O 25 de Abril e a música popular
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Ruben de Carvalho
Membro do Comité Central do PCP |
1. A relevância da música - religiosa e
profana, popular e erudita - na vida política, social e
quotidiana é uma realidade que acompanha as sociedades humanas
desde a sua estruturação.
Na Europa, desde a Idade Média que a Igreja católica travou uma
árdua luta no sentido de disciplinar e controlar (o que quase
sempre incluiu uma larga parcela de repressão) a produção
musical, nomeadamente a popular, na qual se faziam sentir
manifestações culturais mais ligadas a tradições pagãs
combatidas pela doutrina dominante.
Este conflito radicou-se essencialmente em dois aspectos: por um
lado, a música popular tendia a acompanhar e estimular ambientes
de diversão física e corporal (dança, consumos alimentares,
práticas eróticas) contrárias ao processo de disciplina e
domínio de corpos, almas e sobretudo trabalho no quadro de uma
sociedade hierarquizada e de exploração que também a Igreja
buscava instituir; por outro, a música popular constituía a
importante base de propagação do romanceiro, isto é, das
narrativas de experiências, anseios e críticas do povo,
raramente coincidentes com as do clero e nobreza dominantes.
2. Em toda a Europa e até ao século XIX este
conflito se fez sentir em peripécias e graus diversificados,
sendo de sublinhar que o desenvolvimento das cidades contribuiu
contudo para um crescimento das expressões de cultura popular,
menos dependentes dos ciclos naturais do trabalho agrícola e
também do controle ideológico directo do clero.
Tal como sucedeu com o teatro e a literatura, o desenvolvimento
urbano acentuou a divisão entre manifestações culturais
eruditas ligadas às classes dominantes (e especialmente às
cortes reais) e uma produção popular que misturava aspectos
simplificados daquela com reminiscências da cultura dos campos
de onde provinha a maior parte da população citadina e ainda
uma produção específica que se ia desenvolvendo e afirmando.
Esta produção urbana sofreu particular impulso nas grandes
cidades portuárias onde, além dos intercâmbios das várias
manifestações nacionais, se entrecruzavam também
(especialmente a partir do século XVI) a influência das de
outros povos trazidas pelo tráfico marítimo. Neste aspecto,
três questões viriam a desempenhar importância a assinalar.
Primeiro, a diáspora da população escrava negra pela Europa e
continente americano, introduzindo no quotidiano de então uma
tradição musical técnica e funcionalmente diferente, de
importância acrescida junto dos escravos dada a sua própria
situação de total privação de bens.
Segundo, a diáspora judaica que divulgou elementos da sua rica
tradição musical em toda a orla do Mediterrâneo,
posteriormente em toda a Europa e continente americano.
Finalmente, a fixação da colonização branca na América,
nomeadamente do Norte, feita largamente através de uma
população pobre, analfabeta, sem ligação a manifestações
eruditas das suas terras natais, mas tendendo a valorizar as
componentes de cultura popular dos seus países de origem,
nomeadamente a mais simplesmente comunicativa de todas elas, a
música.
3. A partir de meados do século XVIII, no
conjunto dos dois continentes que rodeiam o Atlântico Norte, a
música popular sofreu grande impulso na esteira de duas
realidades: o surgimento e desenvolvimento das revoluções
burguesas e o aparecimento do movimento operário por um lado, a
afirmação dos movimentos nacionais, fosse na Europa com o
desmembramento do império austro-húngaro, fosse no processo de
independência dos EUA e das colónias da América Latina.
Neste último caso (e particularmente na Europa Central -
Hungria, Polónia, Roménia, Boémia, mas também Itália), a
afirmação cultural dos nacionalismos emergentes buscou a
revivificação das tradições musicais populares como fonte de
criação de uma identidade própria; nos primeiros, a música
revelou-se um poderoso factor de propaganda, esclarecimento e
unificação das massas que irrompiam na História:
independência americana, revolta jacobita em Inglaterra,
Revolução Francesa, guerra da Secessão nos EUA, jornadas
revolucionárias de 1848, Comuna de Paris, movimentos grevistas e
luta pela jornada de 8 horas, etc..
4. Com o aparecimento e divulgação da música
gravada (cilindros, disco) e da rádio (primeiras décadas deste
século), a música popular sofreu um grande impulso: ela
precisava daqueles instrumentos de divulgação e os instrumentos
de divulgação, enquanto mercadorias, precisavam dela.
O seu desenvolvimento passou então a associar-se de muito
próximo à evolução técnica dos meios de reprodução e
divulgação, registando maior expansão nos países tecnicamente
mais desenvolvidos e em particular nos EUA, onde a tal facto se
juntavam ainda a poderosa dinâmica introduzida pela música
afro-americana e o facto de o protestantismo, mais aberto à
música colectivamente participada que o catolicismo, ser
religiosamente dominante.
Os Estados Unidos conheceram assim um poderoso desenvolvimento de
música popular ligada ao movimento operário que desempenhou
importante papel em sucessivas épocas: no período de
organização sindical do princípio do século, na luta contra
as consequências sociais do crash bolsista de 1929
(«primeiro revival folk») e a partir do início dos
anos 60, na luta contra a comissão McCarthy, no movimento dos
Direitos Cívicos e posteriormente da luta contra a guerra do
Vietnam («segundo revival folk», que recebeu
igualmente a designação de «protest song»).
Simultaneamente, a vitória da revolução cubana, a
solidariedade com Cuba e a luta contra o domínio yankee davam
igualmente origem na América Latina a um impetuoso
desenvolvimento das manifestações musicais de raiz popular.
A importância mundial da indústria discográfica americana
determinou, um pouco por todo o Mundo e especialmente em todos os
países europeus, um interesse juvenil generalizado pela música
popular, até na medida em que o «segundo revival folk»
americano se associava a uma clara afirmação da juventude e ao
aparecimento de muitos jovens intérpretes.
5. Em Portugal, a evolução musical não
diferiu substancialmente do essencial deste quadro. Note-se, por
exemplo, que o actual hino nacional, A Portuguesa, foi
composto integrado no protesto animado pelos republicanos contra
o Ultimato inglês de 1890 e as estruturas repressivas
intelectuais (Inquisição, Real Mesa Censória) dedicaram
especial atenção às manifestações musicais populares. A
título de exemplo, cite-se que, desde o Marquês de Pombal, as
mulheres foram proibidas de actuar e cantar em palcos de teatro e
ainda neste século era-lhes vedado participar nas
manifestações teatrais populares conhecidas por cegadas.
Além de uma rica produção de música tradicional rural,
gerou-se em Portugal a partir do século passado uma expressão
de música popular urbana, o Fado, que teve efectivas ligações
ao movimento operário anarco-sindicalista no princípio do
século e foi objecto de medidas regulamentadoras, repressivas e
de combate ideológico por parte do salazarismo. Desta acção
fez parte relevante a constituição em 1947, na Emissora
Nacional (fundada em 1935), do Centro de Preparação de Artistas
da Rádio, destinado à formação de artistas nos padrões de
uma estética musical reducionista da opereta e da música
clássica, inócua do ponto de vista formal e de conteúdo
poético e que daria origem ao que João Paulo Guerra
viria a baptizar com inegável humor e adequação de
«nacional-cançonetismo».
Entretanto, no quadro da luta antifascista, um compositor erudito
de eleição, Fernando Lopes-Graça, profundamente
influenciado pelas teorias progressistas sobre a música popular
de compositores eslavos (Kodaly, Smetana, Dvorak e,
sobretudo, Bela Bartok), iniciaria, muito ligado à
reorganização do PCP em 1941, à afirmação do movimento
neorealista e em especial à sua componente poética, um trabalho
simultâneo de recolha da tradição musical rural portuguesa e
de produção de composições corais claramente viradas para a
intervenção no combate ao regime, no sentido do qual dinamizou
mesmo um grupo coral da maior importância, o Coro da Academia
dos Amadores de Música.
6. À introdução, mediante as «Heróicas» de
Lopes-Graça, no quotidiano do combate contra a ditadura e à
influência, também sentida em Portugal, das ondas da «protest
song» vir-se-ia a juntar o ascenso do movimento estudantil a
partir de 1956-57 (Decreto-lei nº 40 900), conduzindo à Crise
Académica de 1962 (Dia do Estudante - 24 de Março).
A existência na Academia de Coimbra de uma expressão musical de
origem e traços constitutivos complexos a ela ligada, o Fado
de Coimbra, evoluíria para expressões onde a importância
dos poemas resultava acrescida relativamente aos exercício de
virtuosismo vocal e a que foi dada a designação de balada que,
na esteira da influência de Lopes-Graça e do trabalho do
etno-musicólogo Michel Giacometti, buscava também
inspiração em melodias de origem rural.
Neste processo adquire importância determinante o nome de José
Afonso, o efectivo iniciador do processo que teria em Adriano
Correia de Oliveira o mais destacado seguidor.
Entretanto, o aparecimento da televisão (1956) determina, pelas
exigências do próprio meio e relacionamento com as congéneres
estrangeiras, uma postura musical naquele meio diferente da
ultraconservadora Emissora Nacional e que se manifesta no
aparecimento de programas de jazz, de música latino-americana e,
particularmente, na realização em 1964 do primeiro Festival da
RTP integrado no Festival da Eurovisão.
O Festival da RTP foi lentamente dando lugar ao aparecimento de
uma nova geração de músicos influenciados pela produção
anglo-americana, seja a pop-rock, seja a de cunho mais
interventor da área «protest song». Tal evolução teria um
ponto de viragem com o aparecimento de um letrista de especial
talento e acutilância, José Carlos Ary dos Santos,
cuja composição Desfolhada ganharia o Festival em
1969.
Nesse mesmo ano inicia-se igualmente na RTP o programa Zip
Zip que, aproveitando as primeiras e breves manifestações
de liberalização do marcelismo, abre as portas às novas
gerações de músicos que entretanto se afirmavam: os então
designados «baladeiros», que, na esteira de Zeca Afonso e
Adriano, recorrendo essencialmente a instrumentos acústicos e em
particular a viola, musicavam poetas de esquerda (Manuel
Alegre, António Gedeão, Sidónio Muralha) e elaboravam
composições próprias (Manuel Freire, Fanhais, José Jorge
Letria, Luís Cília e José Mário Branco no
exílio, etc.), e os mais influenciados pela música
anglo-saxónica e pelas novas correntes latino-americanas e
particularmente brasileiras (bossa-nova), mas que, na esteira de
Ary, modificavam crescentemente o sentido das letras das suas
composições e interpretações (Fernando Tordo, Paulo de
Carvalho, Carlos Mendes, José Luís Tinoco, Nuno Nazareth
Fernandes, Manuel Jorge Veloso, Pedro Osório, etc.).
Nas vésperas do 25 de Abril, particular importância teria ainda
desempenhado a música chilena que, contando de há muito com
criadores de talento (Violeta Parra em particular),
teria na vitória do governo de esquerda da Unidad Popular
um momento único: Victor Jara, Sergio Ortega, Quilapayun,
Inti-Illimani.
7. A importância adquirida pela música na luta
antifascista justifica que tenha sido chamada a desempenhar papel
inteiramente funcional (o de sinal para desencadear
simultaneamente as operações do MFA) no 25 de Abril de 1974. E,
curiosa e significativamente, seriam duas composições
pertencentes cada uma a um daqueles, digamos, ramos que seriam
utilizados: a Grândola de Zeca e Depois do Adeus na
voz de Paulo de Carvalho.
No processo que se seguiu ao derrubamento do fascismo, a música
popular esteve na primeira linha de todas as batalhas políticas,
ideológicas e culturais da Revolução Portuguesa, reflectindo
inclusivamente as clivagens que a acompanharam. Situando-se
global e inequivocamente à esquerda, verificou-se contudo que a
área de cantores mais próxima estética e pessoalmente de Zeca
(José Mário Branco, Sérgio Godinho, Fausto, Vitorino)
se aproximavam de movimentos como a LUAR, PRP/BR, UDP, enquanto
os mais ligados a Ary, à produção mais cosmopolita e às
baladas popularizadas pelo Zip Zip se aproximavam do
PCP.
Para além dos posicionamentos políticos diversos reflectidos
nas letras, do ponto de vista estético verificavam-se igualmente
diferenças - os primeiros procurando inspiração nas
tradições populares (Grupo de Acção Cultural) e na
influência latino-americana e os segundos no veio da música
popular europeia (francesa em especial) e anglo-americana,
entreabrindo simultaneamente as portas ao Fado por via
particularmente do trabalho no teatro de revista. A colaboração
entre Ary e Carlos do Carmo viria, aliás, a produzir um
trabalho de referência: o álbum "Um Homem na Cidade".
Evidentemente que esta sistematização não significa a
existência de compartimentos formal e politicamente estanques,
como o demonstram casos como os da Brigada Victor Jara,
dos Trovante e, muito em particular, a generosa e
inesquecível figura de Adriano Correia de Oliveira, até ao fim
dos seus dias um constante tecedor de contactos, amizades,
cooperações entre todas as sensibilidades.
Entretanto, estas clivagens concretizaram-se em certas
«especializações» ao nível da indústria discográfica
(Sassetti, Guilda da Música, Toma Lá Disco) e, mais relevante,
ao nível de associações (Era Nova e Cantarabril). Situação
que, se foi útil no sentido de uma maior estruturação e
criação de condições de trabalho para todos os músicos e
compositores, comportou aspectos negativos: a verdade é que, do
ponto de vista político e face ao processo de democratização
do País, era muito mais o que aproximava os membros de ambas as
cooperativas do que o que os separava e a sua acção tendia a
separar e não a aproximar. Ao mesmo tempo, esta separação
tendia a introduzir elementos artificiais na polémica sobre
opções estéticas, a ultrapassar o campo do frutificante
diálogo cultural e a ser negativamente influenciada pelos
diferendos políticos.
8. Vinte e cinco anos decorridos sobre o 25 de
Abril, a música popular portuguesa continua a apresentar, com
naturais traços diferentes, uma assinalável qualidade, num
quadro que, inevitavelmente, se alterou por causas diversas e em
diversos sentidos.
Com a evolução política, a funcionalidade de uma música mais
directamente empenhada atenuou-se, mas, em contrapartida, a
evolução formal comportou produções de qualidade excepcional
que influenciariam novos aparecimentos de alto nível (Rui
Veloso, Pedro Abrunhosa, alguns dos grupos portugueses de
música tradicional e de rock).
Por outro lado, constituindo embora o retrocesso de um esforço
cooperativo e o sacrifício de generosas boas vontades, o
desaparecimento da Cantarabril e da Era Nova corresponderam a
maiores exigências (e possibilidades do mercado) e facilitaram
uma reaproximação geral em padrões essencialmente culturais,
sem prejuízo das naturais diferenças de posicionamento e
opinião.
Por outro lado ainda, o meio reflectiu de previsível forma
negativa o desaparecimento das duas figuras carismáticas: Zeca e
Ary.
Finalmente, sublinhe-se que, nesta evolução, papel determinante
foi e continua a ser desempenhado pela Festa do Avante!.
Mantendo-se, ao longo de mais de duas décadas e, pesem as
vicissitudes por que tem passado, como a mais importante
iniciativa cultural de massas regularmente levada a cabo no
País, a Festa desempenhou desde sempre um importante papel
aglutinador ao recusar, mesmo nos períodos mais agudos de
clivagem política, seleccionar o seu programa cultural por esses
critérios, antes lhes contrapondo uma busca constante de
qualidade, tanto mais legítima quanto, no essencial, atrás das
clivagens se perfilavam vastas áreas de entendimento e
solidariedade.
Abrindo os seus palcos a músicos da Cantarabril, da Era Nova ou
nelas não enquadrados, afirmando a sua abertura estética a
géneros vítimas de processos complexos como o Fado e às novas
tendências como foi nomeadamente o caso do rock português, dos
grupos de fusão, das experiências na esteira da world music
como Madredeus, etc., a Festa tem constituído um
elemento essencial de familiarização mútua de artistas e
públicos, de oportunidade para novos criadores e tendências e,
sobretudo, uma manifestação da apaixonante capacidade de
entendimento, de diálogo, de criação de beleza, liberdade e
solidariedade que reside na Música, que reside em toda a Arte
criada pelo Homem.
«O Militante» Nº 240 - Maio / Junho - 1999