As acções da ARA e a sua repercussão política *
O primeiro alvo - o navio Cunene
Em 26 de Outubro de 1970, quatro meses após a constituição e
instalação do seu Comando Central, a ARA levou a cabo a sua
primeira acção. O alvo foi o navio Cunene que se
preparava para partir para o teatro da guerra colonial, carregado
de material militar e logístico.
O navio Cunene não foi afundado, nem era esse o
objectivo que se propunha alcançar, mas para além do grande
impacte político desta acção que constituiu então uma
autêntica novidade e inovação na luta contra a guerra
colonial, a sua missão militar foi bastante retardada uma vez
que ficou imobilizado no porto de Lisboa durante bastantes dias
para receber as necessárias reparações dos estragos sofridos.
Esta operação foi antecedida de um trabalho de reconhecimento
bastante intenso e algo demorado, dados os modestos recursos de
que se dispunha.
Na busca de meios de execução, como por exemplo o barco para
transporte de homens e materiais até junto do objectivo,
gastaram-se muitas horas, no decorrer de vários dias, em
diligências e deslocações ao longo do Rio Tejo.
Desde as docas onde existiam barcos de recreio, na vasta zona que
vai dos Olivais à Cruz Quebrada, até às diversas praias onde
existiam pequenos barcos de pesca artesanal, tudo foi passado a
pente fino.
Ao fim e ao cabo, ponderadas várias hipóteses, acabou por se
seleccionar a zona dos Olivais-Poço do Bispo, onde parecia
fácil a captura de um barco para o objectivo em vista.
Para executar esta operação, que exigia um certo conhecimento
dos meandros do rio Tejo, do movimento das suas marés, assim
como o domínio da arte de remar e também da arte de furtar...,
existia um camarada com as condições exigidas que, já havia
tempo, se propusera participar numa operação deste género, o
camarada Gabriel Pedro, velho militante comunista que havia
estado deportado no campo de concentração do Tarrafal durante
vários anos e se encontrava então exilado em França.
Vindo a Portugal por via clandestina, após uma breve estadia
numa casa de apoio que lhe foi destinada, no dia combinado e
após um reconhecimento prévio do local, Gabriel Pedro, com o
à-vontade que lhe era característico, entrou na doca do Poço
do Bispo e como bom conhecedor da matéria, depois de passar em
revista todo o material existente nesse momento na doca,
apoderou-se de um bote adequado à tarefa.
Conduziu de imediato o barco para o local onde se ergueu a
Expo-98, que era então uma zona abandonada e muito degradada,
estando já ali os restantes membros do comando responsável por
essa operação, que incluía o camarada Carlos Coutinho,
responsável pela execução desta acção, juntamente com
Gabriel Pedro.
Embarcado tudo o necessário, incluindo equipamento de pesca para
cobertura da operação, os dois camaradas remaram durante
várias horas, porque tiveram de furtar-se a uma inesperada
aproximação da lancha da Polícia Marítima. Navegaram em
sentido oposto ao planeado, seguindo percursos não iluminados,
viraram para o meio do rio e daí, com a conveniente escuridão,
mas com uma corrente tão adversa como a aragem gelada com que
não contavam, rumaram finalmente para o objectivo, fintando mais
algumas vezes a lancha da Polícia Marítima antes de atingirem o
Cais da Rocha do Conde de Óbidos onde se encontrava atracado o
navio Cunene.
Aqui, depois das necessárias manobras de reconhecimento do
local, do grau de vigilância existente, das condições de
execução e de retirada, colocaram no casco do navio, meio metro
abaixo da superfície da água, as duas potentes cargas de
fixação magnética, reguladas preciamente para explodirem
simultaneamente às 4,00 horas da madrugada.
A retirada foi outra manobra difícil pois o comando desconhecia
em absoluto o percurso que tinha de fazer para alcançar terra
firme.
Depois de lançarem os remos à água e abandonarem o bote, os
camaradas tiveram de passar pelo emaranhado dos barcos ali
atracados, saltando de um para o outro, até alcançarem a
muralha do cais, no lado oeste. Numa das embarcações, quase
pisaram os tripulantes que dormiam com um cão no convés. O
animal ladrou e um dos tripulantes acordou meio incomodado,
resmungando:«Mais cuidado, ó amigo!» Gabriel Pedro respondeu:
«Descanse bem, amigo, que a noite vai alta. A gente vai fazer o
mesmo, com a missão cumprida.»
Felizmente que tudo correu bem, como foi relatado pelo Carlos
Coutinho, cerca das três da manhã, no encontro que havíamos
marcado para a Rua Barata Salgueiro.
De facto, nessa madrugada, duas potentes explosões quase
simultâneas abalavam meia Lisboa e eram ouvidas com grande
estranheza na Margem Sul, fazendo algumas pessoas sair da cama e
vir à janela.
Tinha começado uma nova forma de luta contra o fascismo e contra
a guerra colonial.
De O Século, de 27-10-1970, respigamos parte da
notícia então publicada sobre o
acontecimento:
«DUAS EXPLOSÕES A BORDO DO NAVIO "CUNENE"»
Nem toda a Lisboa deu por isso, mas houve na verdade milhares de
pessoas que foram acordadas com dois enormes estrondos, que
sacudiram alguns prédios da área de Alcântara. A primeira
explosão deu-se ainda não eram cinco horas; a segunda, poucos
minutos depois, mais forte aquela do que esta. As autoridades
foram alertadas e logo se soube do que se tratava. As explosões
deram-se no costado do navio «Cunene», da «Sociedade Geral»,
atracado na muralha norte da doca de Alcântara.
[...] Naturalmente os poucos homens da tripulação ficaram
alarmados, mas logo
recuperaram o ânimo e procuraram esgotar a água que começou a
entrar, pondo a funcionar as bombas de bordo.
O rombo produzido no costado do navio, pelo lado de fora, não
era demasiado grande, mas tinha o diâmetro bastante para, se
não acudissem a tempo, permitir abundante entrada de água
pondo, assim, o barco em perigo.
[...] Foi ordenado um inquérito rigoroso para se apurarem as
causas do estranho
acontecimento.
O "Cunene" foi construído na Polónia e desloca 16 mil
toneladas.»
* Do IV capítulo do livro de Jaime Serra, As explosões que
abalaram o fascismo, Edições «Avante!», Lisboa,
Março/99.
«O Militante» Nº 240- Maio / Junho - 1999