Que Lei de Bases queremos para o património cultural? |
Professor Universitário
Historiador de Arte
Membro da DORL
e da Direcção do Sector Intelectual
de Lisboa do PCP
O País precisa com urgência de uma Lei-Quadro eficaz que proteja
o Património Cultural do povo português. A falta de instrumentos
de contrôlo dificulta a intervenção dos organismos de
Estado e facilita o abandono dos bens construídos, a ruína dos
recheios, a delapidação dos espaços históricos,
a rapina descontrolada de muitas obras de arte e até - dentro da consciência
alargada e globalizadora que os comunistas detêm face a este mesmo património
- a defesa e difusão internacional da língua.
Para nós, comunistas, falar-se de uma Lei de Bases adequada à
difícil situação desta viragem de século tem a
ver, naturalmente, com a defesa de um diploma que seja servido por objectivos
globalizantes e claros, que seja estruturalmente pragmático, que valorize
os bens a recensear, que codifique os modos de protecção, que
regulamente o inventário das existências, que incentive a salvaguarda,
que defina direitos e deveres de posse, que estruture os regimes de classificação,
de apoios mecenáticos, de alienação, de expropriação
ou de arrolamento, que estimule a fruição e o financiamento
e que congregue outras prerrogativas protectivas inerentes ao riquíssimo
acervo de valores histórico-artísticos, arqueológicos,
documentais e inorgânicos que (apesar de todas as delapidações
consentidas) ainda subsistem em solo nacional.
Uma reforma política que alarga a consciência identitária do povo português
Trata-se de uma reforma política que alarga a consciência identitária
do povo português como forte espaço de resistência consensual
face à profunda desculturação regional imposta pelo fenómeno
da globalização ultraliberal - uma evidência que o próprio
Governo do Partido Socialista, em 1995, assumia aliás como uma das
suas prioridades máximas. Infelizmente, entre as promessas e a realidade,
os resultados apresentados foram pouco satisfatórios, já que
o anterior projecto de diploma apresentado em Abril de 1999 pela equipa do
actual Ministro da Cultura foi justamente reprovado na Assembleia da República,
de tal forma surgia desajustado de princípios essenciais de revalorização
dos bens patrimoniais e com contornos de fragilização do poder
interventivo do Estado democrático, que em qualquer circunstância
deve ser reforçada numa matéria tão sensível quanto
esta.
A recente aprovação, em Conselho de Ministros de 25 de Maio
passado, de uma nova versão desta Lei de Bases - apresentada sem ter
sequer havido prévia consulta dos agentes culturais, desde os museus
às universidades, aos investigadores, aos técnicos de restauro,
às academias, associações de património e demais
organismos ligados ao sector!...- vem agravar esta situação,
pois tudo indicia que ela consubstancia o essencial do texto da anterior versão,
apenas com ligeiras variações quanto ao regime de protecção
(por exemplo, em torno do novo conceito de qualificação de bens)
ou quanto à definição da figura de Parque Arqueológico.
Os comunistas portugueses, precisamente porque sempre defenderam a Cultura
como mais-valia social e como afirmação necessária de
resistência e de di gnificação humana, têm acrescidas
responsabilidades numa luta que se constitui defesa de um imperativo nacional
em termos que podem e devem ser estruturados a partir de largos consensos.
A evidência do impacto brutal da globalização imperialista
nas estruturas de sociedades como a nossa, despindo-as de consciência
e identidade, impõe a defesa da Cultura - e do Património -
como um espaço com particulares especificidades que urge serem salvaguardadas
com esmero. Uma Lei de Bases que vise regulamentar neste sector tem de ter
em conta essas especificidades.
Medidas propostas pelo PCP
Assim, recordamos que, na área do estudo, salvaguarda e reabilitação
do nosso rico mas depauperado Património (Histórico-Cultural,
Arqueológico, Artístico, Documental e Etnográfico), o
PCP propôs - dentro da consciência alargada que assumimos face
a esse Património, entendido com um organismo vivo - uma série
de medidas com carácter de urgência, que importará lembrar,
pela sua importância, neste momento em que o inevitável debate
sobre a proposta de lei do Património se vai seguir e em que princípios
como estes deveriam integrar a doutrina da Lei-Quadro em apreço:
1 - que o princípio da gestão integrada de monumentos, edifícios
e bens seja consolidado no seio do ministério da Cultura, não
através de decretos impostos a outras tutelas do Estado (Finanças,
Plano, Defesa, etc.), mas através do reforço do diálogo
e confiança entre as diversas instituições envolvidas,
de modo a controlar recursos humanos e financeiros, definir prioridades cíclicas
e potencializar o poder de intervenção a partir de uma direcção
unívoca.
2 - que o prometido (mas adiado) Pacto Patrimonial entre o Estado e as entidades
que detêm bens (a Igreja Católica, em primeiro lugar, mas também
as instituições privadas, as Misericórdias, as academias,
associações e empresas, etc.) e com os técnicos de conservação
e restauro seja construído, como corolário primeiro da Lei de
Bases, em nome do reforço da confiança e diálogo entre
partes, congregando todas as entidades envolvidas (proprietários, criadores,
técnicos, fruidores) e reforçando a salvaguarda e a classificação
em nome de valores identitários consensuais.
3 - que o Inventário de Bens Patrimoniais nacionais, nunca cumprido
por falta de coragem política, seja finalmente levado à prática
como outro corolário da Lei de Bases, em moldes de registo exaustivo
(ao nível dos cinco inventários sectoriais: do património
edificado, móvel, arqueológico, documental e inorgânico),
segundo modelo unívoco e com estrutura responsável, de forma
a devolver ao povo português o conhecimento das existências e
a estancar a sangria da rapina e destruição em vastas zonas
do País.
4 - que a Lei-Quadro do Património Cultural, instrumento fundamental
de salvaguarda, possa ser reelaborada sem esquecer os bons princípios
da Lei-Quadro n.º 13/85 (nunca regulamentada) e melhorada em substância
em referência às especificidades do País, para poder ser
consensualmente viabilizada a curto prazo e, enfim, regulamentada.
5 - que o poder decisório do Estado em matéria executiva, no
que toca às intervenções em centros históricos
e monumentos classificados, se baseie na eficácia da conservação
preventiva, da expropriação concertada, da definição
de áreas protectoras e do reforço do restauro, em nome de sãos
princípios da transdisciplinariedade aceites pelas normas internacionais
estabelecidas.
6 - que não seja esquecida a regulamentação em bases
legislativas da prática antiquária, a processar de forma a normalizar
a sua actividade (quantas vezes em nome de interesses obscuros), redefinir
a noção de «arrolamento» e estancar o escandaloso
processo de depauperamento dos bens móveis.
7 - que o poder de intervenção a nível do património
inorgânico (oralidade, teatro popular, romarias, poesia ingénua,
festividades populares) seja reforçado em termos de Lei de Bases, por
ser justamente o sector mais ameaçado de desaparecimento à míngua
de registos de documentação antropológica e de instrumentos
de contrôlo adequados.
8 - que a formação de quadros técnicos na área
da conservação preventiva e do restauro seja eficazmente apoiada,
com incentivo aos trabalhadores e regulamentação das respectivas
carreiras.
Tudo isto tem a ver, intrinsecamente, com a Lei de Bases do Património
Cultural que o PCP defende.
«O Militante» - N.º 247 - Julho/Agosto 2000