A revolução de Abril e o regime democrático

Domingos Abrantes


O povo português e muito particularmente os trabalhadores - as maiores vítimas do regime fascista, mas igualmente a força principal da resistência e cuja intervenção na Revolução foi determinante para a sua defesa e para que o seu rumo tivesse tomado um carácter emancipador e profundamente democrático - comemora este ano o 25º aniversário do 25 de Abril, acontecimento que ocorre num momento muito particular da vida política nacional.
Como se salienta no Apelo do Comité Central sobre as comemorações, “no actual quadro político da vida nacional, quando avultam limitações de importantes direitos sociais, económicos e políticos, a acentuação de desigualdades, a liquidação de importantes conquistas sociais e económicas, aumenta o domínio económico e político do grande capital nacional e internacional, se perfilam ameaças mesmo sobre a independência e a soberania do País e quando se multiplicam operações visando branquear a história e a natureza do fascismo salazarista, as comemorações do 25º aniversário do 25 de Abril revestem-se de crescente importância”.
A evolução da situação mais confirma a validade e o significado do Apelo do Comité Central.
Desenvolve-se e, em muitos aspectos, intensifica-se a ofensiva contra os valores de Abril, justificando e consagrando o processo contra-revolucionário. Estruturas fundamentais do Estado e com importantes responsabilidades na garantia dos direitos e liberdades dos cidadãos, são atravessadas por uma profunda crise e por um generalizado descrédito, confirmando quanto é profundo o desfiguramento do regime democrático.
Reveste-se de profundo significado o facto de, no ano em que se comemora o 25 de Abril, forças armadas portuguesas, por decisão do Governo socialista e do Presidente, participarem na agressão a um Estado soberano com quem Portugal mantém relações normais, e isto quando a Constituição de Abril consagra como objectivo para Portugal lutar pela dissolução dos blocos político-militares e desenvolver uma política de paz e de cooperação com todos os povos do mundo.
E é igualmente significativo o facto de o destino das Forças Armadas ser tutelado por um antigo ministro do fascismo, regime deposto pelas Forças Armadas.
A importância das comemorações do 25º aniversário é acrescida, porque, neste quadro, a afirmação dos valores de Abril deve projectar-se na luta pela sua defesa e concretização, mas igualmente porque se impõe desenvolver uma acção de esclarecimento que faça frente à intensa e despudorada ofensiva de carácter ideológico, no sentido de legitimar no campo das ideias o processo contra-revolucionário, procurando apagar da memória das massas populares e de largos sectores democráticos a verdadeira natureza do regime fascista e do regime democrático configurado pela revolução, regime este que para além da instauração das liberdades políticas, abriu caminho à construção de um Portugal progressista e de uma democracia avançada, marcada pelas amplas transformações sócio-económicas, como a Reforma Agrária, as Nacionalizações, um variado conjunto de medidas de carácter social, a participação activa dos trabalhadores e das massas populares na vida económica, social e política.


1. A natureza do regime fascista

É uma verdade elementar dizer-se que a revolução de Abril, ao pôr fim à ditadura fascista, restaurou as liberdades democráticas e que, desse modo, libertou o País de uma ditadura terrorista que, apoiando-se numa legião de aparelhos policiais e para-policiais, espezinhou todas as liberdades, prendeu, torturou e assassinou milhares de portugueses. A luta pela liberdade foi um objectivo fundamental pelo qual lutaram abnegadamente gerações sucessivas de portugueses, com particular destaque para os comunistas.
O dia 25 de Abril passou, desde 1974 e muito justamente, a figurar no nosso calendário como o Dia da Liberdade. Mas a revolução de Abril não se limitou à restauração das liberdades. Ao pôr fim ao poder dos grandes grupos monopolistas e dos agrários - ao fim e ao cabo os principais mandantes e beneficiários da ditadura fascista -, o jovem regime democrático tomou as medidas necessárias e indispensáveis para assegurar o desenvolvimento do País ao serviço do povo, questão central na elucidação do processo revolucionário que é fundamental não deixar esquecer.
Partindo da análise rigorosa da base económica da ditadura, das forças de classe em presença, da natureza do Estado fascista e da sua política concreta, o PCP definiu o regime fascista português como a ditadura terrorista dos monopólios associados ao imperialismo estrangeiro e dos latifundiários. Na realidade, a ditadura fascista tinha como função e objectivo de classe inquestionável proteger e defender os interesse dos donos reais do País, um punhado de exploradores de má memória, os Melos, os Champalimauds, os Espíritos Santos, etc., símbolos da opressão e exploração dos trabalhadores e do povo, opressão e exploração levadas a cabo com a supressão das liberdades e do recurso a um feroz aparelho repressivo fascista que em muitos casos se confundia com o aparelho dos monopólios.
Nas principais unidades fabris dos monopólios, para além da legião de bufos, funcionavam serviços da PIDE e nas instalações da CUF, no Barreiro, esteve instalada, durante 30 anos uma força da GNR, destinada a reprimir a luta dos trabalhadores e da população local.


2. Liquidação do poder dos monopólios - condição de defesa da revolução

O facto de os principais sustentáculos do fascismo terem, hoje, já recuperado o essencial do seu poder económico e político, é em si mesmo esclarecedor quanto aos retrocessos operados no regime democrático saído da revolução.
Quando hoje ouvimos ao PS e à direita, como justificativo das privatizações, a absolvição dos grandes monopólios das suas responsabilidades na ditadura, a defesa da eficácia do capital privado e a condenação das nacionalizações e da Reforma Agrária, responsabilizando-as pelos graves problemas da nossa economia, é de elementar dever recordar que a eficácia com que essas grandes famílias acumularam fortunas escandalosas não residia nas virtualidades do capital privado, mas na ausência de liberdades políticas e sindicais, na repressão e no terror, armas usadas pelos monopólios para submeter os trabalhadores e o povo à sua exploração.
Fortunas que se acumularam também com o recurso eficaz a um aparelho de Estado que se confundia com o aparelho dos monopólios para se proceder à redistribuição da mais-valia a seu favor por intermédio da política fiscal, dos benefícios de toda a ordem e da utilização dos dinheiros públicos, com destaque para os dinheiros da Segurança Social (Previdência), dinheiros que, postos à disposição dos grupos monopolistas a baixíssimos juros, foram utilizados para a construção de importantes unidades fabris.
É pura mistificação e completamente falso atribuir às nacionalizações e à Reforma Agrária as dificuldades da nossa economia e responsabilidade pelo nosso atraso.
As causas fundamentais desse atraso devem ser procuradas na política fascista, no domínio imperialista, no Estado fascista ao serviço da política de concentração e centralização do capital, de tal modo que os destinos do fascismo e dos grandes grupos económicos se tornaram indissociáveis. A defesa da revolução e a construção de um verdadeiro Estado democrático tornaram-se, nestas condições, inseparáveis da liquidação do poder dos grandes grupos monopolistas, ou seja, da tomada de medidas que privassem as forças que sustentaram o fascismo das alavancas que durante quase meio século foram utilizadas para suprimir as liberdades, explorar e oprimir os trabalhadores e o povo.
O rumo emancipador tomado pela revolução de Abril foi o resultado concreto da larga, activa e criativa participação das massas populares, com particular destaque para os trabalhadores, cuja intervenção autónoma e com reivindicações próprias no 1º de Maio de 74 se tornou decisivo para a defesa da revolução e o reconhecimento de importantes direitos e liberdades.
A intervenção criativa das massas populares e dos trabalhadores, nas diferentes áreas da vida nacional, não só se tornou determinante para fazer frente à contra-ofensiva reaccionária, para assegurar a regular actividade económica e dar satisfação às mais sentidas aspirações do povo, como se tornou expressão exaltante de democracia participativa, realidade que se foi esfumando com os sucessivos ataques aos valores de Abril.


3. A revolução de Abril e o caminho para uma democracia avançada

Com a nacionalização dos sectores básicos da economia e a criação de um forte sector público, Portugal passou a dispor de um importante instrumento para garantir o desenvolvimento e o progresso do País, o bem estar dos trabalhadores e do povo e não, como até então, ao serviço de um punhado de famílias parasitárias.
A ideia de serviços públicos com a função de servir os utentes e não os clientes, submetidos à lógica do lucro máximo, os aumentos de salários e de pensões, a fixação do salário mínimo nacional, a inversão operada na repartição da riqueza a favor do trabalho, o aumento do número de dias de férias, o alargamento significativo do número de pessoas beneficiárias da Segurança Social, foram medidas, em si mesmo, definidoras a favor de quem se fazia a revolução e da natureza democrática do regime que a liquidação do poder dos monopólios permitia configurar.
Com a Reforma Agrária e a liquidação do latifúndio, alteraram-se profundamente as condições de vida dos trabalhadores e das populações do Ribatejo e do Alentejo.
A par das liberdades políticas, a revolução consagrou amplos direitos para os trabalhadores, como a liberdade de organização sindical, o direito de greve, e a possibilidade de participação activa na vida das empresas e na definição e controlo das orientações e decisões económicas.
A revolução de Abril foi, também, uma profunda revolução cultural, pondo-se fim a décadas de um regime obscurantista e retrógrado. Com a instauração das liberdades, com a intervenção dos intelectuais e das massas populares na construção da nova vida, abriu-se caminho ao desenvolvimento cultural, à afirmação de valores humanistas, à alteração das mentalidades.
A situação da mulher alterou-se radicalmente com a revolução de Abril. Vimo-las participarem activamente em todo este processo, conquistando significativos direitos sociais, pondo fim à sua condição de cidadãs de segunda, consagrando-se o princípio jurídico da igualdade com os homens.
O processo de liquidação das grandes conquistas sócio-económicas, longa e persistentemente prosseguida pelo Governo do PS e da direita, a restauração do poder dos grandes grupos económicos e do latifúndio, a crescente fusão entre o poder político e económico, traduz-se no acentuado desfiguramento do regime democrático, com a limitação e liquidação de importantes direitos dos trabalhadores, uma longa ofensiva contra a legislação laboral restauracionista do poder discricionário do patronato e facilitador da desregulamentação das relações laborais e intensificação da exploração, uma repartição da riqueza nacional profundamente injusta, a privatização de serviços de alto carácter social, transpondo os utentes em clientes.
Esta política é profundamente antidemocrática e contrária dos valores e dos princípios do 25 de Abril. O desenvolvimento político, económico, social e cultural de Portugal exige uma política que responda às aspirações mais sentidas do povo e dos trabalhadores. Exige que alavancas económicas fundamentais estejam ao serviço do País e não de um punhado de famílias que aumentam vertiginosamente colossais fortunas. Exige uma política e uma prática democrática susceptíveis de mobilizar as capacidades e as energias dos trabalhadores, para vencer os atrasos do País.

Partindo da natureza do regime fascista e da arrumação de forças, o nosso Partido tinha defendido (Programa aprovado no VI Congresso em 1965) como objectivos fundamentais da revolução antifascista: a instauração de um regime democrático, a liquidação do poder dos monopólios e a promoção do desenvolvimento económico, a reforma agrária, a elevação do nível de vida dos trabalhadores e do povo em geral, a democratização da cultura, a libertação de Portugal do domínio imperialista, o reconhecimento do direito dos povos das colónias à imediata independência e uma política de paz e amizade com todos os povos.
A revolução de Abril encerra um ensinamento e uma experiência de grande actualidade que é a demonstração de que a verdadeira democratização da sociedade portuguesa é inseparável de um regime que assegure a democracia política, económica, social e cultural.
Os valores libertadores e emancipadores da revolução de Abril, as suas conquistas sócio-económicas penetraram de tal forma fundo na realidade nacional, que o largo processo contra-revolucionário que praticamente prossegue desde 1976, não conseguiu apagá-los, apesar dos retrocessos verificados.
A melhor forma de comemorar Abril é intensificar a luta pela concretização dos seus valores.
«O Militante» Nº 240 - Maio / Junho - 1999