Cristão-Novos Judeus
e os Novos Argunautas*

Dois acontecimentos interligados marcaram profundamente a fisionomia do Portugal contemporâneo. Em primeiro lugar, a queda de uma ditadura de quase meio século, fortemente centralizada, abençoada pela Igreja, tolerada pelos estados europeus, assente em estruturas corporativas e servida por terríveis órgãos repressivos. Essa ditadura foi seriamente abalada no final da Segunda Guerra Mundial e cairia com estrondo em 25 de Abril de 1974. A queda sacudiu a Europa e teve repercussões um pouco por toda a parte popularizando a imagem de tanques onde se amontoavam cachos humanos em festa ou a imagem dos cravos florindo no cano das metralhadoras.
Durante alguns anos, a economia portuguesa ressentiu-se com a morte do sistema colonial e internamente com o colapso do sistema corporativo. Por outro lado, surgia um poder reivindicativo acrescido das massas em movimento enquanto se assistia, na febre revolucionária, a larga sabotagem da economia.
A cidadania era uma descoberta embriagadora. Depois de quase cinquenta anos de ditadura, era possível substituir e escolher os dirigentes políticos. Criavam-se novos órgãos, a classe política aumentava de extensão e abrangia, embora de modo desigual, todas as camadas sociais organizadas.
Assiste-se hoje a um certo regredir da participação cívica, sente-se algum cansaço e desilusão. Ora, quando os cidadãos se retiram aparentemente da política, cuidado, porque regressam no pior momento, pelos piores caminhos e com os piores resultados.
Passaram vinte e quatro anos. As transformações, entretanto operadas, para lá das múltiplas insatisfações e carências, são reais e profundas. Só a luta social e política e a convivência diária com as mudanças não permitem consciencializar a radicalidade das transformações.

Um segundo acontecimento, em estreita ligação com o primeiro, marcou a face do Portugal contemporâneo: a queda do império colonial português que tinha o seu coração em África. O Império, que não era apenas fonte de matérias-primas e de homens baratos, quando não gratuitos, permitia o escoamento da mão-de-obra europeia excedentária e pagar serviços aos serventuários do fascismo português.
A queda desse Império forçou o regresso de mais de meio milhão de portugueses, os chamados retornados. A maior parte era originária do interior do país e regressava de olhos mais abertos pelo contacto com outros mundos a que se ligaram pela iniciativa, o trabalho, o leito e o sangue. O seu regresso atormentado insuflou vida nova, acelerou o desenvolvimento no interior do país.

A Terra é uma só

Portugal está hoje, como no passado, sujeito aos vendavais do mundo em que se insere, um mundo de países ricos e de países pobres, com largas zonas de abundância e muita fome de justiça. Aumenta o contraste entre a riqueza e a pobreza, multiplicam-se as guerras e a desordem e os problemas demográficos e ecológicos atingem um dramatismo sem precedentes.
No meio das suas contradições internas, o Estado nacional constitui ainda um instrumento fundamental, a nave em que vamos embarcados no meio da grave crise civilizacional que atravessamos. Abandonar o barco do Estado-Nação é arriscar o naufrágio.
Com cinco séculos, voltada para fora das fronteiras e hoje encerrada na casa continental e insular, integrando-se progressivamente num espaço económico e político que reune uma boa parte da Europa, a consciência da identidade nacional está hoje sujeita a múltiplas ameaças. Recordo os apóstolos militantes da morte do Estado-Nação. O rio de emigrantes, menos largo, prossegue o seu curso enquanto engrossam as vagas de imigrantes. A velha língua, sustentáculo da consciência portuguesa, embora partilhada por outros povos, vive sujeita a agressões diárias e à concorrência das línguas dominantes. No ensino, a história europeia abafa e fragmenta as pequenas partículas da história nacional. Os futuros quadros, recortados nas áreas da economia e das ciências tecnológicas, desconhecem a filosofia (a arte de pensar), a história, as literaturas. Sem cultura humanista, arriscamo-nos perigosamente a que futuros universitários analfabetos, arrolados em pomposas estatísticas, se arroguem a decidir e decidam do nosso destino.
Na estrada para o Terceiro Milénio, Portugal não sarou as feridas da morte de um projecto de cinco séculos e tem dificuldades em encontrar uma causa, uma fé. A proliferação de seitas é reveladora do impasse. O ideal europeu, popular entre as camadas jovens, está longe de despertar o entusiasmo colectivo, principalmente face à destruição das estruturas produtivas agrícolas e também industriais.
Mas não haverá mesmo um ideal nas novas gerações nascidas na liberdade e no progresso tecnológico que conquistamos? Não se revêem ou desconfiam de muitas das ideias pelas quais lutaram e sofreram os mais incomodados das velhas gerações. Mas a valorização do presente, a exaltação do prazer, que não exclui antes favorece o eclodir de um ser humano mais harmonioso, não afogam a fome de justiça, a abertura ao mundo, a resposta fraterna e generosa aos desafios do presente.

Mas que caminhos seguir? Recusar a Europa (a Europa de Luís de Camões começava na Moscóvia...). É a nossa matriz milenar, matriz que tem na soberba e fraterna jangada de pedra, o nosso berço e nos países banhados pelo Mediterrâneo e o Mar do Norte os velhos parceiros, concorrentes e aliados. Este caminho está a ser trilhado com todos os seus riscos. Temo que se perca o poder de decidir em questões estratégicas, defendo que as mudanças estruturais têm de ser aprovadas e seladas por genuínos actos eleitorais.
Mas o caminho a seguir não pode ser uno mas múltiplo. Vivem nos vários continentes povos que durante séculos partilharam connosco o seu destino, com os quais misturamos o sangue, para os quais se volta o nosso modo de ser antigo de partir e de ficar.
Mas a terra é uma só. Herdámo-la e temos de transmitir essa herança, inteira e renovada, às gerações futuras. Boa parte das guerras nasceram e nascem da partilha. A terra é a pátria de todos os homens e os problemas particulares que nos afectam têm de ser encarados numa perspectiva global e terrena.
* Extracto do livro Cristão-Novos Judeus e os Novos Argonautas, António Borges Coelho, Edições Caminho, SA, Lisboa, 1998.

«O Militante» Nº 238 - Janeiro / Fevereiro - 1999