A "financeirização" do capital
e as crises do capitalismo



Economista. Membro do Gabinete do PCP no Parlamento Europeu

“O Século XX assinala, pois, o ponto
de viragem do velho capitalismo para o novo,
da dominação do capital em geral para
a dominação do capital financeiro”
Lénine

 

A moeda e os fluxos financeiros são um espelho da economia real. Por isso, as crises financeiras são um pré-aviso de uma crise económica latente. Esta análise assume particular relevância hoje, quando o capital financeiro parece estar em todo o lado e as crises financeiras se sucedem, com maior ou menor gravidade, com amplos custos para o crescimento económico e para o emprego.

A moeda tem um papel fulcral nas crises do capitalismo. Como meio de pagamento, libertou a troca das barreiras do espaço e do tempo, separando o acto da venda e da compra, possibilitando a sua retenção (poupança) e a sua disponibilização a terceiros (crédito). A realização da mais-valia dá-se na transformação da mercadoria em capital-dinheiro. A sua não realização cria um desequilíbrio entre o desenvolvimento das forças produtivas (a oferta) e a compra de mercadorias (a procura). É deste desequilíbrio que germina uma crise de sobreprodução, pondo em causa a acumulação de capital e a sustentabilidade da taxa de lucro. O ciclo económico evolui, assim, em períodos de expansão e de recessão, consoante o desenvolvimento ou retracção das forças produtivas.

O volume dos fluxos de capital financeiro é um estrangulamento para o desenvolvimento das forças produtivas. A revolução das tecnologias da comunicação e informação, em conjugação com a liberalização dos movimentos de capitais a nível mundial, a expansão do crédito e a criação de novos instrumentos financeiros, aumentam a especulação e a volatilidade dos mercados financeiros para níveis nunca antes atingidos, mesmo no começo do século XIX.

Na Resolução Política do XVI Congresso acentuavam-se dois traços do capitalismo contemporâneo, mutuamente relacionados: a crescente “financeirização” do capital, “cada vez mais rentista e especulativo, correlativa da tendência para a estagnação da esfera produtiva e da dificuldade de obtenção aí de taxas de lucro satisfatórias para as enormes massas de capital acumulado", e a aceleração do processo de concentração e centralização do capital, de modo que, com o aumento do número de fusões, “criam-se, reforçam-se e recompõem-se monopólios e oligopólios em praticamente todos os sectores da economia, com as grandes empresas controlando extensas redes de subsidiárias e subordinando ainda mais empresas subcontratadas”.

Este retrato confirma a actualidade do pensamento de Lénine quando, em 1916, apontava a transição do capitalismo para uma fase superior, o imperialismo. Após o interregno e refluxo das duas grandes guerras mundiais, as forças produtivas capitalistas desenvolveram-se amplamente nas últimas três décadas. Tendo em conta estes factores, compreender hoje a génese das crises implica relembrar o retrato que Marx e Lénine fizeram do desenvolvimento do capitalismo nas suas épocas e o apontar das suas contradições. E também mostrar, com números, o grau de predominância do capital financeiro hoje e a sua relação com a “hipertrofia da esfera financeira”.

Da concentração ao predomínio do capital financeiro

Uma das características do capitalismo é a tendência para a concentração da produção que acompanha o desenvolvimento das forças produtivas, utilizando o “motor” da concorrência. A concorrência traz em si o germe do monopólio, do capitalismo monopolista, que Marx apontou e Lénine retratou no seu ensaio “O Imperialismo – Fase Superior do Capitalismo”. (1)

A concorrência leva à concentração da produção num número reduzido de grandes empresas que, devido a economias de escala e outras sinergias relacionadas com o volume da produção, ajuda a eliminar pequenas e médias empresas ou a encetar relações de dominação em redes de subcontratação, garantindo uma taxa de lucro mais estável e um maior grau de aperfeiçoamento técnico. Os reagrupamentos entre e nos diferentes ramos da indústria em sentido lato levam ao incremento do número de operações de fusão&aquisição.

A dimensão das empresas aumenta a necessidade de capital dos grandes capitalistas industriais (empresários) para fazer progredir o processo de acumulação do capital. Surge assim a necessidade da “participação” do capital, o aparecimento da sociedade anónima, que permite arrecadar capital não só de outros capitalistas de diversa dimensão, como também dos trabalhadores. O capitalista pode assim assumir controle sem necessitar de possuir 100% do capital. Como afirmava Lénine, a “democratização do capital” é na “realidade um dos meios de reforçar o poder da oligarquia financeira”.

Com a separação entre a gestão e a propriedade do capital e a concentração da produção, dá-se um passo para a socialização da produção, que entra em contradição com o desenvolvimento das forças produtivas e o cariz privado da propriedade.

À medida que a concentração da produção se desenvolve, o processo de aglomeração das grandes empresas estende-se numa rede de controle de participações noutras empresas. Enceta-se assim o processo de centralização do capital. Por outro lado, o capitalista não-activo, o capitalista financeiro, assume, num primeiro tempo, através dos bancos, a arrecadação de capital-dinheiro para a sua transformação em capital activo, com a captação primeiro de depósitos e do seu empréstimo à classe capitalista (empresarial). O papel do crédito e da concorrência leva também à concentração bancária, com o aumento da dependência do capitalista industrial (empresário). O volume de emissões de capital fomenta a especulação bolsista (num segundo tempo, outras instituições financeiras e os próprios mercados de capitais assumem o papel dos bancos, mas sem as mesmas redes de segurança).

As dificuldades de obtenção de taxas de lucro satisfatórias, na esfera produtiva, para a acumulação de capital, em paralelo com as facilidades de obtenção de elevados lucros a curto prazo na esfera financeira, contribuem para o predomínio e desenvolvimento do capital financeiro. O período de expansão económica aumenta os lucros do capital financeiro, enquanto os períodos de depressão ajudam ao saneamento e reorganização das empresas mais fracas e a sua compra a baixo preço, arrastando consigo os pequenos investidores/aforradores. Cresce em paralelo a especulação imobiliária.

À medida que a acumulação de capital cresce, aparece um excedente de capital que não consegue ser aplicado ao rendimento que convém ao capitalista. A taxa de lucro tende a descer. A solução é a exportação do capital (IDE) a sua efectiva deslocalização para outros países onde o sistema capitalista ainda se encontra incipiente, garantindo, assim, a extracção de mais-valias e maiores taxas de lucro através de países com menores custos de produção. A promoção da troca ao nível nacional e internacional em que assenta o sistema capitalista – a transformação do bem económico em mercadoria, incluindo o próprio trabalho – dá assim lugar à exportação do capital. Este processo acelera o desenvolvimento do capitalismo nos países recipientes destes fluxos e torna-se um meio de promover a exportação de mercadorias.

A internacionalização do capital, das economias capitalistas mais desenvolvidas, aumenta as aglomerações e cartelização dos ramos da indústria ao nível internacional, assim como da finança. Desenvolvem-se os mercados de capitais e financeiros nos países recipientes (surge a grande empresa multinacional). O capital-dinheiro começa a acumular-se num número reduzido de países exportadores de capital (stocks de capital) e cresce a importância das receitas provenientes dos juros e dividendos, assim como da especulação. Os volumes de capital financeiro crescem irracionalmente e o imperialismo segue a sua lógica de anexação, de conquista de novos mercados, para continuar o seu “parisitismo externo”, também ao nível do trabalho, dirigindo-se para eles a maior parte dos fluxos migratórios. Aumenta a instabilidade financeira e os riscos de crises financeiras.

Este é um retrato, com cerca de 100 anos, mas que não deixa de se manter acutilante e actual na descrição do desenvolvimento do capitalismo contemporâneo. Importa por isso analisar hoje o peso do capital financeiro e confirmar os riscos acrescidos que dele advêm para a economia real.

Retrato da “financeirização do capital”

Em Abril de 2001, o volume diário de negócios em derivados ascendia a $575 mil milhões e o volume diário de negócios, no mercado cambial, atingia mais de $1200 mil milhões (2). A capitalização bolsista em 2000 permitiu financiar 56% das operações de fusão&aquisição. Em 1998, o total de activos financeiros nacionais representava cerca de 315% do PIB dos EUA, 320% do Japão e 310% da zona Euro. Este é o peso do capital financeiro que mostra, de forma clara, que a crescente financeirização do capital é um dos traços relevantes do capitalismo contemporâneo.

Os elevados volumes dos fluxos financeiros, nomeadamente de curto prazo, assumem um papel crucial na crescente volatilidade e instabilidade dos mercados financeiros internacionais, na “inflação” dos mercados bolsistas, no despontar de crises financeiras e na sua tradução na esfera real, com retracções da procura agregada, com efeitos directos no investimento, no consumo e no emprego. Segundo o FMI, as cerca de 50 crises financeiras, com menor ou maior intensidade, entre 1975 e 1997, implicaram uma perda acumulada de produto na ordem dos 14/15% do PIB mundial (3). A crescente instabilidade é agravada pela cartilha neoliberal – liberalização, desregulamentação e privatização.

O impacto das crises financeiras sobre a esfera real não é um fenómeno novo, mas o sistema monetário internacional de Bretton Woods, com câmbios fixos e baixa mobilidade de capital, minimizava o grau dos seus efeitos. O fim de Bretton Woods trouxe uma nova realidade: câmbios flutuantes e uma crescente liberalização dos movimentos de capitais. Um facto que poderá conter alguma novidade, sinal da interdependência económica/financeira actual, é o maior grau de contágio financeiro das recessões, em forma de onda, pelas diversas regiões do mundo. Paul Krugman retratou a recente crise asiática como uma peça em três actos (4). O contágio pode ser observado nas últimas crises económicas: a crise do México de 1995, a crise asiática 1997/1998 – com o seu contágio à Rússia em 1998 e ao Brasil em 1999 – e agora o contágio ao dito “primeiro mundo” em 2000/2001, com o lento esvaziar da "bolha especulativa" nos EUA.

A liberdade de capitais e a integração dos mercados financeiros a nível mundial, conjugada com o aumento da importância dos fluxos de IDE, foram também consolidadas pelo estabelecimento de inúmeros acordos bilaterais de investimento – os BIT. Nas três décadas anteriores à década de 90, cerca de 500 BIT foram assinados. Na década de 90 este valor quadruplicou (5). Este é um sinal da “guerra” pela captação de capitais, nomeadamente pelos países em vias de desenvolvimento.

Estes acordos potenciaram/potenciam uma maior internacionalização do capital – exportação de capital – que foi aproveitada pela internacionalização das decisões de produção e de investimento das grandes multinacionais, contribuindo para o aumento do peso do IDE nos fluxos internacionais de capitais privados e internalizando em grande medida estes próprios fluxos. Em 1998, os fluxos de IDE representavam cerca de 14% do PIB mundial (5). O IDE assume cada vez mais a forma de operações de fusão&aquisição em detrimento do investimento de raiz – greenfield investment. Estas operações atingiram o valor de $400 mil milhões nos primeiros três trimestres de 2001 e o seu crescimento desde o começo da década de 90 supera o crescimento do IDE. (6)

Os investimentos de portofolio – investimentos de carteira – aumentaram o seu peso, nomeadamente nos fluxos financeiros para os países em vias de desenvolvimento. Ao nível da composição global dos fluxos de capital privados, nota-se também o aumento dos investimentos de portofolio que passam de valores residuais, na década de 70 e 80, para cerca de 20% dos fluxos totais na década de 90. (7)

O peso do capital financeiro pode também ser depreendido pelo peso dos seus intermediários – as instituições de crédito e as empresas de seguros. O balanço total das instituições de crédito representou na UE em 1999 cerca de €20400 mil milhões, ou seja, 258% do PIB comunitário (8). Os prémios das empresas de seguros aumentaram 50% entre 1995 e 1999, correspondendo em 1999 a mais de €750 milhões (9).

Os novos recursos oriundos do processo de privatizações atingiram, na última década, cerca de $100 mil milhões nos países da OCDE5, engrossando o refinanciamento do capital nos mercados financeiros. Assume também um papel de relevo a abertura dos sistemas nacionais de pensões a lógicas de rentabilização privada, de onde se destaca o peso dos fundos de pensões no investimento mundial. Na UE, os fundos de pensões profissionais detinham em 2000 cerca de €2 mil milhões de activos financeiros, ou seja cerca de 25% do PIB comunitário (mais de 45% se tivermos em conta as empresas de seguros) (10). Há que destacar também os denominados hedge funds – fundos de arbitragem – que assumem um papel de relevo, nomeadamente nos ataques especulativos e na criação de um mercado próprio de elevados volumes de activos financeiros ilíquidos, de que são exemplo o Quantum Fund de George Soros. É de lembrar o papel do Quantum Fund na crise do sistema monetário europeu, com o ataque especulativo à libra esterlina em 1992, assim como na desvalorização do rublo em 1998 na sequência da crise asiática (3).

Estes números, alinhados quase sequencialmente, mostram bem o peso do capital financeiro e os seus condicionalismos ao desenvolvimento das forças produtivas. Enquanto a concorrência se agudiza a favor das grandes potências, o grau de “financeirização” da economia e o grau de interdependência mundial da chamada “globalização” potenciam a instabilidade e, de alguma forma, a imprevisibilidade das crises do sistema. Enquanto se acentuam as desigualdades entre países e povos e as assimetrias do desenvolvimento do capitalismo ao nível mundial. Como afirmava Lénine “o monopólio que se cria em certos ramos da indústria aumenta e agrava o caos próprio de todo o sistema da produção capitalista no seu conjunto”. E se é certo que o capitalismo continua a revelar uma grande capacidade de adaptação e recuperação, é também certo que não consegue resolver as suas contradições de base, acentuando o seu carácter parasitário e injusto, que é um obstáculo ao progresso da humanidade que urge ser superado com a luta dos trabalhores e dos povos.

Notas e Referências

IDE - Investimento Directo Estrangeiro

PIB - Produto Interno Bruto

(1) Edições Avante!, Abril, 2002

(2) Comissão Europeia - SEC (2002) 185.

(3) OCDE, Reisen, 1999, Policy Brief nº 16.

(4) Krugman, 1999, “The Return of Depression Economics”.

(5) OCDE, Junho 2001, Financial Market Trends, nº 79.

 (6) UNCTAD, World Investment Report  2001. Espera-se, em 2001, que o IDE, ao nível mundial, atinja os cerca      
de $760 mil milhões. Os fluxos de IDE entre a União Europeia e os EUA representavam cerca de 27% do toal mundial; 37% do IDE intra-comunitário
 e 47% do IDE para a União Europeia dirigiram-se para o sector da inter-mediação financeira e imobiliária.

(7) EUROSTAT, Statistics in Focus, Theme 2 – 37/2001.

 (8) EUROSTAT, Statistics in Focus, Theme 4 – 25/2001. O rendimento líquido dos juros ascendeu a      
mais de €240 milhões e o rendimento liquído das comissões a quase €105 milhões, ou seja, um lucro total de mais de €345 milhões.

(9) EUROSTAT, Statistics in Focus, Theme 4 – 28/2001. As empresas de seguros fizeram, em 1999, investimentos na ordem dos €3500 mil milhões, ou seja,
cinco vezes mais que os prémios subscritos.

(10) Comissão Europeia – COM (2000) 507.

 

 

«O Militante» - N.º 262 Janeiro/Fevereiro de 2003