O Governo português e a Organização Mundial do Comércio |
Membro da Comissão Política
e do Secretariado e deputado do PCP
à Assembleia da República
Se havia questão que merecia um grande debate nacional, susceptível
de promover a definição de uma es tratégia e objectivos
nacionais, conforme com os interesses do País, eram as novas negociações
da OMC.
Mas o que sabem os cidadãos portugueses destas importantes negociações?
Nada ou quase nada!
Qual a estratégia negocial do Governo português? Que objectivos
tem defendido nos Conselhos de Ministros da União Europeia onde estas
questões têm sido discutidas? Que estudos sobre as consequências
para Portugal dos resultados dessas negociações? O que sabem
os partidos da oposição sobre as posições do Governo
PS relativamente à OMC? Que consulta foi feita às organizações
sociais de trabalhadores, empresários, agricultores? Com que informação
do Governo estão a intervir os deputados portugueses no Parlamento
Europeu?
É claro que há aqui uma dificilmente explicável subtracção
ao País, e em particular à Assembleia da República, de
informação e de exigência de participação.
É assim ocultado ao povo português o necessário debate
sobre questões essenciais para a sua vida hoje e o seu futuro colectivo
amanhã, como País independente!
Amanhã virão dizer aos agricultores que a culpa não é
do Governo mas das imposições da OMC. Amanhã virão
dizer aos empresários têxteis que os seus problemas resultam
das posições que a União Europeia assumiu na OMC. Amanhã
virão dizer aos jovens que a degradação ambiental, um
planeta cada vez mais sujo e irreconhecível nada tem a ver com a política
do PS, mas com a decisão da OMC. Amanhã virão dizer aos
trabalhadores e ao povo que a falta de emprego e de qualidade de vida é
inevitável porque são incontornáveis os impactos da OMC.
Amanhã mandarão para Angola, Moçambique e Guiné
mais uns sacos de arroz, umas toneladas de peixe congelado ou uns contentores
de medicamentos, cheios de pena do atraso e miséria desses países,
nada dizendo sobre as suas responsabilidades numa OMC que pretende retirar
a dezenas de países e povos do mundo o direito a terem uma agricultura,
uma indústria, serviços públicos de saúde e educação
capazes de assegurarem níveis mínimos de dignidade humana. Mas
eles, mais uma vez, não terão culpa, porque a culpada será
a OMC.
Mas não se enganem. Haverá milhares de mãos a apontar
os culpados.
O que está em causa nas negociações da OMC?
Particularmente em foco estão as seguintes questões:
· A segurança alimentar, na sua dupla acepção
- o direito de cada país a uma produção agrícola
razoável para a alimentação do seu povo, ou seja, o direito
a ter uma agricultura e a exigência de produtos agro-alimentares saudáveis,
não agressivos da saúde humana. Segurança alimentar que
é explicitamente posta em causa pela liberalização dos
mercados agrícolas, pela redução da protecção
às produções nacionais, pela concepção
dos «produtos agrícolas» apenas como «mercadoria»
semelhante a qualquer produto industrial. Segurança alimentar posta
em causa por aqueles que não desistem de fazer da «alimentação»
uma arma.
Avançado relativamente às negociações está
o ministro Capoulas Santos que, no recente fim-de-semana, anunciou em Aveiro
o projecto de liquidação de 70% das actuais explorações
produtoras de leite, pelo afastamento da produção de todos os
agricultores até 4 vacas, que abrem assim espa- ço/quotas a
favor dos «agricultores competitivos».
· A liberalização acrescida do comércio de produtos
não agrícolas constitui uma orientação forte da
União Europeia. Na sua comunicação, a Comissão
propõe, mesmo que não avance mais nada, a «redução
a zero» pelos países desenvolvidos das taxas aduaneiras à
quase totalidade dos produtos originários dos países menos desenvolvidos.
O que levanta um conjunto de interrogações. Qual é o
conteúdo preciso dessa classificação dos países
menos desenvolvidos? Há nesta matéria coincidência de
interesses entre Portugal e os países mais industrializados da União
Europeia? Está avaliado o significado e definidas as condições
em que a China entra na OMC? Quem e como vão ser fiscalizadas as regras
de uma mais livre e mais aberta concorrência? Como? Se nem ao nível
do mercado único da União Europeia essas regras são respeitadas.
· A total liberalização do mercado de serviços
e, em particular dos serviços públicos, como a educação
e a saúde. Vamos (ou não) assistir em Portugal à generalização
nos serviços de saúde, do que aconteceu nos serviços
de hemodiálise, monopolizados por empresa transnacional? É imaginar
muito admitir ver no futuro um painel de peritos da OMC pronunciar-se a favor
do direito de escolas privadas de uma empresa transnacional de serviços
de educação não permitirem o ensino de teorias evolucionistas
de Darwin?! Tal como hoje nos querem impor uma alimentação à
base de produtos OGM (Organismos Geneticamente Modificados), ou de carnes
com hormonas!
· A «propriedade intelectual», na sua relação
com o comércio (TRIPS - Trade-Related Aspects of Intellectual Property
Rights), tal como os direitos de autor (copyright), denominações
de origem e proveniência geográfica, marcas comerciais, patentes
e projectos industriais. Para lá de outros aspectos, representa a tentativa
de apropriação pelas transnacionais da agro-química do
património de gerações de agricultores do mundo inteiro
e da biodiversidade do planeta, através do estabelecimento de patentes
de sementes e propágulos em simultâneo com os esforços
para impor o uso dos OGM.
· A total liberalização e protecção dos
investimentos do grande capital financeiro, com a tentativa de recuperação
e integração do Acordo Multilateral de Investimentos (AMI) na
OMC.
Apesar das posições cuidadosas face ao naufrágio do AMI,
expressas no Documento da Comissão e das cautelas presentes na Resolução
do Parlamento Europeu, diversos objectivos e conceitos - «não
discriminação», protecção dos investimentos»,
«clima empresarial estável e transparente» - evidenciam
os riscos de recaída no AMI, particularmente quando não se afirma
como direito imprescritível a capacidade dos países de acolhimento,
a regulamentar o exercício da actividade económica no seu território.
· A identidade e diversidade cultural dos povos, através do
tratamento das actividades culturais como pura e simples mercadoria.
Sendo uma questão de interesse relevante, a chamada «excepção
cultural» não pode servir de cobertura (chapéu) para fazer
passar todo o outro contrabando liberalizador.
Os perigos para a actividade cultural são reais. Basta atentar no alcance
e monstruosidade da alínea 27 da Resolução do Parlamento
Europeu que «Recomenda a instituição de um sistema de
arbitragem para aprovar os subsídios às línguas e culturas
minoritárias que sejam, ao mesmo tempo genuinamente necessárias
e distorçam a concorrência internacional na menor medida possível».
Será estranho ver um futuro onde um painel de peritos da OMC inquire
o Estado português sobre os apoios concedidos para a defesa da cultura
e do dialecto mirandês?
· A limitação e condicionamento das normas de trabalho
da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e das normas
ambientais, ao «bom funcionamento» do mercado planetário
e interesses do capital transnacional.
É lamentável não se afirmarem como objectivos/normas
centrais, a atravessarem transversalmente todos os dossiers e sectores da
negociação da OMC: o pleno emprego, o direito ao trabalho estável
e dignamente remunerado, as resoluções das Conferências
de Copenhague e de Pequim; o integral respeito pelos acordos multilaterais
do ambiente, nomeadamente os decorrentes das Conferências do Rio de
Janeiro e de Quioto.
Os problemas do desenvolvimento e a OMC
Quando as principais forças económicas e políticas do
planeta pretendem dar mais um passo (ou vários) no caminho da liberalização,
era bom que se olhasse para o que decorreu, desde 15 de Abril de 1994, em
Marraquexe.
São os relatórios das agências especializadas das Nações
Unidas que demonstram que «a receita mágica da liberalização
comercial» não resultou e fez dos países em vias de desenvolvimento
e com economias emergentes as suas principais vítimas.
As respostas a estas questões, ao direito de todos os países
e povos do mundo a um desenvolvimento autónomo (o que não significa
autárcico), equilibrado e sustentado, não está certamente
no prosseguimento a todo o vapor da liberalização dos mercados
e a regulamentação monopolística do poder, do saber,
da distribuição da riqueza.
Os arautos (do neoliberalismo) clamam que o remédio está na
liberdade de acesso pelos países pobres aos mercados dos países
ricos, no acesso aos mercados públicos e na sua privatização,
na total liberalização da circulação dos capitais
financeiros.
Mas escondem o que se esconde por debaixo dessas receitas com conhecidas e
desastrosas consequências. Escondem, por exemplo, que 43% das exportações
agro-alimentares brasileiras são controladas por 17 empresas multinacionais,
e que quem enriquece com essas exportações são os respectivos
accionistas e não os milhões de sem terra, que continuam a lutar
no Brasil por um pedaço de terra que lhes dê uma vida digna.
Escondem que quem vai ganhar com a abertura do mercado europeu da banana,
decidida e imposta pela OMC a pedido dos EUA, são as companhias norte-americanas
Chiquita e Dole Food e não os camponeses e os povos indígenas
da América Latina. Escondem que o dossier TRIPS pretende consolidar
o domínio monopolista dos conhecimentos científicos e técnicos
pelo mundo desenvolvido, obrigando os países pobres a pagarem caro
as transferências tecnológicas e a modernização
dos seus aparelhos produtivos. Escondem que a apresentação do
combate ao «dum-ping social e ambiental» como pro-
teccionismo inaceitável, é feito em defesa das transnacionais
que exploram essa mão-de-obra ou obtêm lucros elevados da exploração
das florestas tropicais.
São assim inteiramente justificadas as posições e as
preocupações de milhares de ONG que, dando voz a um larguíssimo
movimento de opinião pública mundial, contestam a abertura destas
novas negociações da OMC. E contestam, não porque as
coisas estejam bem. Mas para que seja feita uma avaliação da
si-tuação do planeta e das consequências do Acordo do
GATT de 93. Querem uma moratória a todo o processo de novas negociações.
Considerações finais e algumas propostas do PCP
Feitas as considerações atrás referidas, tal não
significa oposição do PCP a um acordo geral e global do comércio
internacional, dando um conteúdo, objectivos e funcionamentos novos
a uma OMC reformulada.
Um acordo precedido por um largo debate, permitindo a real intervenção
dos povos e países, das organizações sociais. Um acordo
que assegurasse a democraticidade e a transparência das negociações
e funcionamento das instituições da OMC. Um acordo que tivesse
por objectivo a construção de uma Nova Ordem Internacional justa,
equilibrada e democrática, «assente na cooperação
entre povos e países soberanos e iguais em direitos, orientada pelos
valores da paz, da democracia, do progresso social e da amizade entre os povos»,
recusando a globalização comandada pelo capital transnacional
e ofensiva dos direitos dos povos e dos equilíbrios ambientais».
Esse acordo imporá a avaliação das consequências
da actual globalização capitalista. Esse acordo exigirá
o primado da soberania e interesse de cada Estado, respeitando as suas especificidades,
necessidades e o papel fundamental dos seus sectores produtivos e públicos.
Esse acordo exigirá a contemplação
obrigatória do respeito generalizado por condições sociais
e ambientais. Esse acordo imporá o não tratamento de muitas
actividades unicamente a partir do conceito de «mercadoria», como
a agro-alimentar e a cultural, entre outras. Esse acordo imporá o respeito
e a promoção de acordos preferenciais com países com
menor desenvolvimento. Esse acordo exigirá o controlo dos mercados
financeiros, com a introdução da Taxa Tobin, a recusa de um
novo «AMI», reformulado ou com outro nome, na OMC; a luta contra
legislação extraterritorial.
«O Militante» - Nš 244 - Janeiro/Fevereiro 2000