Processo de privatização
da Mundial Confiança e do BTA (*)



Lino de Carvalho
Membro do Comité Central
Deputado do PCP à Assembleia da República
António Filipe
Membro do Comité Central
Deputado do PCP à Assembleia da República
O processo de privatização da Mundial Confiança e do Banco Totta & Açores que conduziu ao controle destas duas empresas por António Champalimaud é, porventura, o caso mais paradigmático de como os interesses e os meios do Estado foram postos ao serviço da reconstituição de um grupo económico privado.
A análise deste processo em relação a inquéritos anteriores sobre a mesma matéria permitiu ir mais longe na análise da matéria de facto e de direito. Novos documentos e novos depoimentos foram trazidos ao processo. O relatório e as suas conclusões expressam com clareza a matéria apurada.
Não há lugar a dúvidas que, entre outros factos apurados,
a) o Estado, em 15.04.92, colocou à disposição de António Champalimaud, através da CIMPOR e do BPSM, 18,6 milhões de contos, com os quais aquele adquiriu 51% da Mundial Confiança que, por sua vez, lhe serviu de alavanca para adquirir o Banco Totta & Açores;
b) Foi celebrado um acordo global com António Champalimaud pelo qual o Estado não só desistiu de todos os processos que corriam os seus termos em diversos tribunais - incluindo os referentes a processos de arrolamento de bens resultante de utilização de fundos do BPSM em proveito próprio com a abertura de contas secretas em Londres - como se facilitou e privilegiou uma autorização de compra de 50% do Banco Totta & Açores, em 1995, com dispensa do lançamento de uma OPA e se viabilizou um Acordo de 28/12/94 celebrado entre o BANESTO e associados portugueses e António Champalimaud. Com este último acto foram legitimadas actuações anteriores que violavam claramente a lei portuguesa.
Houve, ao longo de todo o processo, uma actuação deliberada do Governo, em concertação com António Champalimaud, no sentido de ser reconstituído o império económico e financeiro deste sem que tivesse de despender quaisquer recursos próprios significativos.
Tudo isto está claramente provado. A dimensão do escândalo e das irregularidades cometidas, tocando profundamente a promiscuidade e troca de favores entre o Estado e um grande grupo económico, num caso sobre o qual sempre houve suspeições, desencadeou a maior vaga de pressões sobre a Comissão de Inquérito e, em particular, o relator, de que há memória na história das Comissões Parlamentares de Inquérito. É que até aqui as suspeições anteriormente existentes e mesmo alguns factos apurados em anteriores Comissões nunca tinham conhecido um bom termo porque as maiorias políticas formadas pelo PSD o bloqueavam. E, agora, com os novos factos apurados e a impossibilidade de qualquer partido sózinho poder inviabilizar a aprovação do relatório, fez soar as campainhas de alarme dos directamente implicados no escândalo. Cartas sucessivas e declarações públicas dos responsáveis de então; pareceres jurídicos elaborados por ilustres e aparentemente insuspeitos causídicos a pedido de um dos envolvidos nas irregularidades; propostas de audições à última hora para que o(s) visado(s) pudesse(m) contestar o trabalho do relator - coisa nunca vista em anteriores inquéritos - e, até, editoriais de jornais escritos por quem seguramente nunca leu uma páginas dos milhares de documentos e depoimentos trazidos à Comissão mas que se permitiu amplificar, seguramente com toda a independência, os argumentos de defesa dos responsáveis do Governo de então, de tudo se revestiu a pressão sobre a Comissão de In-quérito, para que a verdade dos factos não fosse traduzida no relatório e conclusões do inquérito.
Apesar disso havia razões para pensar que a Comissão faria jus ao trabalho de mais de seis meses aprovando um relatório que expressando rigorosamente a verdade dos factos apurados prestigiasse a Assembleia da República e fosse um exemplo para a exigência de rigor e transparência que, independentemente das posições de fundo que cada um tenha sobre as privatizações, sempre deve presidir a operações onde estão envolvidos gigantescos interesses patrimoniais e financeiros do Estado e, portanto, dos cidadãos que os deputados representam.
Eis senão quando o Partido Socialista, ao arrepio das posições que tinha tomado durante as audições, decidiu juntar a sua posição à dos deputados do PSD que naturalmente tinham como objectivo ilibar os actos do seu Governo presidido pelo Prof. Cavaco Silva. Dando o dito por não dito, assumindo posições contraditórias num dia com posições assumidas anteriormente no decurso da mesma reunião (estamos a referir-nos ao facto de, à última hora, o PS querer ouvir em audição, fora já de todos os prazos legais para o funcionamento da Comissão - e para se pronunciar sobre o projecto de relatório, pasme-se - um responsável ministerial de então e que, por motivos idênticos - no processo do BCP/BPA - o mesmo PS se tinha oposto quando os deputados do PSD fizeram igual proposta), o Partido Socialista sucumbiu e foi porta-voz daqueles que tudo fizeram para que a Comissão de Inquérito não aprovasse nenhum relatório. Com a sua abstenção inviabilizou o relatório. E nem sequer insistiu muito na apresentação e aprovação de um relatório alternativo que dizia possuir, que distribuiu à comunicação social mas que nunca distribuiu na Comissão. Será que nem sequer esse dito relatório alternativo interessava aos implicados nas irregularidades cometidas?
A atitude do PS na Comissão de Inquérito - com a excepção de um dos seus deputados, honra lhe seja feita - demonstra que, afinal, PSD e PS estão irmanados e não se distinguem quando se trata de definir posições e políticas em relação aos grandes interesses económicos. Como afirmaram os deputados do PSD na declaração final, quando agradeceram ao PS a sua posição, este com a sua atitude veio concordar e legitimar a actuação dos Governos do PSD que o PS tanto criticava.

Apesar deste episódio lamentável, que impediu a existência de qualquer relatório sobre este processo, o imenso acervo de documentos e depoimentos trazidos ao processo atestam claramente aquilo que, pelas razões expostas de todo em todo estranhas ao apuramento da verdade, constituiu o cerne deste processo de privatização: uma gigantesca operação de engenharia financeira e política, conduzida ao mais alto nível do Estado português, com vista a colocar nas mãos de António Champalimaud meios do Estado com vista à reconstituição do seu império económico e financeiro. Um escândalo em qualquer parte do mundo!

(*)Declaração de Voto dos Deputados do PCP na Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar para Apreciação de Actos dos Governos do PS e do PSD envolvendo o Estado e Grupos Económicos.
Itálicos e destaques da responsabilidade de O Militante
«O Militante» Nº 241 - Julho / Agosto - 1999