitualmente publicadas.

Por estas se conhecem – e não cabe agora repeti-los – muitos dos mais marcantes momentos da sua vida. Escolha-se contudo um simples pormenor a este propósito: o que se sabe, o que poderá ainda averiguar-se em concreto acerca dela e da respectiva actividade quando deportado (mas não preso) nos Açores e em Cabo Verde, de 1930 a 1933?

Com efeito, quanto às viagens e ao primeiro dos arquipélagos, só curtas notícias se referem à discussão sobre economia que manteve com um ex- -ministro da República quando embarcado, à sua grande ligação com a população local, em Lages do Pico, aos consertos que aí fazia nos motores dos barcos dos pescadores de baleias, a ter criado uma escola primária, aos contactos políticos com o também comunista Roque Júnior, então deportado na Madeira, e talvez outros(1).

E que de semelhante poderá haver quanto a Cabo Verde (Ilhas do Sal e do Fogo) nessa primeira época? Que aliás conta até com o pouco divulgado facto de que aí gerou então um filho, curiosamente chamado Gabriel Baptista e que também veio a filiar-se no PCP, tempo após o 25 de Abril e através do respectivo Centro de Trabalho do Laranjeiro.

Há que não esquecer ainda – naquela última perspectiva e além de vários e conhecidos textos específicos em parte já reunidos em colectâneas – alguns dos depoimentos dispersos em páginas de livros sobre o Tarrafal e que relatam os seus prestigiantes prodígios técnicos que aí praticou (desde a invenção e construção de uma máquina de fabricar gelo, de enorme necessidade para os presos, e muitos mais), outros episódios e a morte. De resto, e ao de leve embora, alguns dos inéditos ora e adiante publicados relacionam-se também com o Tarrafal.

A meu ver, há que constituir quanto antes uma equipa que organize essa obra de conjunto, agora propugnada. A ela não obsta sequer a mera circunstância de nos textos elaborados no cárcere haver pequenos lapsos de memória ou de revisão e escrita, lacunas e porventura, como já foi lançada a suspeita, um ou outro incidental retoque ou acrescento de mão alheia.

(1) Sobre parte destes e de outros episódios, cf. alguns dos textos constantes na bibliografia final e também Apontamentos Biográficos de Bento Gonçalves, peça dactilografada existente no GES e não assinada, mas que pelo seu conteúdo se pode concluir ser da autoria de António Nunes, que fora editor e administrador de O Proletário, bem como responsável da sua Secção Editorial, e conhecera Bento quando este se deslocou ao Porto, no Verão de 1929, em actividades reorganizativas do Partido nessa cidade. Após serem companheiros de prisão na cadeia do Aljube e de deportação, chegou mesmo a receber dele muitas cartas que mais tarde teve de destruir.

(*) Bento Gonçalves. Inéditos e testemunhos, Introdução, recolha e bibliografia de Alberto Vilaça, «Edições Avante!», Lisboa, Janeiro 2003.

 

 

 

 

«O Militante» - N.º 265 Julho/Agosto de 2003