Crise da Justiça? As soluções existem
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José Neto
Membro do Comité Central do PCP |
1. Muito se tem falado da crise na Justiça. E,
tantas vezes, olhando a árvore e não vendo a floresta - é que
a situação na Justiça é um sintoma, dos mais graves, é
certo, da profunda crise em que vive a sociedade. O sistema
judicial - os Tribunais, como aliás o sistema prisional ou as
polícias, estão em autêntica sobrecarga, chamados a
solucionar (ou simplesmente a gerir) os problemas não resolvidos
a montante. Os resultados são por demais conhecidos: os
Tribunais atulhados de acções por dívidas, ou casos de droga,
as polícias assoberbadas pelo pequeno delito, as prisões
sobrelotadas com delinquentes por toxicodependência.
Não há sistema que resista, se os problemas sociais não forem
atacados nas suas verdadeiras causas - as desigualdades e a
exclusão, a degradação do tecido económico e social, a
desvalorização do trabalho, os desvalores do individualismo e
da competição sem limites, a desumanização, a falta de
confiança e o desespero.
Por mais polícias que se formem, por mais tribunais ou prisões
que se construam, sem a perspectiva e a concretização de reais
e profundas transformações democráticas - económicas, sociais
e políticas - os problemas não terão solução consistente e
duradoura. Ao contrário, os sistemas que supostamente os
resolveriam (veja-se as prisões) acabam, perversamente, por
contribuir para o seu agravamento geral.
2. A chamada crise na área da Justiça
revela-se a dois níveis diferentes, que exigem também respostas
distintas.
Um, que atinge mais directamente o cidadão no seu quotidiano, é
a crise na estrutura do sistema da Justiça, no aparelho
judiciário, no funcionamento dos Tribunais.
A outro nível vive-se, há tempo demais, uma crise da própria
Justiça como valor, que resulta, sobretudo, da acentuação dos
traços de uma justiça de classe, discriminatória e desigual,
que mantém privilégios e impunidades dos detentores do poder
político e económico. E é precisamente a manutenção de
um clima de impunidade da corrupção, da criminalidade
económica e da alta criminalidade em geral, que agrava a crise
da Justiça para níveis que minam os fundamentos do Estado de
direito democrático.
Os casos de corrupção gravíssimos, que têm vindo a ser
revelados, constituem o quadro mais geral em que se inserem, e de
certa forma se explicam, os aspectos e factos mais conjunturais
da crise, como são os da demissão do director da Polícia
Judiciária, a decisão do Conselho Superior da Magistratura de
recusar a nomeação de juizes, a demissão do Conselho
Fiscalizador do SIS, o jantar dos juizes contra o Procurador
Geral, etc..
Estes factos, graves e de contornos difusos, não têm uma
leitura fácil e linear, antes constituem um complexo de razões
contraditórias, cuja explicação, caso a caso, é delicada e
exige um tratamento cauteloso, que não agrave mais a situação
criada e sobretudo não alimente com mais achas a fogueira que
outros atearam e se empenham em alimentar.
Mas, a postura responsável que, reconhecidamente, o Partido tem
em matérias desta natureza, obriga a que a este respeito se diga
algo mais.
É preciso dizer que todos estes factos surgem, e não por mera
coincidência, numa altura em que rebentam escândalos como os da
Universidade Moderna ou em que se avança (ou faz que se avança)
na investigação de processos de criminalidade económica
altamente organizada, com ligações mais que suspeitas às
áreas do poder.
É preciso dizer que as investigações devem prosseguir até às
últimas consequências, mas, mais do que isso, exigir e
confirmar que existem efectivamente as estruturas e os meios,
mas, sobretudo, a vontade política de os pôr seriamente ao
serviço da descoberta da verdade.
É preciso dizer que a guerra entre as magistraturas
tem inegáveis razões corporativas (questões de estatuto,
carreiras, vencimentos, etc.) mas se prende também, seguramente,
com diferentes (e legítimas) concepções do modelo e da
prática do sistema judicial. Em ambos os casos importa conhecer
melhor, debater e aprofundar essas razões, alterar o que houver
que alterar para, sobre elas, firmar orientações e posições
assentes nos princípios que sempre defendemos - eficácia e
segurança jurídicas, garantias, direitos e liberdades
individuais.
Finalmente, é preciso dizer e alertar para que, mais perigoso
que tudo na actual situação, é o envolvimento de magistraturas
e magistrados e, em geral, todos aqueles que intervêm na
Justiça, em estratégias a que não são alheios determinados
interesses inconfessados, que têm em vista a degradação da
imagem da Justiça, o enfraquecimento do poder judicial e o
condicionamento da independência dos Tribunais.
Um Programa de medidas urgentes
3. Há muito tempo que o PCP vem alertando para
a grave situação na área da Justiça, em que, ao longo dos
anos, se mantêm e agravam importantes problemas de fundo.
O diagnóstico é por demais conhecido - o estado da Justiça
define-se, sinteticamente, em três traços fundamentais: o
primeiro, é a desigualdade dos cidadãos no acesso à
informação e ao direito e na utilização das garantias
processuais; o segundo, o crescente volume dos processos
e a morosidade das investigações judiciais e das decisões dos
Tribunais; o terceiro, as disfunções de um sistema prisional
que reproduz o crime e as injustiças, em vez de contribuir
para uma efectiva reinserção social.
Com a consciência de que o actual estado de coisas não deve
continuar e que se impõem medidas imediatas para lhe fazer face,
o PCP apresentou, no final do ano, um Programa de medidas
urgentes para a resolução dos problemas da Justiça em Portugal,
em que se propunham as seguintes direcções de actuação:
- Actualização da divisão judiciária, criando desdobramentos
de círculos e de comarcas nas áreas de maior concentração demográfica
e com maior acumulação de processos em atraso;
- Criação efectiva e rápida das bolsas de juizes para
acudir aos casos de grande acumulação de serviço e atrasos nas
comarcas;
- Combate ao excesso de formalismo processual e
concretização das medidas de simplificação processual,
incluindo a reconsideração de prazos de recurso, sem prejuízo
dos direitos e garantias constitucionais;
- Recurso a formas extrajudiciais de resolução de conflitos,
pelo alargamento da arbitragem e pela implementação dos
Julgados de Paz;
- Rápida modernização e desburocratização do aparelho
judicial e melhoria das condições de trabalho dos
operadores judiciários;
- Melhoria da acessoria técnica e dos meios informáticos e
tecnológicos ao dispor dos juizes, que permitam melhorar a
celeridade da sua actuação e a informação disponível;
- Reforço e optimização dos meios à disposição das
autoridades judiciais e dos órgãos de polícia criminal,
com vista a uma melhor e mais rápida investigação criminal;
- Concretização de medidas legislativas e administrativas
que, com salva-guarda dos direitos constitucionais, reduzam
a possibilidade de manipulação dilatória da investigação e
julgamento da alta criminalidade, criminalidade económica e
crimes de colarinho branco;
- Concretização de alternativas às penas de prisão e ao
excesso de prisão preventiva, dignificação da situação
dos reclusos e medidas de efectiva reinserção eficazes na
prevenção da reincidência no crime e na delinquência;
- Organização de um programa de divulgação sistemática
da função social do Direito e dos Tribunais, começando
pelas escolas e através de outros meios;
- Criação da carreira do Defensor Público, para
dignificar a defesa dos cidadãos com menores recursos e melhorar
o acesso ao Direito;
- Dignificação do estágio dos advogados, com maior
responsabilização pública na sua formação e apoio;
- Criação de um Observatório da Administração da
Justiça, junto da Assembleia da República, com a
participação de elementos vindos dos Tribunais e das
instituições representativas dos profissionais de Justiça, das
universidades, da comunicação social e outros.
Julgados de Paz e Defensor Público
4. Deste programa de medidas, importa salientar
duas que, pelo seu alcance e pela sua profundidade,
constituirão, a serem aprovadas, uma verdadeira mudança
estrutural na situação da Justiça.
A implementação dos Julgados de Paz e a criação da
carreira de Defensor Público são duas peças centrais para a
reforma democrática da Justiça que o PCP defende.
Os Julgados de Paz, previstos na nossa Constituição no
nº 2 do Artº 209º, são Tribunais para o julgamento de
pequenas causas e conflitos (acções de dívida, pequeno furto
ou dano, ofensas corporais, etc.) cuja importância não
justifica serem julgados nos Tribunais judiciais e que mais
rapidamente podem ser resolvidos em instâncias e estruturas
menos formalizadas.
A sua criação obedece a dois objectivos: o primeiro, destinado
a aliviar os Tribunais do excesso de processos que actualmente os
inundam e que poderiam mais facilmente ser resolvidos através de
formas processuais mais simples e directas (tipo o juiz
decide), além de mais baratas. O segundo objectivo a
alcançar é uma justiça de maior proximidade aos cidadãos
(poderiam ser criados a nível de Freguesia), permitindo a estes,
simultaneamente, um acesso mais fácil e uma mais efectiva
participação na administração da Justiça.
Por sua vez, a criação da carreira do Defensor Público,
no âmbito de um Instituto Público de Acesso ao Direito,
destina-se essencialmente a garantir aos cidadãos de menores
recursos uma justiça de maior qualidade.
Face às lacunas e insuficiências do actual sistema de
assistência judiciária, por todos reconhecidas, só o advogado
público está em condições de assegurar a prestação de um
apoio judiciário de qualidade às pessoas mais carenciadas.
Sistema utilizado com êxito noutros países, entre os quais os
EUA, e sem se pôr em causa a advocacia liberal, a advocacia
pública, dirigida sobretudo à prestação de apoio judiciário
em processo penal, significa ainda a possibilidade de uma nova
saída profissional para milhares de jovens licenciados.
Na recente interpelação ao Governo sobre a Justiça, por
iniciativa do PCP, na Assembleia da República, ficou claramente
demonstrado, através de uma análise rigorosa e da
apresentação de propostas concretas, que existem soluções
para os problemas da Justiça, se houver determinação e vontade
política para assumir as medidas e as reformas políticas que a
situação exige.
«O Militante» Nº 240 - Maio / Junho - 1999