Memória e actualidade da obra de Ferreira de Castro
Urbano Tavares Rodrigues
Escritor
José Maria Ferreira de Castro nasceu em Ossela, Oliveira de Azeméis, no ano de 1898 e faleceu em 1974, no Porto. Emigrou para o Brasil, em 1911, e oito anos depois radicou-se em Lisboa.
Foi um notável escritor, com uma extensa obra (A Selva, publicada em 1930, é um dos romances portugueses mais traduzidos) premiada em Portugal e em França.
Alguns dos seus livros podem inserir-se na tendência literária do neo-realismo.
Pela sua posição clara e coerente em defesa da democracia e pelo prestígio que possuía, foi uma das individualidades auscultadas pelo PCP, em 1958, para ser candidato à Presidência da República.
A Associação de Reencontro dos Emigrantes comemorou o seu centenário em Lisboa no dia 26 de Novembro último, lembrando que, entre os seus livros, um se intitula Emigrantes.
Foi convidado o escritor e nosso camarada Urbano Tavares Rodrigues para falar sobre o omenageado.
Publicamos aqui a parte final dessa intervenção.
Ferreira de Castro lutou sempre pela democracia integral, pela liberdade e pela justiça. Vinha do tempo em que a Federação Anarquista Ibérica teve um grande peso na Península. Estava rodeado de amigos e companheiros ligados ao anarquismo. Nunca foi militante de nenhum partido, mas a sua visão do mundo era radicalmente a da esquerda socialista.
E em A Lã e a Neve já se desenha aquilo a que se pode chamar a acção através da literatura. Ou seja, o desejo de que esta, sendo a expressão e a tentativa de reproduzir uma realidade social, cultural, afectiva, se torne também arma de combate. Quer dizer, dar consciência ao povo da sua realidade, da sua própria condição, mobilizando-o para a luta.
De uma forma discreta, podemos dizer que em A Lã e a Neve se sente isso, enquanto que em A Selva havia ainda aspectos românticos: o herói de A Selva era um monárquico, tinha saído de Portugal por haver participado na revolta de Monsanto. É um jovem que, pouco a pouco, transforma a sua visão do mundo, ao sofrer o embate da crueldade da vida, daquela vida que o espera no meio da selva. A Lã e a Neve, no aspecto ideológico, significa um progresso. No aspecto estético é também uma obra importante.Mais tarde Ferreira de Castro há-de escrever um livro muito rico, psicologicamente, um dos melhores de toda a sua obra, A Curva da Estrada.
A Curva da Estrada
A acção passa-se em Espanha e Ferreira de Castro conheceu bem o país vizinho e viveu profundamente todos os problemas da República Espanhola e da Guerra Civil. Até nós, os de gerações posteriores, vivemos, na infância ou na adolescência, essa grande esperança que sacudiu a Península Ibérica quando o povo espanhol lutou contra o fascismo e, ao mesmo tempo, ia realizando uma revolução e dividindo os latifúndios em Aragão, na Catalunha.
Ferreira de Castro conheceu os homens da República e apresentou-nos um socialista em decomposição que, todavia, no final opta pela dignidade e pela continuação da luta.
É um romance ainda hoje extremamente actual: um revolucionário que teve uma juventude muito combativa, que estava muito perto dos homens que o elegeram e tinha amigos de grande rectidão. Era advogado e pouco a pouco foi sendo afectado, contaminado pela vida da burguesia: o conforto, o prestígio.
Tem dois filhos: Henrique, que ele educou como socialista e que está perto dele, por vezes quase lhe exige que seja coerente, que seja fiel ao seu passado; e o outro, Paco, que, pelo contrário, se aproxima da gente “fina” e deseja ver o pai passar para o Partido Nacionalista. É um admirador do rei e de Primo de Rivera, o ideólogo do fascismo espanhol.
Soriano sofre a influência dessa pressão familiar e à volta dele a gente rica, os conservadores, multiplicam-se em movimentos de sedução, porque de facto ele é uma pessoa que traria à Direita o prestígio do seu passado impoluto e, ao mesmo tempo, é um deputado brilhante.O romance tem pouca acção. É fundamentalmente expressão da vida interior. E quando parece que Soriano vai passar-se para o outro lado, que vai escolher a riqueza, embora saiba que os melhores amigos o hão-de julgar severamente, decide não trair e continua fiel aos seus ideais. Nas últimas páginas do livro o seu amigo Pepe Martinez felicita-o fraternalmente quase como herói. Traz-lhe a consolação de haver permanecido limpo.
O título A Curva da Estrada representa simbolicamente o momento em que Soriano está muito perto da abdicação. Ora, nós assistimos todos os dias em Portugal, muitos anos após a Revolução de Abril, a processos de decomposição de homens como este. Quer dizer, situados na esfera da esquerda, quer no Partido Socialista, quer mesmo no Partido Comunista, os que (independentemente de posições críticas e legítimas discussões) trocaram os seus ideais, abandonaram as fileiras para irem pelo caminho do triunfo material, de certas “lantejoulas” afinal bem pobres.
É, de facto, um romance com valor histórico, psicológico e artístico.
Um humanista
Não que Ferreira de Castro fosse um estilista como Aquilino Ribeiro, criador de uma linguagem de excepcional beleza, mas foi um escritor que, pouco a pouco, soube conquistar uma expressão de grande sugestão, com verdadeiro poder comunicativo. Podemos apro-ximá-lo de grandes figuras de humanistas do seu tempo, como Kmut Hamsun, na Suécia, que escreveu um belo romance chamado O Pão, embora mais tarde se tenha desviado para a direita, como aliás John Steinbeck nos Estados Unidos, o autor de As Vinhas da Ira (o romance que melhor representa o protesto do proletariado americano da Califórnia contra as condições de vida no tempo da Depressão) e que, mais tarde, apoiou a Guerra do Vietnam.
Isto nunca aconteceu com Ferreira de Castro. Humanista, sim, é talvez a melhor palavra que lhe cabe: falou em nome da humanidade e sobretudo em nome dos pobres. Fê-lo em A Lã e a Neve, fê-lo em Terra Fria, na A Selva, nos Emigrantes e até, de certo modo, na A Curva da Estrada, ao escrever sobre políticos que encarnavam as aspirações populares e cujo problema era permanecerem fiéis a essa opção de classe ou desviarem-se dela.
Pessoalmente, lembro-me de Ferreira de Castro com admiração e afecto. Recordo os abaixo-assinados que lhe dei a assinar e a que ele nunca se furtou e a sua carta que uma vez, há muitos anos, levei para o Porto, onde o Vítor de Sá ia ser julgado em Tribunal Plenário e que o defendia com brio e com coragem. Fomos testemunhas nesse julgamento o José Cardoso Pires e eu. E, inesperadamente, o Vítor de Sá foi absolvido. Não terá sido por causa dos nossos depoimentos nem pela carta do Ferreira de Castro. Mas ao lê-la no tribunal senti cada uma das palavras do autor de A Selva como um grito em defesa da dignidade humana.
«O Militante» Nº 238 - Janeiro / Fevereiro - 1999