O associativismo e as lutas das praças da Armada
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António Andrez
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Duas importantes iniciativas a que assisti
ficaram-me como marcas na compreensão do que caraterizou a luta
dos marinheiros ao longo dos anos.
Refiro-me à reunião em que se iniciou o processo de formação
da CDAP (Comissão Dinamizadora do Associativismo das
Praças), em Setembro de 1974 (1), e à homenagem aos marinheiros
tarrafalistas que assinalou, no ano passado, no Fórum Romeu
Correia (Almada), a Revolta dos Marinheiros de 1936.
Antecedentes na actividade das praças da Armada
Bem antes do 25 de Abril, episódios da luta dos
marinheiros ao longo dos anos eram contados em cobertas e
casernas, sempre acarinhados como motivos de orgulho e como
fontes de inspiração para muitas lutas de gerações de praças
da Armada.
Ao ouvirmos Manuel Guedes e Faria Borda, em
Setembro de 1974, na Escola Naval, e ao falarmos com Pires
Jorge anos depois, bem como ao escutarmos o que o camarada Álvaro
Cunhal, em Almada, em 1998, nos contava sobre a
Organização Revolucionária da Armada (ORA) e sobre O
Marinheiro Vermelho, órgão das células do Partido na
Marinha, compreendemos melhor como as experiências vividas
vão passando de gerações para gerações e constituem uma
riqueza colectiva de que todos vamos aproveitando.
Lembro-me, em 1968, na Escola de Alunos Marinheiros, em Vila
Franca de Xira, do levantamento de rancho e recusa às aulas que
ficou conhecido pelo dia do grumete, porque
marinheiros e cabos tiraram as suas divisas. Explicava-me um
cabo, a propósito da luta e da necessidade de levantar cabeça,
que Salazar afirmava o propósito de não nos serem
distribuídas, na altura, duas mantas (só tínhamos uma) porque
era necessário castigar esses comunistas, que cada
marinheiro dividido ao meio dava dois comunistas.
Convém, também, não esquecer a repercussão na Marinha das
lutas dos trabalhadores e da influência e intervenção do
Partido na margem Sul. Quantos de nós soubemos o que era um
comício da Oposição nos nossos passeios na Cova da Piedade?
Quantos de nós vimos a primeira inscrição de parede a caminho
do portão da Romeira? E quantos foram os marinheiros que
sentiram a influência da luta de gerações de comunistas do
Arsenal?
Diversas formas de luta, ou praxes, ou o que se lhe
quiser chamar, continuaram sempre a ter lugar, mesmo no período
da ditadura fascista, e ficaram consagradas na sua
forma e nos seus efeitos: levantamentos de rancho, recusas de
saídas e outras. E mantiveram-se porque foram exercidas.
Filhos da Escola é como nos tratávamos e
continuamos a tratar sempre, mesmo que a Escola já tenha passado
há muitos anos.
A Marinha de Guerra foi uma das escolas de luta contra o
fascismo. E não ensinou só os marinheiros. Quantos
sargentos e oficiais não foram também perseguidos pela PIDE ao
longo dos anos?
O associativismo das praças da Armada
O associativismo das praças da Armada começa a dar os primeiros
passos logo a seguir ao 1º de Maio de 1974.
O seu início, que tem o apoio dos oficiais do MFA (Movimento das
Forças Armadas), surge com a criação das Comissões de
Bem-Estar (CBE), motivadas por questões concretas que se
colocavam nas várias unidades e constituídas por praças que
eram eleitas.
Logo depois procurou-se formar Comissões Coordenadoras, tendo
como objectivo questões materiais da classe, mas não resultaram
totalmente. A democratização da Armada exigia juntar, às
reivindicações materiais, o desenvolvimento político das
praças assente no reforço do associativismo. A CDAP dá um
grande salto após o 28 de Setembro (que obriga Spínola a
demitir-se de Presidente da República, sendo substituído pelo
general Costa Gomes). Alarga-se na consciência dos marinheiros a
ideia de que era fundamental o seu associativismo para melhor
garantir o apoio organizado das praças ao MFA. Aprendemos que
não era suficiente o trabalho e a intervenção das CBE em cada
unidade. Aliás, nessa altura, já os oficiais e os sargentos
tinham avançado para a constituição das suas estruturas
associativas de classe, a Associação dos Oficiais da Armada
(ADOA) e a Comissão Representativa de Sargentos da Armada
(CRSA).
O grande crescimento do associativismo traduziu-se em reuniões
semanais de camaradas (2) representantes das praças de diversas
unidades do Continente e grupos de trabalho para o tratamento de
vários aspectos materiais: alimentação, alojamento,
transportes, diuturnidades, fardamentos e outros. Depois
alargou-se a CDAP aos camaradas que estavam em Angola.
Realizaram-se diversos espectáculos com milhares de praças no
Auditório da Escola Naval e a festa do Natal de 1974 no Coliseu
dos Recreios.
Realizou-se o primeiro grande plenário de praças da Armada,
onde, no final da intervenção, sobre O associativismo da
Armada e seu desenvolvimento se declarou: conseguida
a sua realização, podemos afirmar que conseguimos cumprir a
nossa principal tarefa destes primeiros 12 meses de
liberdade.
Este plenário, que encerrou com o Auditório da Escola Naval
cheio de delegados, que representavam mais de 80% das praças da
Armada foi, sem dúvida, um dos momentos mais altos do nosso
movimento.
As praças da Armada, com a demonstração da sua capacidade,
conquistaram ainda mais respeito. A CDAP foi institucionalizada e
concretizou-se a integração das praças da Armada no MFA.
Passámos a estar representados nas estruturas do MFA, quer da
Armada, quer dos três ramos.
Importa realçar o papel da CDAP em relação à unidade,
disciplina e eficiência das Forças Armadas.
Como se pode ver na publicação sobre o primeiro grande
plenário e como sabem todos aqueles que acompanharam mais de
perto a nossa intervenção, esta foi uma das grandes batalhas
que tivemos.
Os oficiais mais reaccionários e os esquerdistas em
geral sabiam que a democratização das Forças Armadas era uma
questão decisiva para o avanço do processo. Por isso,
procuraram atrair à luta contra a democratização sectores de
oficiais e sargentos.
Conseguimos, com uma intervenção muito clara, com a nossa
presença em cima dos acontecimentos nas unidades, abortar muitas
coisas que aqueles senhores puseram em marcha. Foi uma das
batalhas que a CDAP venceu. Conseguimo-lo, em conjunto com
oficiais e sargentos progressistas, até ao fim da nossa
intervenção (26 de Novembro de 1975).
Alguns ensinamentos desta experiência vivida
O maior ensinamento que se pode tirar da luta que se travou entre
as praças da Armada é que valeu a pena lutar. Quem lutou e viu
os passos que se podem conquistar com a luta não pode deixar
de considerar que a luta é o único caminho que os trabalhadores
e os povos, em qualquer actividade em que estejam, têm na sua
frente para se libertarem da opressão e da exploração, das
perseguições e injustiças e também da guerra.
É significativo que neste período em que se comemoram os 25
anos do 25 de Abril, o movimento sindical unitário e o nosso
Partido estejam em luta contra a tentativa do Governo PS para
impor um pacote laboral que não respeita os trabalhadores, que
lhes tira direitos conquistados, que quer ainda precarizar mais o
trabalho e que procura oferecer ao grande capital objectivos
estratégicos pelos quais tem lutado desde que perdeu o poder
absoluto com a revolução de Abril.
Na proclamação lida no primeiro plenário de praças da Armada
diz-se: Filhos dos trabalhadores, cabe às praças da
Armada a honrosa tarefa de serem dignos da classe a que
pertencem. Muitas dessas praças, que desenvolveram uma
intensa acção pela democratização das Forças Armadas,
continuam hoje em muitas e diversas tarefas a lutar pelo bem do
povo, pelas reivindicações dos trabalhadores, pelos valores de
Abril que tão espezinhados têm sido pela política de direita
que, desde 1976, foi imposta no nosso País e de que são
responsáveis o PS, o PSD e o CDS/PP.
Muitas dessas praças estão, naturalmente, nas fileiras do
Partido Comunista Português, continuando, em muito diversas
organizações, a luta que travaram quando eram jovens.
Valeu e vale sempre a pena lutar!
(1) No primeiro plenário de praças da Armada, realizado em 1975
e cuja descrição foi publicada nesse ano, foi referida esta
primeira reunião que levou à formação da Comissão
Dinamizadora do Associativismo de Praças.
(2) "Camaradas" é a forma como os militares se tratam
uns aos outros.
«O Militante» Nº 240 - Maio / Junho - 1999