Sobre as classes |
Membro da Comissão Central de Controlo
Da análise correcta à estrutura de classes na sociedade depende
toda uma série de questões não só no plano teórico
mas também do ponto de vista prático para a nossa acção
política.
De uma análise correcta à estrutura de classes, da definição
rigorosa de cada uma delas, do papel de cada uma delas na so-ciedade dependem
questões tão importantes para um partido comunista como são
o da classe que tem o papel fundamental na transformação revolucionária
da sociedade; a questão do poder político e a luta que se trava
em torno dele; as relações políticas; a luta ideológica;
a questão das alianças sociais e, na base destas, a das alianças
político-partidárias; a definição clara dos objectivos
de luta (a curto, médio e longo prazo) e as formas, as vias para os
alcançar; a questão da alternativa política democrática.
Com as classes se prende a questão essencial que é a da natureza
de classe do Partido, a sua identidade, o internacionalismo.
Nos nossos XII, XIII e XIV Congressos debruçámo-nos sobre as
alterações ocorridas na composição social da sociedade
portuguesa decorrentes das modificações profundas nas estruturas
económicas, resultantes das alterações no processo produtivo,
da centralização capitalista, das privatizações,
da destruição da reforma agrária, da restauração
do capitalismo monopolista e do latifúndio, da crescente submissão
económica e política ao grande capital estrangeiro.
Assinalámos, então, a crescente polarização social:
num polo, o polo do grande capital, a concentração de uma grande
burguesia, reconstituída e renovada, pouco numerosa, ligada ao capital
transnacional e que, num prazo relativamente curto, alcançou um enorme
poderio económico, político e ideológico; no outro polo,
o polo dos assalariados, a massa crescente dos que vendem a força de
trabalho e constituem hoje a esmagadora maioria da população
activa.
De todas as alterações verificadas destacámos: as modificações
na composição da classe operária e nos seus significativos
efectivos numéricos; a redução da população
activa nos campos, com particular destaque para a diminuição
do proletariado rural; o crescimento a ritmo elevado do número de empregados;
o aumento do peso numérico dos intelectuais e dos quadros técnicos.
Sublinhando a necessidade de um estudo mais aprofundado das transformações
ocorridas na sociedade portuguesa nas últimas décadas referimos
também, entre outras, as tendências da evolução
da população portuguesa para uma acentuada bipolarização
urbana e litoralização, marcado envelhecimento, crescente inserção
da mão-de-obra feminina no processo produti vo, aumento do número
de trabalhadores por conta própria.
Chamámos ainda a atenção para os novos fenómenos
ligados fundamentalmente à revolução informacional em
curso e de que são consequência as transformações
introduzidas na fronteira produtivo/improdutivo e respectivas
consequências das mudanças operadas na composição
e estrutura de algumas classes e camadas sociais.
Conscientes da grande complexidade que este tema da estrutura de classes da
sociedade apresenta e da sua grande importância, nas análises
que avançámos e na metodologia que seguimos, ditada pela própria
experiência, tivemos em conta uma questão de princípio
para a qual o Partido nos alertou: ter sempre em conta a nossa realidade,
ou seja, o nível de desenvolvimento e o carácter dependente
da nossa economia.
A divisão da sociedade em classes não é uma descoberta
do marxismo. Mas foram Marx e Engels quem analisou pela primeira vez, no seu
conjunto, o processo de desenvolvimento da sociedade. Revelaram as leis que
determinam a origem, a existência, as relações, a evolução
e o destino das classes sociais, assim como o papel da luta de classes. Luta
de classes que, no dizer de Marx, e a história comprovou, é
o motor da história, é a força motriz do desenvolvimento
da sociedade de classes.
(...) todas as lutas históricas, quer se desenvolvam no terreno
político, no religioso, no filosófico ou noutro terreno ideológico
qualquer, não são, na realidade, mais do que a expressão
mais ou menos clara de lutas de classes sociais, e que a existência
destas classes e, portanto também as colisões entre elas, são
condicionadas, por sua vez, pelo grau de desenvolvimento da sua situação
económica, pelo carácter e pelo modo de sua produção,
e da sua troca, condicionada por estes. (2)
Demonstrando que a existência das classes está apenas ligada
a determinadas fases de desenvolvimento histórico da produção,
que o aparecimento das classes foi resultado do desenvolvimento espontâneo
da sociedade, dependente do surgimento da propriedade privada e da desigualdade
económica entre os homens, Marx e Engels revelaram as leis económicas
da divisão da sociedade em classes.
No seu artigo Uma Grande Iniciativa, Lénine dá a seguinte definição
de classe:
Chama-se classes a grandes grupos de pessoas que se diferenciam entre
si pelo seu lugar num sistema de produção social historicamente
determinado, pela sua relação (as mais das vezes fixada e formulada
nas leis) com os meios de produção, pelo seu papel na organização
social do trabalho e, consequentemente, pelo modo de obtenção
e pelas dimensões da parte da riqueza social de que dispõem.
As classes são grupos de pessoas, um dos quais pode apropriar-se do
trabalho do outro graças ao facto de ocupar um lugar diferente num
regime determinado de economia social. (3)
Relativamente a esta definição, com o pretexto da sua aplicação
criadora, surgiram algumas teorizações
em que é sobrestimado o papel na organização social do
trabalho e subestimada a relação com os meios de produção.
Estas diferenças significam que, para alguns teóricos,
a questão da propriedade dos meios de produção perdeu
o seu carácter como questão fundamental na definição
de classe. A defesa deste ponto de vista separa a posição e
o papel da classe operária, por exemplo, do carácter capitalista
e concreto das relações de produção. Faz-se uma
comparação entre a divisão do trabalho industrial e técnico
e o trabalho físico e intelectual, não se leva em consideração
o facto do carácter do modo de produção ser determinado
pelas relações de propriedade.
Surgiram também interpretações sobre a estrutura social
que partem do lugar que os vários grupos sociais ocupam no campo tecnológico
da divisão do trabalho e no seio da so-ciedade, isto é, a chamada
tecno-estrutura. Trata-se, aqui, da aplicação do
conceito burguês de sociedade industrial à estrutura
social. Nisto se baseiam, por exemplo, as teorias que negam a existência
do proletariado e da burguesia, pretendendo dissolver o antagonismo entre
estas duas classes fundamentais da sociedade capitalista numa multiplicidade
de camadas sociais não-antagónicas.
Frequentemente a sociologia burguesa procura diluir o conceito de classe no
conceito mais lato de grupo social, substituindo a divisão
da sociedade capitalista em classes pela divisão da sociedade em grupos
sociais, em estratos (teoria da estratificação).
E, como critério para a inclusão de um indivíduo neste
ou naquele estrato, baseiam-se no tipo de profissão, na riqueza, na
educação, local de residência, clubes e associações
profissionais, científicas, literárias ou artísticas,
etc..
Ao contrapor estes critérios à teoria marxista-leninista das
classes, a sociologia burguesa proclama o desaparecimento das classes ou a
sua fusão numa denominada classe média.
E, como a imaginação não tem limites, a tudo se recorre
quando se trata de combater o marxismo-leninismo e os partidos que se orgulham
de integrar na sua identidade a teoria revolucionária.
Foi assim que, no jornal o Público (5.02.98), Augusto Santos Silva
(assumindo-se colega e discípulo de Boaventura de Sousa Santos) escreveu
num artigo que Marx aceitaria de bom grado reconverter a sua nesta citação:
Cidadãos de todo o mundo, uni-vos!, Isto porque, na sua
opinião, a universalmente conhecida consigna Proletários
de todos os países, uni-vos! está irremediavelmente
datada.
Correcções a Marx, Engels e Lénine do mesmo jaez abundam
por aí. Assim, a luta de classes - motor da história
foi substituída por intervenção cidadã -
o motor da transformação social, tomada do poder
pela classe operária substituída por entrega do
poder aos cidadãos, Partido Comunista, designação
tão cara aos fundadores do comunismo científico, seria, no novo
léxico, Partido dos cidadãos.
E como estamos em plena revolução informacional, já foi
importada a cidadania electrónica e aí temos o netizen
a substituir o corriqueiro cidadão, porque, segundo os
entendidos, a possibilidade de aceder à Internet está
a tornar-se uma parte essencial da cidadania. (4)
Por arrasto, temos aí, não tarda, instaurada a teledemocracia,
pois as novas formas de acesso à informação têm
um potencial democrático fenomenal (José Magalhães,
deputado do PS, DN, 9.12.99).
Como é natural, os marxistas e todos os que consideram as perspectivas
do progresso social estreitamente ligadas ao mundo do trabalho não
podem deixar de reflectir sobre o papel da classe operária no mundo
complexo e contraditório que é este no final do século
XX.
Essa a razão porque se discute há muito as modificações
que se verificam na com-posição da classe operária, na
classificação de classe de intelectuais e quadros técnicos
em resulta- do da revolução científico-técnica,
em curso há pelo menos cinquenta anos, e, mais recentemente, da aplicação,
também, aos processos produtivos, das conquistas científicas
e tecnológicas revolucionárias nomeadamente da informática.
É indiscutível que a classe operária representa hoje
uma força complexa, contraditória e heterogénea não
apenas na sua composição mas também nos planos político
e ideológico. Apesar disso, porém, não deixa de verificar-se
a comunidade de objectivos e interesses vitais dos seus vários destacamentos.
É que as diferenças, a maioria delas superficiais, não
conseguem ocultar o fundamental - a contradição entre o trabalho
assalariado e o capital que
Não se pretendeu aqui a abordagem da situação e papel
de todas as classes e camadas sociais que formam a actual estrutura de classes
da sociedade portuguesa actual. Tão pouco se pretendeu reavivar a polémica
que ainda persiste, por exemplo, em torno dos conceitos classe operária
e proletariado, assim como lembrar toda a riqueza das análises
sobre estas questões que o Partido já avançou, designadamente
nos XII, XIII e XIV Congressos, análises que, ainda que incompletas,
a vida tem comprovado estarem certas. Análises donde se extrai a inequívoca
convicção do importantíssimo papel que a classe operária,
os trabalhadores em geral, e o seu Partido - o Partido Comunista Português,
representam para o Povo e para o País.
Se a existência de classes com interesses antagónicos é
a base da luta de classes, realidade de todos os dias, a coincidência
de interesses de diferentes classes e camadas sociais torna possível
a sua acção comum, a sua unidade, a sua aliança.
No nosso País, onde há anos se desenvolve um processo de restauração
capitalista que conduziu já à reconstrução de
grandes grupos monopolistas, o sistema de alianças tal como o consagra
o Programa do Partido, comporta a classe operária, os trabalhadores
em geral, os pequenos e médios agricultores, os intelectuais e quadros
técnicos, outras camadas intermé-dias e, também, forças
sociais com interesses específicos - juventude, mulheres, reformados,
deficientes. É na base destas alianças, e só nelas, que
se podem estabelecer alianças políticas e definir uma alternativa
democrática.
(1) V. I Lénine, As três fontes e as três partes constitutivas
do marxismo, tomo III das Obras Escolhidas, Edições Avante!,
pág. 38.
(2) F. Engels no Prefácio à 3ª edição alemã
(1885) de O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, de K. Marx.
(3) V. I. Lénine, tomo III das Obras Escolhidas, Edições
Avante!, pág. 150.
(4) Entrevista de Stefano Rodota, ex-deputado do PDS ao Parlamento italiano
(DN, 11.12.99).
«O Militante» - N.º 247 - Julho/Agosto 2000