A Comuna de Paris
e a actualidade



Membro do Comité Central e da Comisão Central de Controlo

No âmbito de um debate sobre a actualidade da Comuna de Paris (1) vale a pena arriscar algumas reflexões, como forma de contribuição para o necessário debate colectivo, acerca de algumas questões fulcrais para a luta pela superação revolucionária do capitalismo e o início da construção de uma sociedade liberta da exploração do homem pelo homem: objectivo primeiro do ideal comunista.

Estado: natureza de classe e regime polítco

O marxismo não foi criado de jacto, foi sendo elaborado a partir da experiência historicamente disponível.

Compreende-se assim a importância que Marx deu à Comuna como acontecimento que abriu novas perspectivas à luta pela emancipação do trabalho: “ela era a forma política, finalmente descoberta, com a qual se realiza a emancipação económica do trabalho” (2).

Qual era essa “forma política finalmente descoberta”?

Para Marx, a Comuna encontrara a forma prática de pôr fim à dominação política do capital que lhe permitia manter e reforçar a dominação económica sobre os trabalhadores e a sociedade em geral. Essa forma finalmente descoberta era a tomada e exercício do poder político pela classe trabalhadora. Chamou-lhe Marx a “ditadura do proletariado”.

Dado que este conceito de “ditadura do proletariado” tem servido como argumento para a manipulação anticomunista, vale a pena clarificar o seu significado na concepção do marxismo.

Uma das contribuições essenciais de Marx para a compreensão das estruturas sociais e da evolução histórica, foi a sua caracterização da natureza do Estado e da essência das suas funções. Marx assinalou que o Estado nasceu como instrumento de dominação política da sociedade pela classe que detém o poder económico, nas sociedades em que a propriedade privada dos meios de produção gerou a exploração do homem pelo homem e sõ se extinguirá quando desaparecerem as classes exploradoras (3).

É partindo dessa análise objectiva que o marxismo aponta que qualquer forma de Estado, pela sua natureza, constitui o instrumento de uma ditadura de classe para assegurar o regime económico que serve os interesses dessa classe.

É assim também no Estado burguês que tem como função principal servir os interesses da classe capitalista.

Já no “Manifesto do Partido Comunista” (1848), primeira apresentação global das ideias do comunismo, Marx e Engels assinalavam que “o governo do Estado burguês não é mais que uma comissão para administrar os negócios colectivos de toda a classe burguesa” e contrapunham a essa forma do domínio de classes dos capitalistas a necessidade de assegurar a “supremacia política do proletariado”.

O que Marx viu de novo na Comuna (e o que há de inovador na sua análise) é que ela demonstrou que para pôr fim à ditadura de classe da burguesia não bastava tomar conta do Estado burguês no qual “todas as formas de governo têm sido marcadamente repressivas” e era necessário criar um novo tipo de Estado, o Estado proletário, “cujo objectivo é transformar os meios de produção, a terra e o trabalho, em instrumentos do trabalho livre e associado”.

O anticomunismo está evidentemente interessado em falsear o conceito histórico-filosófico de ditadura do proletariado, contrapondo-lhe a “democracia burguesa”.

Essa operação de falseamento finge ignorar que uma coisa é a natureza de classe de um Estado (dependente da classes que exerce o domínio político) e outra coisa é o regime político com o qual esse domínio é exercido, isto é, o conjunto de métodos e meios de execução, pela classe dominante, do poder político desse Estado, nas várias condições históricas concretas.

Como já Marx assinalava, no Estado capitalista (como nos anteriores) a ditadura de classe da burguesia exerce-se sob vários regimes políticos: monarquias ou repúblicas, ditaduras (como as fascistas), democracias parlamentares ou presidencialistas, etc..

A democracia burguesa, como qualquer forma de governo na sociedade capitalista, constitui uma forma de ditadura da burguesia (sobre o proletariado e as outras camadas dos trabalhadores) exercida através do aparelho de Estado, as estruturas de formação e condicionamento ideológico e o controlo sobre a economia.

A pretensão de opor a democracia burguesa à ditadura do proletariado constitui pois uma manipulação ideológica que falseia o conteúdo dessas expressões. Procura confundir o conceito rigorosamente científico, no plano histórico-filosófico, de ditadura do proletariado que caracteriza a sua natureza de classe, com o conceito hoje corrente de ditadura, após os regimes políticos das ditaduras reaccionárias e terroristas que no decorrer do séc. XX marcaram as ofensivas para impor as formas mais brutais de dominação de classe do capital, designadamente com as versões nazifascistas de ditadura do capital monopolista (incluindo a ditadura salazarista).

Democracia burguesa e democracia proletária

Só com base nas experiências que a prática iria criando, pelo desenvolvimento da luta de classes, se poderiam definir as formas concretas de organização do Estado em que se concretizaria a ditadura do proletariado: Marx não construía cenários.Com base na experiência disponível na sua época - a Comuna de Paris -, Marx apontou-lhe algumas características fundamentais, assinalando-a, por exemplo, como “uma forma política inteiramente expansiva, ao passo que todas as formas anteriores de governo têm sido marcadamente repressivas”.

Enquanto todos os tipos anteriores de Estado asseguravam o domínio de uma minoria sobre uma maioria, cabia ao Estado proletário assegurar à grande maioria, os trabalhadores, as condições para a sua emancipação - sendo, por isso, a mais democrática das formas de Estado. E importa referir, quanto a isto, que a democraticidade de um Estado não pode ser avaliada apenas pelas formas, mais ou menos participadas, que regem a composição dos seus órgãos de poder político. Define-se e afirma-se (ou nega-se) também pelo conteúdo da política aplicada por esse poder (4).

Desde as suas primeiras formulações, ao conceito de ditadura do proletariado está ligada a ideia do seu conteúdo profundamente democrático. Mas abrange também as formas democráticas de constituição dos órgãos de poder.

Para Marx, objectivo primordial do Estado proletário seria “amputar os órgãos meramente repressivos do antigo poder governamental” ao mesmo tempo que “as suas funções legítimas deveriam ser arrancadas a uma autoridade que usurpa uma proeminência acima da própria sociedade e restauradas nos agentes responsáveis da sociedade”.

Marx valorizava altamente as formas democráticas de organização do poder que a Comuna, como Estado proletário, instaurou, nos seus breves três meses de existência: elegibilidade de todos os cargos do poder e da administração, revocabilidade desses cargos, responsabilização de todos os órgãos do poder e dos funcionários perante o povo, implantação de princípios democráticos na estrutura e organização das forças armadas, do novo sistema administrativo e judicial e do sistema de segurança pública.

Com a ditadura do proletariado, dizia Marx, a democracia torna-se democracia socialista. Trata-se de um processo de transformação da sociedade que preencherá, como aconteceu nas anteriores transformações sociais revolucionárias, todo um largo período histórico, com inevitáveis avanços e recuos, como todos os processos históricos, reflectindo, em formas diversas, as correlações de forças que nele se vão registando, numa evolução que não pode ser esquematizada antecipadamente.

Também Lenin chamava a atenção para a ligação directa entre democracia e socialismo: “Tal como não é possível um socialismo vitorioso não realizando uma democracia completa, assim também o proletariado não se pode preparar para a vitória sobre a burguesia sem conduzir uma luta consequente e revolucionária, sob todos os aspectos, pela democracia” (5).

Qual é, na actualidade, o conteúdo destes conceitos?

A história do Estado e do seu papel reflecte, no séc. XX, como ao longo da história segundo assinalou Marx, as várias fases e resultados da luta de classes, com os compromissos e as vitórias que nela se registam.

Os grandes movimentos revolucionários que deixaram no séc. XX a marca das ideias do comunismo, das suas realizações e das lutas da classe operária e das outras forças anti-imperialistas, deram a alguns dos conceitos básicos relacionados com a organização do poder político conteúdos e expressões que, mantendo a sua essência, ganharam novas expressões. É o caso, por exemplo, da democracia e do Estado.

Com a vitória da Revolução de Outubro, iniciou-se a aplicação concreta de alguns princípios da democracia proletária. Foi, designadamente, o conceito de Direitos do Homem, lançado pela Revolução Francesa, mas limitado ao âmbito dos direitos cívicos, alargando-os, com o início da construção do socialismo, aos direitos sociais: ao trabalho, à instrução e cultura, à saúde, à segurança social (6).

Perante a luta crescente das massas trabalhadoras nos seus países, estimulada por essa nova concepção, os próprios Estados capitalistas sentiram-se forçados a recuar, principalmente após as grandes movimentações democráticas e sociais que acompanharam a derrota da versão nazifascista do impe-rialismo, na II Guerra Mundial.

A democracia ganhou assim, na consciência de largas massas, também um conteúdo social e tornou-se, ela própria, uma forma e um terreno da luta de classes.

Esta evolução na luta de classes, à escala nacional e internacional, obrigou também o Estado capitalista a assumir funções sociais que não se enquadram na sua natureza de classe, mas que lhe foram impostas pela luta de classes sob a forma de luta política de massas e a realidade do novo sistema sócio-económico.

A democracia, nos Estados capitalistas, reflecte sempre a luta e resistência das classes exploradas.

As democracias burguesas, não deixando de ser uma forma de Estado com que o capitalismo assegura a dominação política para manter a sua dominação económica, reflectem, em todos os países e na história de cada país, a forma momentânea da correlação de forças de classe no país (e também no plano internacional). Implicam um compromisso nessa luta. Não significam nunca que a classe dominante (hoje em dia o capital monopolista e financeiro) renuncie voluntariamente à sua dominação económica, abandone espontaneamente as posições de que se apoderou, deixe dissiparem-se os véus ideológicos com que oculta a sua natureza de classe.

A compreensão do significado da essência de classe da democracia burguesa não significa desprezar (ou desvalorizar) que ela possibilita às classes dominadas melhores condições para o desenvolvimento da luta de classes. Reconhecendo as limitações da democracia burguesa importa defender e alargar as conquistas políticas e sociais alcançadas no seu quadro. Não esquecendo que a democracia burguesa é um regime instável e que a classe dominante espreita todas as eventuais deslocações na correlação de forças para recuperar os terrenos que a luta de classes lhe reduziu. Veja-se o que acontece na ofensiva em curso nos Estados capitalistas para aumentar as condições de exploração dos trabalhadores, retirar direitos sociais, reduzir a democracia.

O que confirma a necessidade apontada por Marx, apoiando-se na experiência da Comuna, sobre a necessidade do exercício do poder pelos trabalhadores para alcançarem a sua emancipação.

Condições da revolução

As revoluções não se podem experimentar em laboratório. A sua experiência é feita ao vivo, no tecido social. Com todas as surpresas que a tentativa de levar à prática um projecto de transformação da sociedade comporta. Mas uma revolução não deve também ser uma aventura, lançada sem ter em conta as condições para o seu sucesso (7).

A análise das condições para uma revolução constitui uma das principais contribuições do marxismo-leninismo para a luta revolucionária. No caso da Comuna de Paris, Marx receava uma acção prematura dos operários parisienses numa situação desfavorável para uma insurreição. Mas quando a revolução proletária de 18 de Março de 1871 levou à proclamação da Comuna de Paris, apoiou-a por todos os meios possíveis.

Em princípios de Abril, analisando a correlação de forças, Marx compreendeu que as possibilidades de uma saída vitoriosa para a Comuna eram cada vez menores. Mas ao mesmo tempo valorizou justamente a grandeza histórica da luta dos operários de Paris, compreendendo que se tratava de uma manifestação até então nunca vista da iniciativa revolucionária criadora das massas populares, e criticando aqueles que viam na actividade da Comuna apenas os erros e as insuficiências (8).

Lenin desenvolveu mais tarde as condições de uma situação revolucionária, com base nas novas experiências da luta no seu tempo, assinalando que, para ter êxito, uma revolução deve apoiar-se no momento de viragem no desenvolvimento da luta em que seja maior a actividade das massas populares e em que sejam mais fortes as vacilações nas fileiras dos inimigos e entre os sectores hesitantes e indecisos. A esse momento de viragem criado num período revolucionário chamou Lenin uma “situação revolucionária”, durante a qual a energia das massas se manifesta em acções que pareciam impossíveis fora dessa situação revolucionária (9).

Em Portugal viveu-se uma situação assim em 1974, quando o MFA, numa situação em que se registava o crescimento da acção das massas populares e das forças antifascistas, criou no país uma nova correlação de forças, derrubando o governo marcelista e abrindo assim uma brecha que as massas populares aproveitaram para iniciar o processo revolucionário de 1974-75.

Mas não basta que as massas estejam em movimento. É necessário que actuem coerentemente e com objectivos por elas assumidos. Sem isso pode haver revoltas, mas não revoluções. Uma revolução exige também que haja forças políticas capazes de dar continuidade e tradução política à luta das classes revolucionárias e das massas populares.

A falta dessa força política foi uma das razões da derrota da Comuna. Foi tirando essa lição que após a Comuna se criaram os partidos operários socialistas de massas, organizados à escala nacional. E foi o Partido Operário Social Democrata da Rússia (bolchevique) que, em 1917, conduziu a primeira revolução socialista vitoriosa.

Alianças e forças sociais de apoio

As revoluções são feitas por seres humanos. As forças motrizes são as classes, grupos e camadas sociais que nela participam e o seu sucesso depende, em larga medida, das alianças que possam criar-lhe uma base social de apoio para o desencadeamento e sustentação do processo revolucionário.

Além do amadurecimento das condições objectivas, a revolução necessita também daquilo a que chamamos factores subjectivos, isto é, duma organização das massas populares e classes sociais interessadas na revolução que as tornem capazes de manter a coesão e continuidade na luta.

Na Comuna de Paris a aliança social de apoio foi constituída, como se dizia nos seus documentos, pelos “trabalhadores da mente e do braço” - operários, artesãos, artistas, intelectuais. Faltou-lhe o apoio doutra força social, em princípio também interessada nos objectivos libertadores da revolução proletária: o campesinato, então largamente maioritário na população.

A aliança da classe operária e do campesinato tornou-se, após a Comuna, preocupação fundamental do movimento comunista e foi, na revolução socialista russa de 1917, um factor decisivo da sua vitória, tendo-se tornado com os seus símbolos, a foice e o martelo, uma imagem emblemática do comunismo (10).

Hoje o quadro social é mais complexo, não só nos países capitalistas desenvolvidos como em todo o mundo. E à volta da sua caracterização trava-se também uma luta ideológica intensa.

Um dos temas dessa luta é o anunciado “desaparecimento da classe operária”.

É certo que o enorme aumento da produtividade com a aplicação da revolução científica e tecnológica permitiu um enorme aumento da produção com um menor número de trabalhadores. Modificou também as condições do trabalho, aumentando as exigências do trabalho qualificado e integrando crescentemente o trabalho intelectual no próprio processo da produção.

Mas significará isso o fim da classe operária? O próprio alargamento da produção capitalista aos países da Ásia, África e América Latina continua criando milhões de assalariados, proletários.

Por outro lado: nos países e sectores de mais alto nível tecnológico, deixarão de ter a condição operária os que asseguram a produção?

A identificação da classe operária com o trabalho braçal, físico, é uma evidente redução primária. Foi precisamente a substituição do trabalho manual pela máquina e do esforço muscular pelos motores que criou, na revolução industrial, a classe operária. A complexificação dos equipamentos, a redução do esforço físico, não altera a função produtiva dos seus operadores e o seu papel no processo produtivo.

O aumento de produtividade tornou possível libertar do trabalho directamente produtivo uma massa crescente de pessoas, que ficam disponíveis para outras actividades socialmente úteis: serviços, comércio, saúde, etc.. A essas pessoas juntam-se os grupos sociais que ficaram expropriados dos seus meios de produção pela concorrência da produção capitalista (industrial e agrícola) e pela usura bancária.

Mas qual é a condição social dessas pessoas?

Sendo desprovidos de meios de produção próprios, os seus meios de subsistência, os seus rendimentos dependem da venda da sua capacidade de trabalho, do seu salário (quer se lhe chame vencimento ou ordenado). Em idêntica situação se encontram hoje a grande maioria dos que realizam trabalho intelectual. Por isso, e pelo peso numérico que hoje têm no conjunto da população, a aliança entre essas camadas sociais e a classe operária desempenha actualmente uma importância decisiva na luta política e social contra a dominação do capital e é indispensável para garantir a base de apoio social a uma transformação da sociedade.

Mas a condição social não determina automaticamente a consciência social dessa condição.

Preconceitos sociais, uma longa tradição cultural que identificava classe operária com trabalho físico e falta de qualificação profissional, privilegiando no apreço social o trabalho “de mãos limpas” e “colarinho branco”, criaram fossos sociais e barreiras que dificultam a sua tomada de consciência da identidade de condição com a classe operária e a sua inserção na luta política de acordo com essa identidade. Só a própria prática social vai superando essas barreiras, pela experiência que a defesa dos seus interesses na luta social vai dando.

Significará isso que a aliança da classe operária com o campesinato deixou de ter a importância fundamental que o movimento comunista lhe atribui, desde a Comuna de Paris e da Revolução de Outubro?

Do ponto de vista numérico, o campesinato, os agricultores, não têm hoje o peso decisivo que tinham na primeira metade do séc. XX. Isso não retira porém o valor estratégico que essa classe tem, como produtora, ao lado da classe operária, da base material em que se apoia toda a manutenção e desenvolvimento da sociedade.

Vias da revolução

Quanto às vias de realização da revolução (11), desde os tempos do “Manifesto” de Marx e Engels que se pretende identificar os comunistas como cegos partidários da violência.

Marx, é certo, considerou a violência como sendo “a parteira da História” - mas referia-se à violência das classes exploradoras e à luta contra essa violência por parte das classes oprimidas.

Mas Marx apontava já, no rescaldo da Comuna, o absurdo dessa versão anticomunista da posição comunista: “nunca afirmámos que este objectivo deve ser alcançado em toda a parte por meios iguais”. “Sabemos que é necessário ter em conta as instituições, os costumes e tradições dos diferentes países”.

Marx considerava que em alguns países capitalistas do seu tempo havia condições para que os objectivos revolucionários fossem alcançados pela luta política e social. Mas alertava que, na maioria dos países, a violência do poder exigia a violência das massas, incluindo a acção armada.

O desenvolvimento da luta revolucionária no séc. XX comprovou que, tal como não há “modelos” para a construção do socialismo também não há para a revolução e, em cada país, as formas da revolução dependem das condições concretas em que ela se realiza.

Na própria experiência portuguesa o PCP teve isso em conta: não seguiu modelos, analisou as condições concretas do país.

Nas condições da ditadura fascista, considerou que, tratando-se de um regime terrorista apoiado na força armada, o seu derrubamento exigia a força, com um levantamento nacional apoiado por uma parte das Forças Armadas. (12)

Já nas condições de uma democracia avançada, exercida não só no plano político como no plano social, económico e cultural, no quadro da soberania nacional - objectivo actual da luta do PCP, conjugando a luta eleitoral e institucional com a luta de massas - o caminho do socialismo é o do aprofundamento da democracia (13).

Valor da memória histórica

O grito percursor da Comuna de Paris não foi bem sucedido na sua época. Antecipou-se-lhe com intensa generosidade revolucionária e uma audácia incomum: a de ser a primeira a fazer o descobrimento de um Estado radicalmente diferente. Outros milhões de gritos se lhe seguiram, que se ouviram - e ouvem - no mundo inteiro, ecoando aos quatro-ventos a vontade de um ideal, aquele que nos diz que isto vai mal enquanto seres humanos se aclimatarem anomalamente à exploração por outros seres humanos.

Julgar hoje a Comuna, analisá-la no seu heroísmo e nas causas da sua efemeridade, talvez seja para míopes leitores da História desnecessário e obsoleto. O certo é que, embora derrotados, os comunardos queriam e viam longe.

A História não se faz em linha recta. Balança, segundo as condições que se lhe impõem.

A Comuna perdeu por não ter força de vencer. Das razões sabemos nós as causas.

Mas a derrota da Comuna é a de uma mãe que morre, pagando o tributo de dar à luz um filho forte, que lhe vai suceder na luta. A Comuna não teve morte vã. Não é por acaso que ainda hoje, 130 anos depois, a burguesia tem medo dos comunardos.

Notas:
(1) Texto feito na base de uma intervenção no debate sobre "Actualidade da Comuna", organizado pela Direcção da Organização Regional de Lisboa,em 14/3/2001.
(2) Com base na experiência da Comuna, Marx concluía que a destruição do Estado capitalista burguês não significa que a nova sociedade, promovida pelo proletariado, possa desenvolver-se sem Estado, como afirmavam os anarquistas, na época com grande influência no movimento operário (e na própria Comuna), que recusavam a intervenção do proletariado na luta política e apresentavam a democracia como incompatível com qualquer Estado. A classe operária não pode simplesmente tomar a máquina do Estado capitalista e governar através dela, mas deve substituí-la por um novo Estado e transformar o seu domínio político num instrumento de reorganização socialista da sociedade.
(3) No quadro de concepções que apresentam o Estado acima das classes e vocacionado para conciliar os diferentes interesses da sociedade, apresentam-se hoje teorias que consideram ultrapassadas as classes, bem como a necessidade de tomada do poder e, consequentemente, da organização partidária independente da classe operária - deixando-a entregue à subordinação política.
(4) Temos no nosso País a experiência de governos eleitos em regime democrático que não aplicam uma política democrática.
(5) Limitações, deformações e violações da democracia, contrariando esta orientação foram uma das causas da falência do regime soviético: "é inegável que na construção do socialismo se deram transformações democráticas de alcance e significado histórico (...) e, em alguns aspectos e períodos, também no domínio político. Verificou-se, entretanto, que a democracia política veio a sofrer grandes limitações, não só no que respeita a liberdades e direitos dos cidadãos, à democraticidade das eleições, ao respeito pelo valor e intervenção do indivíduo (...)" - Resolução Política do XIII Congresso do PCP, Maio de 1990.
(6) Também no plano político a revolução soviética alargou o conteúdo da democracia com a universalidade dos direitos cívicos, incluindo o direito ao voto, reconhecidos a homens e mulheres, independentemente do grau de instrução, da raça ou nacionalidade - numa data em que nos países capitalistas mais desenvolvidos eles ainda eram negados às mulheres e aos povos dos "impérios coloniais".
(7) As concepções voluntaristas do revolucionarismo negam a importância da análise de uma situação revolucionária, afirmam que tudo depende da decisão dos revolucionários e que as condições para a revolução podem a qualquer momento ser criadas por uma minoria, através de um "foco" funcionando como motor de arranque das massas. Esquecem que esse motor, para funcionar regularmente, exige combustível e oxigénio: apoio organizado das massas.
(8) "A história mundial seria muito fácil de fazer se a luta fosse empreendida apenas sob condição de probabilidades infinitamente favoráveis" (K. Marx, Carta a Kugelmann, de 12/4/1871).
(9 O nosso cronista Fernão Lopes, ao descrever a Revolução de 1383, dá uma magnífica descrição da energia das massas numa situação revolucionária: "dava Deus tal coragem neles e tanta cobardice nos outros, que os castelos que os antigos reis não conseguiam tomar jazendo sobre eles com os seus exércitos, eles os filhavam em uma manhã, de barriga ao sol e sem capitão" (F. Lopes, Crónica de D. João I). Esse mesmo entusiasmo e combatividade das massas numa situação revolucionária, se registaram na nossa Revolução de Abril.
(10) A Revolução de Outubro alargou também o conceito das alianças revolucionárias, lançando o lema: "Proletários de todos os países e povos oprimidos, uni-vos!".
(11) "A passagem do poder político das mãos de uma para outra classe - escreveu Lenin - é o primeiro, o mais importante, o sinal fundamental da revolução, tanto no sentido científico rigoroso como no sentido político desse conceito". Mas no seu sentido lato de revolução social, isto é, de mudança das estruturas económico-sociais, o conceito de revolução abrange todo um extenso processo histórico, com avanços e recuos de acordo com a correlação de forças em cada país e à escala internacional. Assim foi também com a revolução burguesa, que pôs fim à sociede feudal.
(12) Programa do PCP para a Revolução Democrática e Nacional - VI Congresso, 1965.
(13) Programa do PCP para uma democracia avançada no limiar do século XXI, XII Congresso, 1988.

«O Militante» - N.º 252 - Maio/Junho 2001