A decisão hegemónica
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Eduardo Costa
Professor de Filosofia |
A guerra desencadeada a 24 de Março na Jugoslávia trouxe com ela a maior ofensiva mediática a que já se assistiu. Em 91, a guerra do Golfo já inaugurara um novo conceito de guerra, a guerra-espectáculo, em directo, ao vivo, para consumo de um público confortavelmente sentado. Guerra que se consome qual folhetim que aspira a transformar o espectador num conviva habitual de raciocínio dócil, num cúmplice apaziguado por se saber ao abrigo das atrocidades da guerra.
E, contudo, o que está em curso na Jugoslávia, no centro da Europa, merece grande atenção e preocupação. Na verdade, os círculos dirigentes do capitalismo mundial, sediados em Washington e no Pentágono, com a abertura da guerra, lançam-se ao assalto de uma nova etapa na escalada para a hegemonia do planeta. É o cerco da Rússia e das enormes reservas energéticas e minérias da Sibéria e Extremo Oriente. É o aviso à Europa e a sua desestabilização, através da instalação de um enorme campo militar norte-americano no seu centro. É o redimensionamento, a reestruturação e a redefinição do âmbito e das funções da NATO como árbitro e cacete da ordem internacional emergente. É a missa de requiem pela ONU e pela OSCE tal como foram concebidas e o ensaio para a sua fixação nos papéis subalternos de moços de recados do Pentágono/NATO.
Os fins humanitários:”7 dias por semana, 24 horas por dia”
Desde o início, a mais recente intervenção da NATO chamou a atenção, e a crítica, de olhos que habitualmente a vêem com amizade ou, pelo menos, com benevolência, como foi o caso do Vaticano, que taxou o começo dos bombardeamentos aéreos como um claro sinal do fracasso do relacionamento internacional.
Outras críticas se lhe somaram. A Grécia, que teme que os refugiados e a guerra lhe entrem pelas portas dentro, sempre se opôs frontalmente. Em Itália, as reservas e a oposição vêm num crescendo, a raiar a crise política, ao saber-se que as águas do Adriático se vão pejando com os mísseis que os aviões da NATO largam no regresso das missões.
A nível nacional, personalidades tão visíveis como Mário Soares, Freitas do Amaral, Pacheco Pereira ou Miguel Sousa Tavares falaram em “erro” (por acaso nenhum deles se lembrou de mencionar “crime”...).
Mas, a questão é mesmo determinar se se trata de um erro da direcção imperial norte-americana (complexo militar-industrial, Pentágono e círculos presidenciais) que avaliou com ligeireza, exagerou, acabando por suscitar reacções inesperadas e indesejadas como o reforço da liderança de Milosevic, a solidariedade dos povos eslavos, a oposição da Rússia e da China, a desestabilização económica e social num arco muito extenso de países e regiões vizinhas, um reflexo de defesa e protesto em crescimento entre os povos, a reabertura dentro do pensamento religioso católico e protestante da polémica em torno da “guerra justa”, a divisão da opinião pública norte-americana acerca da guerra.
Ou se, pelo contrário, foi uma decisão pesada com frieza, planificada e preparada com grande antecedência, disposta a pagar os preços sociais e políticos necessários para atingir os fins pretendidos. Pensamos que tudo aponta neste último sentido.
Responder a esta questão é esclarecer quem promove a guerra, em referência a que interesses e quais os objectivos que ela visa no imediato.
Não é demais insistir em que a responsabilidade de travar a guerra contra a Jugoslávia cabe, fundamentalmente, aos EUA. Não é por acaso que os seus líderes públicos (Governo e Pentágono) e os seus verdadeiros líderes na sombra (complexo militar-industrial) tanto se escondem por detrás da NATO.
No Kosovo a decisão americana foi determinante. E se fosse preciso prová-lo, era suficiente lembrar que a primeira e a grande esquadra no Adriático foi a dos EUA, que 60% a 80% da aviação da NATO presente no teatro de guerra sempre foi norte-americana e que o apoio logístico, as comunicações e a vigilância do teatro de guerra sempre se fez com base nos sistemas americanos.
Está também fora de questão que as razões reais para a provocação da guerra fossem os motivos humanitários invocados pelos EUA e pela NATO. Os exemplos do que se tem passado na Turquia, em Israel, em Chipre, em Timor (foram os norte-americanos que deram “luz verde” à invasão indonésia), no Afeganistão e outros países, tornam isso evidente.
Aliás, que sentido faz falar em intervenção humanitária quando os noticiários afirmam que a NATO arrasou o Kosovo, o transformou numa terra de ninguém, numa terra queimada?
Os “fins humanitários” compreendem a destruição, em toda a Sérvia, de casas, hospitais, centros médicos, sanatórios, escolas, centrais eléctricas, estradas, aeroportos, fábricas, refinarias, depósitos de combustíveis, estúdios de televisão, transmissores? A reconstrução da Jugoslávia é avaliada em muitos mil milhões de dólares, o que leva o belicoso Primeiro-Ministro britânico Blair a apelar para um “novo Plano Marshall”.
Foram humanitários também os disparos contra as embaixadas (a chinesa nunca chegou a receber as desculpas formais da NATO e nunca aceitou a justificação de que se tratara de um engano) e as equipas de jornalistas?
Ou tem um sentido humanitário escondido o uso de munições com urânio empobrecido, que provocam o cancro? O uso de explosivos de grafite que deixam Belgrado às escuras, sem água e com os blocos operatórios paralisados? O uso de granadas de deflagração especificamente antipessoal? É compatível com os fins humanitários o bombardeio “7 dias por semana, 24 horas por dia” sobre toda a Sérvia e as bombas que vão parar ao Montenegro, à Voivodina, à Bulgária, à Albânia e outros “danos colaterais”que todos os dias crescem?
A divisória entre a Europa e a Rússia: a desestabilização da Europa, o cerco da Rússia
As razões para a guerra não podem ser reduzidas à simplez de que 90% da população é albanesa e Slobodan Milosevic um Hitler que lhes roubou a autonomia e os ia empurrando para fora da região.
Não se conhece exactamente quais as proporções de cada etnia na população, sendo as principais etnias a albanesa, a sérvia, a cigana e a goran, macedónios islamizados. Para a percentagem de albaneses do Kosovo tanto são apontados 90 como 60 por cento. O número mais frequente na imprensa afecta à NATO (80%) é retirado do censo de 91, realizado pelos albaneses, em que são contabilizados como albaneses todos os não-sérvios. Depois dessa data as forças políticas albanesas recusaram-se a participar noutro censo.
É verdade que o Kosovo possuía autonomia no quadro político muito diferente da Jugoslávia socialista, e que esta lhe foi retirada em 1989. Mas o êxodo da população albanesa não sofre qualquer comparação com as deslocações da população após o início da guerra.
Aliás, documentos internos dos serviços secretos do Ministério dos Negócios Estrangeiros e de Tribunais Administrativos da Alemanha vieram pôr em causa a existência de "limpeza étnica" e "genocídio" na República Federal da Jugoslávia, antes da guerra, sabendo-se, pelo contrário, que desde 91 o país recebera 700 mil refugiados da Croácia, da Bósnia e da Herzegovina.
E é necessário ter em conta o facto de o Kosovo representar para os sérvios o berço da sua nacionalidade.
A verdade é que, a questão dos Balcãs na década de 90 é, no essencial, projectada para dentro dos Balcãs pelos EUA e pela Alemanha, inflamando as tensões internas existentes, jogando com soluções políticas apressadas e a carga da herança histórica.
A questão do Kosovo começou a ser preparada nos Acordos de Dayton, em Novembro de 95, sob a tutela, a impaciência, a pressão dos EUA, e numa base militar sua! Estes acordos perfilhavam o princípio da limpeza étnica e consagravam a divisão da Bósnia-Herzegovina em três regiões: a croata, a sérvia e a muçulmana.
Os analistas mais informados e isentos observaram que os acordos de Dayton não encerravam uma guerra, abriam outras.
Não por acaso, só a 11 de Fevereiro de 96, o chamado Exército de Libertação do Kosovo (UÇK) dava provas da sua existência com atentados à bomba contra campos de refugiados sérvios na Krajina. No seu crescimento, apoio e treino estão implicados os serviços secretos albaneses (um dos seus oficiais superiores é um dos seis dirigentes do UÇK e esteve presente em Rambouillet), o ex-presidente albanês Sali Berisha, os serviços secretos alemães (BND) e as suas tropas de choque. Os fundos que alimentam o “exército” provêm da droga, de escroquerias e da extorsão a emigrantes pelas mafias kosovares da Suíça e Alemanha.
É a partir deste UÇK, a combater explicitamente pela criação de uma “grande Albânia”, que a imprensa alimentada pela NATO vai diabolizar o regime jugoslavo em 1998.
Mas, para os objectivos da Casa Branca/NATO a verdade é o que interessa esconder, pelo menos na ocasião. O império do mal é o "regime de Milosevic" e apontam-lhe à testa as chamadas negociações de Rambouillet. Foi-se tornando óbvio, a partir de 1998, que o Governo dos EUA se preparava, e preparava os governos aliados e a opinião pública, para atacar a Jugoslávia pelo Kosovo. Vários analistas o previram e produziram afirmações que corriam no mesmo sentido: fizesse o governo jugoslavo o que fizesse, a NATO atacaria; um acordo político negociado não satisfaria Washington; o acordo político proposto à Jugoslávia pela NATO comportava condições notoriamente inaceitáveis para Belgrado; a liderança norte-americana seria guiada por preocupações globais para estender e preservar a sua dominação com o objectivo de cercar a Rússia, afastar a Europa da Rússia, estratégia que passaria pela intervenção terrestre no Kosovo; nunca antes tinham sido simultaneamente destruídos tantos princípios da Acta Final de Helsínquia; a Europa sairia a perder.
A evolução dos acontecimentos veio dar-lhes razão. A questão central das negociações para os EUA/NATO sempre foi a força de ocupação, ou a “força de interposição” ou a “força de protecção dos refugiados”, como preferem chamar-lhe os porta-vozes atlantistas. A questão crucial foi a composição desta força, o seu armamento, as suas funções, a sua liderança, o seu estatuto.
Tornou-se evidente quando os EUA/NATO, inexplicavelmente, avançam para Rambouillet com os representantes do UÇK, e dispensando Rugova, que não pretendiam negociar, mas impor. O desenrolar das “negociações” provou isso mesmo, porém a diferença de objectivos entre Washinton e os líderes do UÇK ainda deu algumas dores de cabeça a Washington. Foi preciso interromper as negociações a meio, explicar aos chefes albaneses que o acordo político lhes convinha e que o pacote militar proposto liquidaria a soberania da República Federal da Jugoslávia. Este pacote militar, que permaneceu secreto até há pouco, e que significava, de facto, a ocupação militar de toda a Sérvia, foi rejeitado pelo regime sérvio.
A tentativa de mascarar este diktat à República Jugoslava tem continuado durante a guerra. Os gestos de boa vontade de Belgrado - a entrega dos soldados norte-americanos presos, o princípio da retirada das forças sérvias do Kosovo, a aproximação às posições da mediação - têm sido recebidos pela Casa Branca/NATO com a duplicação das forças no teatro de guerra, com os bombardeamentos (até 22 de Maio a NATO já tinha realizado 25.000 missões aéreas), com a extensão do tipo de alvos atingidos, com a abertura de novas frentes de guerra, com a concentração de tropas e armamento para a invasão terrestre, com a mais despudorada campanha nos meios de comunicação.
A nova (des)ordem internacional
A NATO celebrou o seu quinquagésimo aniversário na Jugoslávia. Ofereceu a si própria uma guerra. Esta guerra, qual caixa de Pandora, encerra em si potencialidades pelo menos em três vertentes: no campo militar, na ordem internacional, na esfera económica.
No campo militar, a guerra constituiu um decidido empurrão para elevar o orçamento militar dos EUA de 112 mil milhões de dólares, nos próximos seis anos, para 274 mil milhões no ano 2000 e para 331 mil milhões em 2005. É igualmente significativo que uma parcela substancial deste orçamento seja afectada à modernização do armamento, passando de 49 mil milhões em 1999 para 75 mil milhões em 2005.
A estratégia norte-americana deixa de pôr a tónica numa “guerra de coligação” para se concentrar, como Clinton explicitou em discurso (*), num recurso unilateral às suas próprias forças.
Ainda no campo militar, a guerra contra a Jugoslávia precedeu nos factos o ensaio para fazer renascer uma nova NATO. Uma NATO pronta a substituir-se às Nações Unidas e à Organização de Segurança e Cooperação Europeia, herdeira falida da Conferência de Segurança e Cooperação Europeia e da Acta Final de Helsínquia.
A guerra contra a Jugoslávia dá também um abanão gigantesco na ordem internacional estabelecida, é a sua subversão. Destroi o conceito da resolução dos conflitos por meios políticos, pacíficos e negociados nas Nações Unidas, de acordo com a sua Carta, e substitui-o pela ameaça do recurso à força e pelo uso da força... decidido pelos mais fortes. Substitui as Nações Unidas e os seus orgãos por “grupos de contacto” manufacturados nos corredores do poder. Ridiculariza o Tribunal Internacional de Haia e reduz o Tribunal Penal Internacional à categoria de um subserviente guichet de atendimento público dos EUA.
Haverá também que examinar as consequências na esfera económica, sendo contudo de registar a depreciação do euro em relação ao dólar e os chorudos lucros do complexo militar-industrial norte-americano com a guerra.
Verifica-se, uma vez mais, que as guerras são o sangue revitalizador do capitalismo e a sua terapia de choque para as suas crise cíclicas; em curto e grosso, a sua essência.
Para quando, artistas e escritores portugueses, as imagens, as palavras, os sons que nos contem as Guernicas actuais? Só a força da opinião e da acção dos povos em prol da paz pode travar a fera no seu covil. A cegueira que percorreu o mundo no início do século e na década de trinta não deve repetir-se.
(*) Discurso de 26 de Fevereiro/1999, em São Francisco.
Internet http://www.whitehouse.gov
«O Militante» Nº 241 - Julho / Agosto - 1999