O Governo do PS não quer fazer
uma reforma justa no sistema fiscal



Membro do CC
Deputado do PCP

A reforma do sistema fiscal está na ordem do dia constituindo uma necessidade e realidade incontorná náveis.De tal modo é assim que não há partido nem comentador ou analista que não tenha incorporado nas suas prioridades programáticas, nos seus discursos e nos seus escritos o tema da reforma fiscal. É matéria que está, pois, na moda.
A questão está em saber em que sentido vão, por um lado, as orientações das várias propostas de reforma do sistema fiscal e, por outro, se quem tanto fala no tema tem mesmo vontade política para o enfrentar ou, tratando-se de uma questão incontornável, vai-se falando - porque não se pode deixar de falar - mas para ir adiando.

Uma política fiscal muito injusta

Há duas questões fundamentais no sistema fiscal português. Por um lado a enorme fuga e fraude ao fisco que provoca como consequência que só os trabalhadores por conta de outrem e as empresas públicas paguem impostos (ou, dito de forma mais rigorosa, que sejam os que mais contribuem para a receita fiscal do Estado) porque são os únicos contribuintes em Portugal a quem é liquidado o imposto no momento de receberem o salário ou no momento de encerrarem os balanços. Por outro lado um sistema injusto, com uma enorme carga fiscal sobre os rendimentos do trabalho, complexo, com uma multiplicidade de impostos que deveriam ser reduzidos e simplificados.
Uma reforma do sistema fiscal, que altere profunda e radicalmente o sistema actual enfrenta, obviamente, interesses instalados. Sobretudo, os interesses daqueles que vivem bem com o actual modelo. As empresas que não pagam impostos ou que beneficiam de elevadas deduções e benefícios fiscais; os profissionais liberais; os que apresentam elevados sinais exteriores de riqueza sem que, correspondentemente, a sua declaração fiscal reflicta esse quadro e mesmo muitos pequenos contribuintes.
O PCP há muito que vem denunciando esta situação e há muito que vem apresentando propostas para um sistema fiscal socialmente justo.
Alguns exemplos.
De acordo com a análise das declarações liquidadas do modelo 1 do IRS (referente aos rendimentos dos trabalhadores por conta de outrem) cada trabalhador paga de IRS, em média, 195 contos/ano.
Entretanto, os empresários em nome individual pagam 33.000$00 e as pequenas empresas (com um volume de negócios inferior a 30.000 contos/ano) pagam tão somente 86 contos de IRC.
O IRS é responsável por 46,3% (com base nos dados do Orçamento de Estado para 1999) das receitas fiscais do Estado. Mas o IRC só é responsável por 29,6% daquelas receitas. E dentro do IRS as declarações das categorias A e H (rendimentos do trabalho por conta de outrem e pensões de reforma) correspondem a 88,4% dos rendimentos declarados, as da categoria B (rendimentos do trabalho independente) só a 3% e da categoria C (rendimentos comerciais e industriais) 4,1%. Isto é, enquan to, em média, os trabalhadores por conta de outrem e os pensionistas e reformados declaram um rendimento médio anual de 2.000 contos, as profissões liberais não vão além dos 900 contos e no comércio e indústria ficam-se pelos 635 contos.
Mas avancemos agora para o universo do IRC.
143.000 empresas, muitas vezes sempre as mesmas, não pagam sistematicamente IRC. Ou dito de outra maneira, desde 1994 que 2/3 das empresas não pagam o Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas. O número de sociedades a declarar prejuízo triplicou em sete anos apesar de, durante este período o Governo anunciar só boas novas no crescimento da economia. 64% das empresas não são colectadas e 158 sociedades são responsáveis por 59% da receita do IRC. Os prejuízos declarados anualmente montam a um valor médio de mil milhões de contos. Se tudo isto fosse verdade a economia portuguesa estaria na falência ou em plena recessão.
A tributação das instituições financeiras é outro escândalo. De acordo com o relatório do Banco de Portugal os bancos obtiveram, em 1998, 338 milhões de contos de lucros antes de impostos. Quando deveriam ter pago 36% de IRC - qualquer coisa como cerca de 122 milhões de contos de impostos - pagaram tão somente 68,2 milhões de contos correspondentes a uma taxa de tributação efectiva de 20,2 %. E isto já depois de descontadas as amortizações e provisões do exercício que como qualquer técnico de contas sabe são um armazém “legal” para onde se metem grande parte dos lucros. Porque se a análise fosse feita unicamente com base no "cash-flow" (diferença entre o total dos proveitos e dos custos) então o seu valor montaria a 693,4 milhões de contos correspondendo então o IRC pago a uma tributação de 9,8%. Mas o escândalo é ainda maior se considerarmos que mais de 50% do IRC é pago pela mais importante instituição bancária pública, a Caixa Geral de Depósitos. E que o último relatório da Inspecção Geral de Finanças indica que o Banco Comercial Português, o Banco Mello, o Banco Pinto & Sotto Mayor, o Barclays Bank, o Crédit Lyonnais, o Banco Borges & Irmão, o Banco Fonsecas & Burnay, o Banco de Comércio e Indústria e o Banco Nacional Ultramarino não pagaram um tostão de impostos, aparentemente por terem recorrido ao off-shore da Madeira.
Outro terreno da brutal evasão fiscal regista-se no comércio intracomunitário, com uma gigantesca fuga ao IVA e aos Impostos Especiais de Consumo. Só no sector das bebidas alcoólicas estima-se que as taxas de evasão fiscal ascendam a mais de 70% dos valores devidos ao Estado.
Simultaneamente têm crescido de forma exponencial os benefícios fiscais concedidos anualmente em sede de Orçamento de Estado e da legislação aplicável. De 132,6 milhões de contos em 1995 chegou-se aos 292,9 milhões de contos em 1999. Mais 120,9%. Sendo que nem todos os benefícios fiscais são condenáveis, como os que se referem a deduções e abatimentos em sede de IRS correspondentes à valorização de políticas sociais (saúde, educação, habitação própria) ou os que se referem à promoção do investimento produtivo e criador de emprego designadamente o direccionado para as pequenas e médias empresas e para as regiões menos desenvolvidas necessitadas de impulsos para a atracção do investimento, a verdade é que, em IRC, só nos benefícios concedidos em operações da bolsa, o incremento, entre 1995 e 1999 (período do Governo PS da anterior legislatura) é de 70,6% - 8,5 milhões de contos; em isenções diversas de natureza temporária ou definitiva o aumento foi de 359,6% - 117,5 milhões de contos - e em IRS o aumento dos benefícios fiscais em OPV´s - Operações Públicas de Vendas (privatizações) foi de 2736,1%. Só entre 1997 e 99 passaram de 2,9 milhões de contos para 17,3 milhões de contos.
É bem verdade a ideia comummente existente de que, em Portugal, só os trabalhadores assalariados pagam impostos. Os números não exigem comentários. Falam por si.

Impostos sobre o Património?

Entretanto, a última polémica surgida foi em torno da criação de um eventual Imposto sobre o Património que substituiria as actuais Contribuição Autárquica, Imposto de Sisa e Imposto sobre Sucessões e Doações e que levou inclusivamente à demissão do socialista Medina Carreira de Presidente da Comissão de Reforma da Tributação do Património criada por despacho do Ministro Sousa Franco de 4 de Agosto de 1997. Este despacho definia como objectivo para os trabalhos da Comissão a criação de um “imposto único sobre o património” que “incidirá sobre o valor dos bens imóveis e sobre os valores patrimoniais mobiliários a especificar na lei”.
As conclusões da Comissão confirmam o que há muito se sabia ou suspeitava. Por desactualização das matrizes tanto em relação a prédios urbanos como rurais como por fuga ao fisco da riqueza de natureza mobiliária (entre ela as acções e títulos, cotados ou não em bolsa), os impostos sobre o património actualmente existentes não chegam a representar 1 % do PIB contra os 8,9% que representam os impostos sobre o rendimento, os 9,1 % das contribuições para a Segurança Social ou os 14,7 % dos impostos sobre Bens e Serviços (IVA e outros impostos sobre o consumo). Como afirma o relatório da Comissão “só os pequenos patrimónios, pertencentes a estratos sociais mal informados, acabam por ser tributados”.
Terminados os trabalhos e apresentado o relatório logo se levantaram as vozes representativas dos grandes patrimónios - PSD, PP e também dentro do PS a par com a CIP - protestando contra a hipótese de criação de um imposto único sobre o património e que, designadamente, abrangesse a riqueza mobiliária. E, como de costume, logo o Governo do Partido Socialista, pela boca do Primeiro-ministro e do ministro das Finanças, sossegou os espíritos anunciando que deixava cair a proposta da Comissão que decorria de um mandato expresso que lhe tinha sido atribuído pelo anterior Governo PS.
Nada de tocar nos grandes interesses estabelecidos. O melhor para o PS é continuar tudo como está. Que pague impostos quem trabalha. É por isso, singelo contra dobrado, que não vamos assistir com o Governo PS (ou PSD) a nenhuma reforma fiscal digna desse nome.

É necessário alterar a política fiscal

O PCP já demonstrou que é possível alterar este estado de coisas, sem diminuir a receita fiscal do Estado.
No que se refere à luta contra a fraude e a evasão fiscal é indispensável promover a eliminação do sigilo bancário para efeitos fiscais (com todas as garantias para os contribuintes em causa); terminar com os benefícios fiscais ligados à especulação financeira e bolsista; fiscalizar as empresas que sistematicamente declarem prejuízos para efeitos fiscais, por exemplo, invertendo o ónus da prova, isto é, obrigar a que sejam as empresas nessas condições a justificar
as razões das sistemáticas declarações de prejuízos; tributar os rendimentos das profissões liberais e dos empresários em nome individual com o recurso, sempre que necessário, aos métodos indirectos; reforçar os meios técnicos e humanos à disposição da Administração Fiscal.
No imposto sobre os rendimentos do trabalho (o IRS) diminuir a tributação sobre os rendimentos mais baixos e aumentar a dos escalões mais elevados. Já o fizemos no Orçamento de Estado para 1999 onde a proposta apresentada pelo PCP, e aprovada, permitiu que 700.000 portugueses ficassem isentos de pagar IRS e cerca de 2 milhões passassem a ser tributados a uma taxa inferior à que pagavam. Na proposta original do PCP a isenção do IRS abrangia todos os casais com rendimentos brutos entre os 1700 e os 2000 contos anuais, aumentava de 25% para 30% as taxas de conversão dos abatimentos em deduções à colecta para as despesas com a saúde, a educação e a habitação, eliminava os limites com as deduções à saúde, aumentava o valor dos rendimentos do trabalho dedutíveis no cálculo do IRS e aumentava o limite superior do escalão do IRS sujeito à taxa nominal de 25% de 2500 contos para 2750 contos. Simultaneamente propomos a eliminação dos benefícios fiscais em IRS e IRC, entre outros, dos rendimentos provenientes de acções adquiridas em processos de privatizações, em ofertas públicas de vendas de empresas realizadas pelo Estado, em vendas ou em planos de poupança em acções bem como os benefícios fiscais contratados entre o Estado e as grandes empresas ao mesmo tempo que propomos incentivos fiscais para o investimento produtivo criador de emprego, designadamente o realizado pelas micro e pequenas empresas, em regiões do País carenciadas de investimento. Propomos ainda a tributação efectiva das grandes empresas e dos bancos e seguradoras bem como a tributação a uma taxa de 66% das despesas confidenciais ou não documentadas das empresas. Propomos finalmente a criação de um imposto sobre a riqueza (ou sobre o património) que, substituindo os actuais impostos da Sisa, Sucessões e Doações e Contribuição Autárquica, tribute as grandes fortunas.

É, pois, possível e necessária uma outra política fiscal, socialmente justa, que diminua a carga fiscal sobre os rendimentos de quem trabalha, que combata e não incentive a fuga e a fraude ao fisco, que tribute os grandes patrimónios e as grandes fortunas. É esta a reforma fiscal que tem de ser feita. É esta a reforma fiscal que o PCP propõe.

«O Militante» - Nš 244 - Janeiro/Fevereiro 2000