e a primeira fase do neo-realismo |
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A 5 de Dezembro de 1999 completaram-se
50 anos sobre a data da morte do escritor e militante comunista Soeiro
Pereira Gomes, cuja obra é um marco na história do neo-realismo
em Portugal. Pela pena de Urbano Tavares Rodrigues recordemos o intelectual revolucionário, o combatente comunista, o dirigente do Partido nos anos 40. |
O neo-realismo português foi, antes de tudo - é bom não
o esquecer - uma literatura de resistência ao fascismo salazarista,
o que lhe ampliou as margens, embora tenha tido como deus oculto
(para citar Lucien Golmann, o grande sociólogo da literatura desse
período) ou como guia teórico, a visão marxista da
história e do futuro, concebida como luta de classes, e a inevitável
vitória do Socialismo.
Esta lição preside de facto à elaboração
das grandes obras ficcionais de Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol, Fernando
Namora, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Mário Dionísio,
Faure da Rosa e Manuel Tiago, por exemplo. E de Antunes da Silva, Alexandre
Cabral e outros neo-realistas de maior ou menor mérito. Mas cada
um deles, consoante o seu grau de conhecimento, nem sempre muito elevado,
do materialisto histórico e dialéctico e a sua outra cultura,
humanista e literária, e naturalmente a sua sensibilidade e a sua
ideossincrasia própria, produziu romances e contos muito diversos
na apreensão do real, na maneira de veicular criticamente a mensagem,
no nível de literariedade e nas ressonâncias pessoais, embora
com um denominador comum: a denúncia do regime e das suas desigualdades
iníquas e uma certa esperança em contribuir pela escrita para
transformar o País, fazendo-se ouvir.
1. Alves Redol e Soeiro Pereira Gomes, os primeiros a surgirem com
o chamado grupo de Vila F. de Xira, voltaram-se decididamente para a sondagem
lúcida, mas também apaixonada, do mundo dos operários
e camponeses, alimentando o ambicioso projecto de levarem a efeito, à
luz da análise marxista, uma espécie de levantamento do homem
e da terra portuguesa, que relevava quase tanto da sociologia como da literatura,
o que se explica pelo facto de esta poder romper ou iludir mais facilmente
as barreiras da censura, que condicionou durante tantas décadas a
vida cultural e a produção artística em Portugal.
Essa mesma censura castrou a produção neo-realista, humilhando
os escritores, cortando-lhes parcialmente as obras, como sucedeu com Redol
e Manuel da Fonseca da forma mais estulta, ou proibindo-as totalmente e
gerando a auto-censura, o pior dos males, o medo de escrever, a necessidade
de baixar a fasquia, de usar eufemismos, de sugerir, sem dizer, de deixar
à imaginação do leitor muito do não dito. Há
quem entenda que os neo-realistas se defenderam bem destes escolhos, criando
os seus códigos alusivos, usando o efeito de distanciação,
certas parábolas, certas ambiguidades expressivas. A verdade é
que tudo isso, esses disfarces, essas metáforas e cumplicidades com
o leitor, pode o escritor socorrer-se delas em liberdade e então
resultam melhor.
Há exemplos evidentes destes subterfúgios, destas simulações,
truncagens, meias palavras, em romances de Namora, de Carlos Oliveira ou
do Redol, como o seu admirável Barranco dos Cegos, ou mesmo O Muro
Branco.
2. O próprio Soeiro, que em dado momento jogou toda a sua
vida na luta clandestina, só nos Contos Vermelhos se exprimiu sem
limitação alguma.
A sua profissão de empregado de escritório numa fábrica
em Alhandra fez dele o neo-realista que melhor conheceu o proletariado industrial,
quer nos Esteiros, a sua pequena obra-prima, quer no seu ambicioso romance
Engrenagem, que não desfrutou do tempo necessário de maturação
e aperfeiçoamento, mas é uma ilustração contundente
e viva de princípios marxistas, sem prejuízo da efabulação
fortemente romanesca, muito concentrada, e daquela naturalidade que advém
da observação directa e de uma sensibilidade privilegiada.
É certo que há qualidades demiúrgicas em Minas de S.
Francisco, de Fernando Namora, como aliás em toda a produção
deste autor, mas trata-se de um romance voluntarista, certamente menos conseguido
do que a maior parte das suas ficções, que tem muito de observação
directa e criptobiográfica.
Soeiro escreveu amorosamente Esteiros. À janela da vida, debruçando-se
sobre as adolescências pobres e tendo já entrado quantas vezes
nas casas da miséria e da marginalidade, pôde imaginar sem
esforço, ou mesmo copiar do real, amalgamando-as e transformando-as,
personagens tão ricas e diversas como as do João Gaitinhas,
do Maquineta, do Malesso, do Cocas, do Sagui, do violento Gineto, representação
da pura e nua rebeldia.
São paradigmáticas, de certo modo, a do João que encarna
o sonho e a esperança, herança do seu pai, o homem que vive
no forro da cidade, em luta contra o fascismo (lemos nós: um clandestino
do Partido Comunista); e o Maquineta, cujo comportamento traduz o orgulho
da condição operária, a classe do futuro.
O desejo sexual, força motriz da existência, desperta, pulsa
naturalmente nestas adolescências açoitadas pelo vento da injustiça
e realiza-se especialmente na estranha ligação de um deles,
o Sagui, com a louca.
Frágil, terno, quase defeituoso, comunicando com as potências
mágicas ou obscuras do cosmos, em devaneios e nocturnas visões,
à beira da alucinação e do mistério, é
compreensível que seja ele o eleito pela louca, meio amante meio
filho, companheiro do permanente delírio de um mãe erótica.
Aliás, a louca já perdeu um filho e busca-o nos desvãos
da vida.
A apetência de Soeiro para aflorar o onírico e o poético,
paralelamente à crua representação das injustiças
sociais e à análise das infra-estruturas económicas
(a exploração dos fracos pelos fortes, a devoração
das pequenas e médias empresas pela grande fábrica), essa
vontade de penetrar no mais fundo e no menos claro dos seres humanos e também
a difusa vontade da beleza que a palavra surpreende e recria, tão
patente nas rápidas descrições da natureza e das estações
do ano, conferem-lhe um lugar muito especial no aerópago neo-realista.
O de um fiel seguidor dos princípios da escola ao mesmo tempo com
sensibilidade estética, próxima da escrita poética.
Mas é sobretudo nas situações, no arranjo dos quadros
familiares, na expressão do sofrimento humano e na permanente vontade
de sonho que se entremostra o poeta que há em Soeiro Pereira Gomes.
3. Já num outro texto, focando a poeticidade das narrativas
de Soeiro Pereira Gomes, citei Paul Éluard, extraordinário
poeta do amor, contemporâneo do neo-realismo (resistente durante a
segunda Guerra Mundial e militante comunista de raiz surrealista), cujo
projecto de vida e de arte muito se identifica com a do autor de Esteiros.
São suas estas palavras, que me permito traduzir do original francês:
A poesia só se tornará carne e sangue a partir do momento
em que for recíproca. Essa reciprocidade é inteiramente função
da igualdade na felicidade entre os homens. E a igualdade na felicidade
elevaria esta a uma altura de que só podemos hoje ter fracas noções.
Mas tal felicidade não é impossível.
Não festa possível para a comunidade pícara dos adolescentes
de Esteiros. A feira excita-os, oferece-lhes a ocasião de praticarem
pequenos roubos (míseras restituições de tudo o que
lhes falta), de libertarem energias, olharem as mulheres da barraca de tiro.
Mas as laranjas que colhem nos pomares são de ouro, quando o Sagui
as coloca no regaço da louca; é branco o mágico cavalo
que foge, são-no as pombas que sobrevoam o mirante. Uma asa de beleza
inacessível, miragem da felicidade negada pela vida, plana sobre
os gestos violentos, as facécias, as palavras cruas destes pequenos
homens que trazem os ombros escaldados pelos amargos tijolos do forno. O
Maquineta tem de se lançar à água do rio para não
ser espancado, o Gineto crava o canivete no braço do guarda (o braço
da lei), o Malesso morre precocemente e o João Gaitinhas traz em
si, como uma estrela secreta, as palavras do pai sobre o futuro dos homens,
busca constantemente sol e horizontes e acaba por arrastar o Sagui para
a estrada larga das perguntas capitais, onde os rebeldes, os filhos da treva,
se tornam revolucionários. Fez bem Soeiro Pereira Gomes em deixar
em aberto este seu primeiro romance, contundente e combativo, mas essencialmente
poético.
O Gineto ouve a cantiga que já no início da jornada o João
Gaitinhas (ou outra voz) canta na rua debaixo das grades da sua cela. Um
fado sobre a condição operária. E chama-o. Mas ninguém
o ouve, nem os companheiros. É ainda cedo para o grande concerto
de todas as vozes, a ronda de que falava o poeta Paul Fort. Chegará
algum dia essa ronda universal da fraternidade?
Soeiro não o diz, apenas exprime o desejo, deixa-o voar com as pombas,
entumescer nas nuvens de flores da Primavera.
4. As estações do ano, a que já me referi,
são lírica e dialecticamente apresentadas pelo narrador deste
romance que resiste à passagem dos anos e até ao passar de
moda do neo-realismo, mero episódio, no ciclo das gerações
literárias que têm sempre de abater a anterior, que será
por sua vez ressuscitada e honrada por outra onda geracional e outro gosto.
Mas se Esteiros resiste até mesmo a esta vontade de apagar da literatura
o empenhamento político-social é precisamente por essa frescura
da escrita, essa autenticidade das personagens nas suas condutas e nas suas
frases, essa poeticidade flagrante.
Em Esteiros, o azul da Primavera e Verão, tudo o que reluz é
hino à existência, à alegria, à possibilidade
de recriarmos, transitoriamente que seja, a atmosfera, presente em nós,
do paraíso, de uma certa forma de eternidade ou serena projecção
no rio da história.
Pelo contrário, o Outono, o Inverno, a escuridão, o frio,
conotam a tristeza das classes dominadas e inserem-se na vertente mítica
de um sofrimento que por vezes parece assumir a forma de condenação,
mas não de condenação eterna, pois o mundo, em Esteiros,
se nos apresenta desde o início mutante, transformável.
«O Militante» - Nš 244 - Janeiro/Fevereiro 2000