A presidência portuguesa na UE
Notas em jeito de balanço

Joaquim Miranda

Membro do CC
Deputado ao Parlamento Europeu

Com o termo do mês de Junho e, mais objectivamente, com a realização da cimeira da Feira, em meados do mesmo mês, chega ao fim a presidência portuguesa da União Europeia.
E é curioso notar que o Governo do Engº António Guterres, que tanto apostou nela, arrasta-se agora penosamente, como que desejando ver-se livre, o mais rapidamente possível, do que já parece ser um fardo insuportável.
O caso não é para menos.
Com efeito e em termos de balanço, teremos e terá hoje o próprio Governo de se interrogar sobre o que de positivo resultou desta presidência. Inclusivamente porque o Governo quis e continua a querer passar a falsa ideia de que a sua popularidade externa estaria a aumentar, porventura na exacta medida do crescimento do descontentamento interno.

Uma presidência nada útil para o País

Afirmámos no início deste semestre que uma boa presidência seria aquela que, sem deixar de ter em conta a agenda comunitária, lhe imprimisse uma direcção e uma marca particulares, com a prossecução de prioridades e orientações que reflectissem preocupações e anseios que nos são próprios.
Aliás, a rotatividade das presidências encontra justificação nisso mesmo.
E isso poderia e deveria ocorrer quer no estrito âmbito de interesses específicos do País, quer também no quadro mais global da sua integração numa União Europeia em rápida, profunda e preocupante evolução, nomeadamente na perspectiva de um novo e amplo alargamento e, a mais breve prazo, duma nova e delicada revisão dos Tratados.
Cedo constatámos, porém, não ser esse o posicionamento do Governo do engº António Guterres, nomeadamente pela leitura do seu programa.
Os problemas reais que afligem o País foram pura e simplesmente esquecidos.
Ao ponto de nem o princípio da coesão económica e social, consignada nos Tratados mas sistemática e crescentemente omitida nos actos comunitários, lhe ter merecido a mínima atenção, mesmo se ele é oriundo dum dos países de menor desenvolvimento e o de mais débil nível de vida entre os que integram a União Europeia.
E é assim que não nos espantou, igualmente e a título de exemplo, o deserto de ideias resultante do mais recente Conselho informal de Agricultura, reunido em Évora; facto que por si só bem justificou a impressionante concentração de agricultores, convocada pela CNA e outras organizações representativas da lavoura portuguesa, a que se associaram congéneres de outros países, particularmente de Espanha.
Sendo certo que muito deveria ter sido feito num domínio onde abundam os problemas, quer no contexto de algumas organizações de mercado ou com vista ao alargamento das quotas leiteiras que nos estão atribuídas.
Aliás, passaram completamente ao lado desta presidência algumas questões de particular importância também para outros sectores relevantes da nossa economia. As negociações com Marrocos, por exemplo. Ou os novos acordos com países terceiros que já se prefiguram, com fortes e graves incidências no sector têxtil. Ou ainda e mais globalmente, as tentativas de relançamento das negociações no âmbito da OMC.
Para a presidência portuguesa estas constituíram questões menores!
Deslumbrado e como que convencido que estaria predestinado para grandes voos, o Governo esqueceu-se do País e apostou naquilo que considerou iniciativas de grande fôlego. Mas também aí a decepção logo substituiu a ilusão.

Preparação para a presidência francesa

Aliás, desde muito cedo que esta presidência começou a ser encarada, nomeadamente nas instituições comunitárias, como aquela cuja missão essencial consistiria, tão só, na preparação da presidência francesa (que se lhe segue, a partir de Julho).
Tal aconteceu, particularmente, com a revisão dos Tratados.
Sendo certo que a presidência portuguesa poderia ter desempenhado neste contexto um papel de especial relevo, tendo em conta as implicações profundamente negativas que dela decorrerão em especial para os países de mais pequena dimensão e de menor desenvolvimento, como Portugal.
São conhecidas as questões que certamente vão marcar a próxima Conferência Intergovernamental e que já marcam a discussão que vem sendo feita em torno dela; e as quais, de resto, muitas dificuldades suscitaram já em Amsterdão.
E não subsistem dúvidas sobre o real alcance que à mesma se pretende conferir: o exercício futuro do poder, com a constituição de directórios políticos, obviamente determinados e dominados pelas principais potências.
Quadro que se quer atingir em nome da eficácia, com o argumento do alargamento e por diferentes vias: com as cooperações reforçadas e alterando o actual figurino de funcionamento do Conselho, nomeadamente com o termo do actual modelo de presidências semestrais rotativas, com a extensão das maiorias qualificadas para adopção de medidas legislativas, com novas ponderações dos votos de cada país nas votações em que a unanimidade não é exigida (com reforço dos votos a disponibilizar para os grandes países); também com uma nova composição da Comissão, integrada por menos comissários que o número futuro de Estados membros (donde decorreria que alguns destes não estariam representados na única instituição com competência de iniciativa legislativa); e com o estabelecimento dum limite (700) para o número de deputados do Parlamento Europeu, sendo que a distribuição dos mesmos por país, se faria em correspondência com a população respectiva.
Apesar de tudo isto o Governo, que evidenciou sensíveis contradições internas quanto a esta matéria, demostrou- -se fundamentalmente incapaz de suster minimamente esta ofensiva profundamente lesiva dos interesses nacionais, deu mesmo mostras de grande abertura relativamente a tais intenções, foi ultrapassado e não se inibiu sequer de elogiar as propostas ultrafederalistas do ministro alemão dos negócios estrangeiros, que objectivamente suportam e reforçam os referidos propósitos.
E acresce que algumas das questões essenciais no presente momento não integraram sequer as prioridades da presidência portuguesa.
As recentes eleições para o Parlamento Europeu confirmaram um elevado nível de abstenção e, o mesmo é dizer, profundos défices democráticos, que determinam um sensível afastamento dos cidadãos.
Apesar disso e apesar de estarmos em vésperas duma nova alteração dos Tratados não se previram e muito menos se propuseram as alterações de fundo no plano do funcionamento das instituições que poderiam, ao menos, atenuar essas situações: nomeadamente uma maior associação dos Parlamentos nacionais ao processo de decisão comunitário.
E, obviamente, muito menos se preconizaram as indispensáveis alterações de fundo às actuais orientações neoliberais, nomeadamente com vista a dar combate ao desemprego e à promoção do emprego com direitos; sendo certo que a degradação social é inseparável do referido afastamento relativamente à vida comunitária.

Cimeira sobre o Emprego

Como marco principal desta presidência o Governo elegeu a chamada Cimeira Extraordinária sobre o Emprego.
Como antes afirmámos, a situação social que se verifica na generalidade dos Estados-membros é de molde a suscitar as mais legítimas preocupações. E bem se justificaria, por isso, uma mudança de agulha no domínio das políticas sociais.
Mas uma vez mais as principais decisões passaram para a presidência francesa. E quanto às orientações que dela saíram, constatamos que, como nunca, foi adoptada uma perspectiva de reforço da actual marca neoliberal.

O centro das atenções quedou-se, desde logo, pelas “reformas” económicas. E as questões sociais essas ficaram pelo caminho. Pior: dela saíram reforçadas orientações no sentido da precarização e da flexibilização do emprego, apesar de já velhas e gastas.
De tal forma que, mesmo alguns ténues compromissos sociais antes assumidos (por exemplo, no Livro Branco
de Delors ou em cimeiras como a de Luxemburgo), foram aí totalmente postos de lado. É o caso dos investimentos públicos - como as vias transeuropeias - que repetidamente foram referidos como meios para a criação de empregos e o combate ao desemprego.
Aliás, os elogios que a cimeira mereceu da banda dos governos britânico e espanhol - normalmente conotados com as posições mais conservadoras -, a afirmação não desmentida de paternidade que os mesmos fizeram do evento e a total identificação desses governos com as orientações que dele saíram, tudo isso confirma que esta foi a cimeira da consagração europeia do neoliberalismo, da definitiva adesão da União Europeia ao modelo norte-americano e da intenção de abandonar completamente o “modelo social europeu”.
O que não deixa de ser curioso, tendo presente que tal acontece por mão de Guterres e num momento em que os governos da Internacional Socialista pontificam em mais de
uma dezena dos quinze Estados membros da União Europeia, incluindo os quatro “grandes” (Alemanha, França, Grã-Bretanha e Itália).
Entretanto e para a cimeira da Feira - à falta de melhor e na esperança que ela não constituísse apenas uma mera passagem de testemunho -, o Governo esperava fazer um brilharete com a apresentação de uma proposta relativa à Carta dos Direitos Fundamentais; documento que vem sendo agora apresentado como panaceia para todos os males da UE.
Mas também aqui o Governo falhou, já que também ela será remetida, na melhor das hipóteses, para a vigência da presidência francesa.

Cimeira Europa/África

Entretanto e a muito custo, conseguiu--se concretizar a cimeira Europa/África. Dissemos repetidas vezes, a este propósito, que tudo deveria ser feito para assegurar a sua realização. Até porque ela se concretizava num momento particularmente propício, marcado pelo fracasso de Seattle e pela coincidência temporal com o termo das negociações do Acordo que substituirá a Convenção de Lomé.
Mas afirmámos igualmente que era indispensável garantir-lhe um adequado conteúdo, de forma a que dela saíssem resultados capazes de aprofundar e melhorar as relações, a todos os níveis, entre os dois continentes e de contribuir para a resolução dos enormes problemas que marcam o continente africano.
A verdade, porém, é que - por manifesta falta de vontade política da parte europeia e porque o Governo de Guterres parece ter-se bastado com a tradicional fotografia de família - da Cimeira do Cairo resultaram apenas conclusões redundantes e de limitado alcance futuro. Tratou-se, uma vez mais, de uma oportunidade perdida.

Com uma tal presidência, o Governo do engº Guterres, que internamente suscita um crescente descontentamento, foi também e à medida que o tempo ia passando, perdendo credibilidade no plano comunitário. E também neste caso em desfavor do País de que se esqueceu durante a presidência que exerceu.

«O Militante» - N.º 247 - Julho/Agosto 2000