2. O Renascimento.
Uma visão pictórica

 

Um estudo sobre o Renascimento exige, como é evidente, um aprofundamento que não se compadece com o espaço, sempre limitado, de um artigo. Por esta razão optamos por escolher de entre as diversas manifestações desse período inovador, a pintura porquanto nos parece permitir um melhor entendimento por parte dos leitores. As inovações que se registam, tanto no que concerne ao espaço, quanto no que se refere ao realismo da representação do homem, enquadram-se, perfeitamente, no contexto pictórico. Por outro lado, entendemos que seria oportuno esclarecer uma questão que ainda hoje em dia perdura, qual seja a da existência de um Renascimento do Sul e de outro do Norte. Parece-nos muito redutor considerar o Renascimento como um fenómeno exclusivamente italiano. Não obstante estudos recentes apontarem, de acordo com a tradição, para esta tendência sentimos que no Norte da Europa, em especial na Flandres, se regista um fenómeno idêntico e, quanto a nós, independente. A que se deve a ideia da exclusividade italiana? É, sem dúvida, o facto de nesta região surgirem os grandes tratadistas que, sobretudo desde o século XV, vão estabelecer algumas normas de composição e organização espacial como é o caso da ideia da perspectiva.

É certo que a observação directa da arte romana possibilitou aos artistas e teóricos italianos o rápido entendimento da necessidade de recuperar esse período áureo da sua civilização. Por outro lado a consciencialização da importância do homem e o reconhecimento do direito de libertação de uma sociedade feudal, espartilhada pelo poder obscurantista de uma mentalidade fanaticamente religiosa, impõe a mudança que os intelectuais transalpinos sentiam como uma verdadeira atitude revolucionária.

De resto, o Renascimento é um fenómeno marcado pela ascensão de uma classe urbana que se revolta contra o estatismo de uma sociedade rigidamente estratificada como era a da Idade Média. O desenvolvimento das cidades, as lutas populares que varrem a Europa de lés a lés, criam o embrião de uma consciência de classe que terá a sua repercussão nas manifestações artísticas.

Em Portugal a grande mutação inicia-se com a revolução de 1383, na qual participam, em estreita aliança, elementos do povo, da burguesia e de uma nobreza jovem que conseguem libertar-se do perigo que representava a manutenção de um estado feudal. Este movimento culminou com a política de D. João II, que lançou os alicerces da grande acção dos Descobrimentos.

O Renascimento, tanto no Norte como no Sul, coloca a humanidade no centro do pensamento livre e no progressismo de novos ideais.

1. Renascimento do Sul, Renascimento do Norte

Em 1548 o tratadista, pintor e arquitecto português Francisco de Hollanda, recém chegado de Itália onde contactara, no círculo intelectual de Vittoria Colonna, com Miguel Ângelo, conclui o seu livro Da Pintura Antigua onde escreve em dada altura: “Há ahi grande deferença entre o antiguo, que é muitos annos antes que nosso Senhor-Jesu-Christo encarnasse, na monarchia de Gretia e tambem na dos romãos e entre o antiguo a que eu chamo velho, que são as cousas que se fazião no tempo velho dos reys de Castella, e de Portugal, jazendo a boa pintura inda na cova. Porque aquelle primeiro antiguo é o eicellente e elegante, e este velho é pessimo e sem arte. E o que hoje se pinta, onde se sabe pintar, que é sómente em Itália, podemos lhe chamar tambem antiguo, sendo feito hoje em este dia”.

Embora o termo Renascimento esteja ausente, subentende-se que Hollanda considerava que a pintura italiana do seu tempo retomava padrões na praticada no espaço clássico greco-latino.

Páginas antes o tratadista explicita-nos a sua ideia em relação àquilo que designa por Resurgir. E aqui já está implícita a noção de Renascimento: “Então primeiramente a pintura começou a resurgir mui contrita e castigada. Resurgir não, mas a mover-se um pouco na cova onde estava e isto por ventura no ditoso tempo do gentil Francisco Petrarca por seu amigo Symon, o pintor d’aquella idade, e Giotto. Depois o primeiro que pintou a olio ousadamente foi o Pordonon em Veneza: na imagem do São Jorge armado com a reverberação das armas. E antes d’elle o Giotto pintor toscano e depois um Mantegna paduano, com a ajuda d’outros, que por não serem de tanta importancia não nomeo, começarão a desamortalhar e a desatar esta fremosa senhora; & vendo a gente e os homens que era uma donzela tão venerabil e graciosa começarão a haver piadade d’ella e a honrala afirmando que dina era de honor, e para ser conhecida de qualquer principe cristão; e cuidavão que dezião muito, e dezião inda muito pouco. Finalmente, no tempo dos papas Alexandre, Julio, e Leo, primeiro Lionardo de Vince florentino, e Rafael de Orbino abrirão os fermosos olhos da pintura alimpando-lhe a terra que dentro tinhão; e ultimamente mestre Miguel Angelo florentino, parece que lhe deu spirito vital e a restetuiu quasi em seu primeiro ver e prisca animosidade. Mas a Lionardo e a Rafael tenho mais enveja que a este famosissimo pintor toscano: tudo isto segundo o ponto que eu entendo”.

Há, desde logo, nos dois trechos do tratado de Hollanda uma constante, qual seja a da noção de uma pintura morta que jazia na cova e que é ressuscitada, ou feita renascer, pelos pintores da Península Itálica. Esta ideia vai Francisco de Hollanda buscá-la a Petrarca que é, aliás, citado. Em 1338, no poema Africa, Petrarca refere-se a uma época de trevas da qual é necessário sair. A associação das trevas à morte é evidente. Mas Petrarca vai mais longe ao afirmar que os Romanos pagãos viviam na luz enquanto que os Cristãos viviam na escuridão. Alusão clara à Europa medieval cujos incipientes países eram herança dos invasores bárbaros que tinham destruído o Império Romano. A afirmação de Hollanda de que o ressurgimento da boa pintura deve ser conhecido de qualquer príncipe cristão parece-nos ser uma subtil alusão à crítica petrarquiana. É ao poeta italiano que se deve, afinal, a noção de ressurgimento, ou renascimento, sob a influência dos modelos clássicos.

Todavia esta ideia de um período em que a pintura, e a arte em geral, estava morta encontra-se, igualmente, no Decameron (VI, 5) escrito por Bocaccio, discípulo de Petrarca, em 1350. Referindo-se à obra do pintor Giotto, Bocaccio considera que este trouxe à luz (...à vida) a pintura que “muitos séculos dominada pelo erro de alguns (...) tinha estado sepultada”.

Como se viu Hollanda estabelece uma espécie de evolução que caracteriza, segundo a sua perspectiva, o desenvolvimento do Renascimento pictórico: um primeiro período no século XIV com Simone Martini e Giotto; um segundo no século XV e princípios de XVI que integra o veneziano Pordenone e o paduano Andrea Mantegna; e, finalmente, uma terceira época que se desenvolve desde meados do século XV até meados do XVI em que se destacam Leonardo da Vinci, Rafael e Miguel Ângelo. Não deixa de ser significativo que Hollanda prefira, como claramente afirma, Leonardo e Rafael a Miguel Ângelo. A razão desta atitude deve-se, sem dúvida, ao facto deste último já estar a enveredar por uma corrente mais moderna e anti-clássica, ou seja o Maneirismo, que, de algum modo, vai pôr em causa os cânones renascentistas.

Mas, afinal, o que é o Renascimento e como o poderemos balizar cronologicamente? O problema é complexo e tem desencadeado ampla polémica entre os historiadores da arte e da cultura. No fundo trata-se de retomar os modelos deixados pela Antiguidade Clássica, em especial por Roma dado que os corifeus destas novas ideias, em especial Petrarca, assumem uma posição marcadamente nacionalista pró-romana. No entanto, a questão não é pacífica e podemos até considerar a existência de vários “renascimentos” algumas vezes diferenciados entre si. Quando, por exemplo, o Islão no século VIII entra na Europa traz consigo uma vasta informação sobre a filosofia grega que já tinha interessado os intelectuais árabes. Todavia, o facto não parece repercutir-se numa sociedade feudal e rude pautada por séries intermináveis de conflitos entre os grandes senhores mais interessados na guerra do que na actividade intelectual e pelo domínio de uma Igreja, igualmente pouco esclarecida.

Se o Renascimento procura no mundo greco-latino o seu modelo, ficamos perplexos quando vemos alguns historiadores considerarem o pintor Giotto como um dos seus primeiros representantes. Na obra deste artista a inovação reside, sobretudo, num novo ordenamento espacial. A paisagem surge como enquadramento importante das cenas representadas. Contudo, a figura humana está longe dos modelos realistas dos clássicos. Até mesmo a escala dos espaços paisagísticos apresenta manifestas ingenuidades longe ainda, do realismo de Rafael e de Leonardo. É só no século XV que a representação do homem assume, na pintura e na escultura, um estatuto de verismo que o relaciona com a noção judaico-cristã de um ser criado à imagem e semelhança do divino. Aqui coloca-se, porém, uma nova questão que tem causado viva controvérsia entre os especialistas. Não podemos, nem devemos considerar a arte da Itália como o centro exclusivo desse realismo. No Norte da Europa, designadamente na Flandres, deparamos com um fenómeno idêntico. Tomemos dois casos coetâneos entre si: Jan van Eyck e Fra Angelico. Como elemento de comparação atentemos em duas pinturas: a predela “São Nicolau salva três condenados” da autoria de Fra Angelico que se encontra na Galeria Nacional da Úmbria (Perúsia) e o painel “A Virgem do chanceler Rolin” pintado por Jan van Eyck e que pertence ao Museu do Louvre (Paris). Enquanto na primeira a paisagem que envolve a cena surge quase como um cenário de “cartão” com edifícios e montanhas sem qualquer sentido do real; em Van Eyck o fundo paisagístico transmite-nos um rigor fotográfico onde alguns historiadores já reconheceram uma cidade da Flandres. A representação da Virgem na interpretação do flamengo é de um realismo de modelo vivo, enquanto a maioria dos intervenientes na predela de Perúsia mostram uma rigidez de manequim.

Desta comparação podemos concluir que existem, com efeito, dois Renascimentos contemporâneos e sem reciprocidade de influências: o do Norte, sobretudo na Flandres, e o do Sul, o da Itália. Ambos têm em comum a mesma necessidade de realismo que interpreta o homem na sua verdadeira dimensão, ignorada na arte medieval que o reduzia a uma quase total falta de identidade.

O Renascimento é, quanto a nós, o reconhecimento do homem por si próprio liberto da rudeza dos estereótipos medievais. Descobre-se não só o Mundo Antigo, enquanto referência essencial, mas é também o espaço que se torna real. O homem, ao redimensionar-se, redimensiona o mundo que o rodeia. Para esta revolução contribuiu, sem dúvida, a descoberta de noções como a da perspectiva mas, também, a descoberta dos novos mundos que alargaram a ecúmena e conduziram a um encontro de culturas que provocou o despertar de uma curiosidade científica e filosófica. Ao contrário do que defendia Nietzsche que de um lado havia o Renascimento, ou seja a cultura italiana, e do outro a Reforma, o mundo nórdico, alemão e reaccionário, é preciso ter em conta que o Renascimento do Norte é o mundo de um determinado e original tipo de Humanismo que com pensadores como Erasmo de Roterdão contribuiu para uma visão renovada do mundo que se libertou dos traumas medievais de uma humanidade limitada ao obscurantismo de uma Igreja fechada sobre si própria.

O Renascimento, tanto no Norte como no Sul, foi a grande génese do Mundo Moderno.

2. O caso português

Para entender a situação das artes em Portugal, em especial da pintura, importa ouvir, de novo, Francisco de Hollanda. Escreve ele no tratado acima referido: “Mas neste lugar seja me a mí lícito dizer como eu fui o primeiro que n’este Reino louvei e apregoei ser perfeita a antiguidade, e não haver outro primor nas obras, e isto em tempo que todos quasi querião zombar d’isso, sendo eu moço e servindo ao Ifante Dom Fernando e ao sereníssimo Cardeal Dom Afonso, meu senhor. E o conhecer isto me fez desejar de ir ver Roma, e quando d’ella tornei não conhecia esta terra, como quer que não achei pedreiro nem pintor que não dixesse que o antigo (a que elles chamão modo de Italia) que esse levava a tudo; e achei-os a todos tão senhores d’isso, que não ficou nenhuma lembrança de mi. E porem eu folguei d’isso polo amor que á patria e a esta minha arte tenho”.

Consideramos esta crítica algo injusta e motivada talvez por algum despeito. Hollanda parte para a sua viagem a caminho de Roma entre 1537 e 1538, ora nessa época, embora a influência predominante fosse a da arte flamenga, verificavam-se algumas tímidas, mas óbvias, marcas italianas. É evidente que estas não resultavam de um contacto directo dos nossos artistas com o meio italiano renascentista mas antes provinham do conhecimento e da consequente utilização de gravuras provenientes daquela região. Um dos exemplos mais flagrantes é o da “Anunciação” do Retábulo da Madre de Deus executado em 1515 muito provavelmente pelo pintor régio Jorge Afonso e que hoje se encontra no Museu Nacional de Arte Antiga. O despojamento total do interior onde se desenrola a cena, sem os característicos objectos do quotidiano que caracterizam este tema quando tratado pelos mestres nórdicos, é importado de uma iconografia italiana que confere algo de sagrado e extra-terreno ao ambiente que rodeia este evento neo-testamentário.

O mesmo se verifica nas “Anunciações” do Retábulo da igreja de Jesus de Setúbal, também atribuído a Jorge Afonso, que se encontra no museu desta cidade; na de um Retábulo da Vida da Virgem de uma colecção particular e considerado da autoria de Gregório Lopes, outro destacado mestre da oficina de Lisboa. É deste mesmo pintor o painel “Martírio de São Sebastião”, proveniente da Charola do Convento de Cristo de Tomar, executado cerca de 1536 e hoje no Museu Nacional de Arte Antiga. Neste painel vê-se, em situação de destaque, um edifício circular, nitidamente renascentista, embora incluído num cenário urbano pejado de arquitecturas do Norte da Europa.

A preferência pela Flandres que se nota tanto nos artistas, como nos encomendadores portugueses em detrimento do “modo de Itália” tem uma clara justificação. Depois da chegada dos portugueses à Índia, em 1497, entramos em rivalidade comercial com as repúblicas italianas. As especiarias e todos os produtos orientais de que até então estas detinham um quase exclusivo na sua distribuição pela Europa passaram a ser comerciados sobretudo pelos mercadores portugueses. Este facto obrigou a que se mudasse o eixo de interesses mercantis e também culturais do Sul para o Norte. Note-se que durante o século XV as trocas artísticas faziam-se com a região transalpina. Pintores portugueses vão trabalhar na Itália, como por exemplo Álvaro Pires de Évora, João Gonçalves e Luis Giani di Portogallo; enquanto que os italianos Mestre Jácome e António Florentim trabalham em Portugal para os reis D. João I e D. Duarte.

Entrados no século XVI as feitorias portuguesas de Bruges e, sobretudo, de Antuérpia passam a ser grandes focos de intercâmbio cultural e artístico, e é aí que se vai educar o gosto dos portugueses. Mestres oriundos da Flandres vêm operar entre nós como é o caso de Francisco Henriques e o de Frei Carlos. Dois enigmáticos mestres nacionais, Eduardo o Português e Simão o Português fazem a sua aprendizagem nas oficinas de Antuérpia.

Esta preferência nórdica aplica-se, também, a outros ramos da cultura. Damião de Góis, um dos nossos mais destacados humanistas, estabelece fecundas relações com Erasmo, Lutero e Melanchton.

A opção por aquilo que designamos por Renascimento do Norte causa, naturalmente, alguma contestação por personalidades como Francisco de Hollanda que consideravam a arte italiana mais liberta das imposições de alguma irredutibilidade religiosa típicas, para eles, da arte flamenga. Francisco de Hollanda põe na boca de Miguel Ângelo esta crítica algo irónica à pintura flamenga que provavelmente reflecte antes a sua própria opinião: “A pintura de Frandes, respondeu devagar o pintor, satisfará, senhora, geralmente, a qualquer devoto, mais que nenhuma de Italia, que lhe nunca fará chorar uma só lágrima, e a de Frandes muitas; isto não polo vigor e bondade d’aquela pitura, mas pola bondade d’aquele tal devoto. A molheres parecerá bem, principalmente ás muito velhas, ou ás muito moças, e assi mesmo a frades e a freiras, e a alguns fidalgos desmusicos da verdadeira harmonia. Pintam em Frandes propriamente pera enganar a vista exterior, ou cousas que vos alegrem ou de que não possaes dizer mal, assi como santos e profetas. O seu pintar é trapos, maçonerias, verduras de campos, sombras d’arvores, e rios e pontes, a que chamam paisagens, e muitas feguras para cá e muitas para acolá. E tudo isto inda que pareça bem a alguns olhos, na verdade é feito sem razão nem arte, sem symetria nem proporção, sem advertencia do escolher nem despejo, e finalmente sem nenhuma sustancia nem nervo. E comtudo noutra parte se pinta pior que em Frandes. Nem digo tanto mal da framenga pintura porque seja toda má, mas porque quer fazer tanta cousa bem (cada uma das quaes só bastava por mui grande)que não faz nenhuma bem”. O conservadorismo português sentia-se por seu lado bem mais a contento com a maneira da Flandres.

Todos estes factos concorrem para uma certa fugacidade do Renascimento Português que foi pautado, em especial, por forças que aceitavam com relutância doutrinas que pusessem em causa a estabilidade de uma Igreja muito poderosa e interveniente que contava com o claro apoio régio, em especial no reinado de D. João III. São estes os factos que provocam uma decadência de longa duração cujos prejuízos marcaram profundamente a cultura portuguesa.

«O Militante» - N.º 251 - Março/Abril 2001