Sobre a descriminalização
do consumo de drogas



Deputado do PCP
à Assembleia da República

Cumprido que foi o imperativo constitucional de audição das Assembleias Legislativas Regionais dos Açores e da Madeira, estão agora reunidas todas as condições para que a Assembleia da República possa concluir o processo legislativo conducente à descriminalização do consumo de drogas. Claro que a conclusão desse processo não deixará de contar com a oposição do PSD e do CDS que, na falta de argumentos sérios para contrariar a sua justeza, insistirão em recorrer à mistificação, à demagogia e à ocultação do conteúdo real da legislação em vias de aprovação. Afirmar a oposição à descriminalização do consumo de drogas com a invocação de ser “contra a droga”, contra “a liberalização da droga” ou contra a “legalização das drogas leves”, não passa de uma reles falsificação destinada a confundir a opinião pública, na medida em que nada disso está em causa. Em todo o caso, para que não restem dúvidas, merece a pena alinhar algumas notas sobre este assunto.

O mero consumo de drogas deixa de ser crime

O que a Assembleia da República aprovou no verão passado - e se espera que confirme em breve - foi uma lei, resultante da fusão de projectos propostos pelo PCP e pelo Governo, que deixa de considerar crime o mero consumo de drogas. Trata-se no fundamental de considerar que o mero acto de consumir drogas não deve dar lugar à instauração de um processo crime e à consequente sanção de natureza criminal, mas antes a um regime de proibição que tenha como consequência um acompanhamento por parte de uma entidade administrativa, em colaboração com os serviços de saúde, que tenha como objectivo encaminhar os toxicodependentes para soluções de tratamento médico e promover a sua reinserção social.
O princípio geral em que esta lei assenta é o de que o toxicodependente é um doente e que, assim sendo, a única forma de procurar solução para o gravíssimo problema que a toxicodependência representa, para o próprio, para os seus familiares e para o conjunto da sociedade, é o tratamento e a reinserção social. A punição, e designadamente aplicação de penas de prisão, não só não possui virtualidades terapêuticas (embora possam existir programas terapêuticos em meio prisional) como pode contribuir - e na maior parte dos casos seguramente contribui - para agravar a toxicodependência e lançar as suas vítimas decididamente no mundo do crime.

Considera-se o toxicodependente como um doente

Mas será o toxicodependente uma pessoa doente? No livro Droga de vida, vidas de droga, Luís Duarte Patrício equaciona a polémica que pode haver sobre esta questão, na medida em que “se há pessoas dependentes que não se consideram doentes, muitas outras reconhecem-se como doentes e como tal necessitadas de tratamento para o seu sofrimento”. Mas, acrescenta, “o que não é nada polémico é que, quando a dependência existe, surgem sinais e sintomas de sofrimento se a pessoa estiver algum período de tempo sem consumir droga. Este sofrimento da dependência manifesta-se sempre, e repito sempre!, a nível psicológico e muitas vezes a nível físico”.
A convicção de que o toxicodependente é um doente e como tal deve ser tratado, tem aliás servido de base à generalidade das estratégias de intervenção que por todo o mundo têm sido adoptadas nas últimas décadas. É essa a perspectiva adoptada pelas Nações Unidas, pela Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga, pela Federação Internacional dos Intervenientes em Toxicodependência (ERIT) e foi nessa base que, desde a criação do Centro de Estudos e Profilaxia da Droga, em 1976, se tem vindo a criar uma rede de centros de atendimento e de tratamento de toxicodependentes que está hoje sob a responsabilidade do Serviço de Prevenção e Tratamento da Toxicodependência (SPTT) e cujo alargamento se impõe em face da gravidade da situação existente.
A concepção de que a toxicodependência é acima de tudo um problema de saúde pública tem marcado a própria legislação penal portuguesa que a partir de 1983 começou a prever a possibilidade de substituição das sanções penais tradicionais por soluções alternativas de tratamento e reinserção social. É mesmo significativo que a legislação aprovada em 1993, procedendo à transposição da Convenção das Nações Unidas de 1988, tenha considerado indesejável a aplicação de penas de prisão por consumo de drogas, embora não tenha deixado de a prever.

O espírito da lei

Existe hoje um amplo consenso na sociedade portuguesa na consideração de que o toxicodependente não é necessariamente um criminoso. Sê-lo-á, na medida em que pratique outros ilícitos, nomeadamente roubos, por forma a satisfazer as suas necessidades compulsivas de consumo. Mas, caso não exista qualquer criminalidade associada à toxicodependência, criminalizar o toxicodependente e mandá-lo para a prisão só por consumir drogas, é uma atitude não apenas injusta, mas absolutamente contra-indicada. Em situações dessas, a prisão nada resolve. É um absurdo insistir em aplicá-la.
Infelizmente, todos nós conhecemos toxicodependentes. Entre familiares, amigos ou conhecidos, todos nós temos conhecimento, quantas vezes directo, de situações dramáticas, de vidas e famílias destroçadas pela droga. Como encaramos as vítimas desse flagelo? Como criminosos, ou como pessoas que carecem urgentemente de acompanhamento e auxílio? O que entendemos que deve ser feito aos consumidores de droga? Mandá-los para a prisão, para saírem de lá na mesma ou pior, ou fazer tudo para que a sua situação seja acompanhada pelos serviços médicos competentes, seja assegurado o seu internamento, quando indicado, e sejam tomadas medidas visando a sua reinserção social, impondo, se necessário, algumas obrigações de conduta ao próprio consumidor?
No essencial, é este o espírito da lei em vias de aprovação. Tratar em vez de punir. Reinserir em vez de reprimir. Mas atenção:
O consumo de drogas não passa a ser permitido. Não há nenhuma liberalização. Consumir drogas dá lugar a uma sanção administrativa e à imposição de determinadas proibições, sempre substituíveis por soluções de tratamento. Assim, continuando o consumo de drogas a ser proibido, a sanção que lhe é aplicável deixará de consistir em penas de prisão ou de multa, mas passará a incluir um conjunto de medidas diversificadas, não repressivas, destinadas sobretudo a encaminhar os consumidores de drogas para o tratamento e a reinserção social, quando tal se revele necessário, ou para o abandono do consumo.

Tráfico de drogas e outros crimes

O tráfico de drogas continua a ser duramente punido. Não há nenhuma alteração legal nesta matéria. Os traficantes de droga continuam a ser tratados como criminosos que são. E bom seria que se reforçassem os meios de combate ao tráfico de droga e ao branqueamento de capitais dele provenientes.
Não está em vias de aprovação nenhuma legalização de drogas leves, ao contrário do que por vezes se diz. Propostas dessa natureza constavam de projectos de lei apresentados pela JSD e pelo BE, mas não fizeram vencimento.
Não está prevista nenhuma despenalização de quaisquer crimes cometidos sob o efeito, ou a pretexto, da toxicodependência, pelo que não há que recear qualquer aumento da insegurança pública em resultado das alterações à “lei da droga”. Pelo contrário. Se se conseguir que, com a sua correcta aplicação, alguns toxicodependentes encontrem o caminho do tratamento e da reinserção, seguramente que todos ganharemos com isso.

Outros projectos a acompanhar a nova lei

Dir-se-á por fim que a lei é de difícil aplicação, na medida em que exige um reforço significativo dos meios públicos de tratamento e a criação de estruturas próprias de acompanhamento dos toxico-dependentes e dos consumidores de droga em geral. É verdade que esse reforço de meios é indispensável, mas quanto a isso não há duas opções. Ou se reforçam esses meios e se criam as estruturas que são necessárias, ou bem que fica tudo na mesma, ou pior. Foi com a consciência desta realidade que o PCP fez acompanhar o seu projecto de revisão da “lei da droga” por outros projectos, designadamente de reforço da rede pública de tratamento e reinserção social de toxicodependentes e de medidas de prevenção primária e de intervenção em situações de risco.
Porém, de nada adiantaria deixar de tomar as medidas e as decisões que se impõem, com o pretexto de que ainda não está feito tudo o que é necessário fazer para que elas sejam correctamente aplicadas. Nada fazer, deixaria tudo rigorosamente como está.
Quando o PSD e o CDS-PP contestam as alterações à “lei da droga”, o que fica claro afinal é que pretendem manter tudo como está e acham muito bem que um jovem sobre quem recaiu a tragédia de se tornar toxicodependente seja preso só por consumir drogas e se arraste de prisão em prisão, agravando a sua situação e o sofrimento, não apenas do próprio, mas dos seus familiares e amigos.

«O Militante» - Nš 249 - Novembro/Dezembro 2000