«Pressão social impôs
prazo à descolonização»
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Rosa Coutinho |
Na noite decisiva de 24 para 25 de de Abril de 1974 o então capitão de fragata Rosa Coutinho cumpria o seu serviço de rotina na sede do Comiberland. Nessa madrugada, o movimento dos capitães desencadeava as acções militares que, horas depois, poriam fim ao mais longo regime fascista deste século na Europa. Na noite de 25 para 26 de Abril, reunia-se no quartel da Pontinha a Junta de Salvação Nacional, de que Rosa Coutinho fazia parte, nomeado pelos oficiais do MFA da Marinha. As contingências atribuladas do processo fizeram com que fosse um dos oficiais da Junta isentos de funções de chefia militar, situação não prevista no protocolo anexo ao Programa do MFA. Ele e o general Galvão de Melo foram então afogados, no vazio de Governo, pelos problemas de um País que expunha as suas chagas, os seus sonhos e anseios, e tinha finalmente quem o ouvisse. Nomeado mais tarde presidente da Junta Governativa de Angola, a Rosa Coutinho, promovido a almirante por força dos regulamentos militares aplicados às altas funções que a Revolução lhe atribuiu, coube o papel mais duro e controverso do processo de descolonização.
A breve entrevista que se segue, concedida, 25 anos depois, ao jornalista Armando Pereira da Silva, não trará novidades absolutas. Mas é uma reflexão serena que ajudará a compreender o episódio mais marcante da nossa história contemporânea.
A constituição da Junta de Salvação Nacional continua a ser um processo pouco claro, e aparentemente dos mais contraditórios, aos olhos da opinião pública. Que se passou?
Deve ter-se em conta que, para os militares, o respeito pelas hierarquias é um valor fundamental. E os capitães, que organizaram e concretizaram o golpe militar, estavam atentos à natureza da sua instituição. Não seria fácil fazer passar a ideia de um país governado por capitães. Por isso decidiram escolher sete oficiais generais de 4 estrelas para constituírem a Junta de Salvação Nacional. Todos com funções militares: um presidente da Junta e da República, um chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, dois vice-chefes, três chefes de Estado-Maior dos ramos. As regras estavam definidas num documento pouco conhecido, o Protocolo anexo ao Programa do MFA, julgo que só publicitado num livro do Dinis de Almeida.
Mas como foi feita essa escolha?
Havia dois nomes óbvios e inevitáveis: Costa Gomes e António de Spínola. Aceitaram, embora não se tivessem comprometido directamente no levantamento. Os outros seriam escolhidos nos próprios ramos pelos oficiais do MFA. O Exército nomeou Silvério Marques. Da Força Aérea, foram nomeados Diogo Neto, que nada tinha a ver com o Movimento: era um operacional sem formação política, que ainda pilotava aviões a jacto, um dado importante para a mentalidade militar; e Galvão de Melo, já na reserva, que havia tomado atitudes de rebeldia profissional contra o anterior regime. Na Marinha procuraram oficiais generais ou próximos dessa patente. Pinheiro de Azevedo aceitou logo. Eu fui o quarto convidado: era capitão de fragata, comandante de um navio. Nenhum dos membros da Junta teve papel activo no golpe. Só Spínola ganhara uma certa projecção mediática imediata: o capitão Salgueiro Maia não quis assumir a responsabilidade pessoal pela rendição de Marcelo Caetano e chamou-o ao quartel do Carmo para o efeito.
Anunciava-se uma gestão difícil...
Era um autêntico saco de gatos. Os oficiais da Junta, na sua maioria, foram promovidos para poderem exercer as funções. Nem se conheciam. Reuniram-se pela primeira vez na Pontinha, à noite. Menos o Diogo Neto que estava em Moçambique, não sabendo o que se passava. Alguns nem sequer conheciam o Programa do MFA, casos de Diogo Neto, Galvão de Melo, Silvério Marques. Nessa mesma noite, por iniciativa do Costa Gomes, foi convidado Spínola para Presidente da República. Costa Gomes seria CEMGFA. Aceitaram. Primeira discussão, difícil, do Programa, que sofreu algumas alterações “suavizadoras”, sobretudo no capítulo da descolonização. Spínola até já tinha escolhido um novo director para a Pide/DGS que, entretanto foi decidido que após expurgada, continuaria em funções no Ultramar com a designação de Polícia de Informação Militar. As negociações arrastaram-se e atrasaram, o que não era conveniente, a proclamação pública da Junta. Mas a Comissão Coordenadora não abdicou do seu direito de manter ou não a confiança nos membros empossados. Essa reserva acabou por ter efeitos práticos no 28 de Setembro, quando foi retirada a confiança a três deles: Diogo Neto, Galvão de Melo, Silvério Marques. Como Spínola renunciou, a Junta ficou então reduzida a três.
Em síntese: o Protocolo não foi cumprido, porque Diogo Neto e Pinheiro de Azevedo não quiseram ser vice-chefes do Estado Maior General das Forças Armadas, antes chefes dos respectivos ramos. Em consequência, eu próprio e Galvão de Melo ficámos sem funções militares definidas. Foi tudo feito sobre o joelho, com consequências graves sobre o funcionamento do sistema resultante da Revolução. A administração pública caiu em cima de dois membros da Junta até à formação do 1º Governo. Eram sobretudo problemas laborais. A Junta tomou decisões que por vezes contrariavam as orientações da Comissão Coordenadora. Uma delas: mandar Marcelo Caetano e Américo Tomaz para a Madeira, e depois para o Brasil, decisões estas combatidas pelas estruturas do MFA. A Junta inicial durou até ao 28 de Setembro. Reconstituída, o seu papel passou a ser essencialmente militar.
Fale-nos agora da intervenção dos militares de Abril na vida política, depois da Revolução. Havia uma noção clara do seu papel?
Os capitães derrubaram o regime anterior e, por isso, tiveram o apoio de uma imensa maioria do nosso povo. Elaboraram e aprovaram um Programa de regeneração da vida portuguesa, se quiser assente nos três DDD: democracia, descolonização, desenvolvimento. Criaram as estruturas de arranque do novo regime democrático, e definiram como seu papel essencial o da vigilância quanto ao cumprimento do Programa do MFA, ponto fulcral da Revolução. Papel esse que se revelou decisivo face às tentativas continuadas de o subverter, a partir do próprio Presidente Spínola. Foi este que quis esvaziar o MFA, diluindo-o precocemente no conjunto das FA, retirando-lhe a capacidade de intervenção nas questões mais relevantes, incluindo a descolonização. Era ele próprio que escolhia não só o Primeiro-Ministro, como os próprios ministros... Foi assim até ao 28 de Setembro. Não se tratava de devolver o poder aos civis, mas de eliminar o MFA e suas estruturas. Quis chamar a si a descolonização, mas o MFA não consentiu. Está aí a raiz da crise Palma Carlos: a solução, que se impunha com premência, do problema da Guiné e a transformação das eleições para a Constituinte num plebiscito nacional, subvertendo o Programa do MFA. Os mecanismos de precaução voltaram a funcionar: o Conselho de Estado alterou a Constituição, como era de sua competência, e Spínola teve de anunciar a independência da Guiné. E eu, que já estava em funções em Angola, não sabendo tudo o que se passava, até o felicitei pelo discurso pronunciado...
Descolonização. O almirante Rosa Coutinho acabou por ter um papel fulcral na concretização do processo, quanto mais não seja porque exercia funções da maior responsabilidade na “joia da coroa” entre as antigas colónias: Angola. A esta distância, como definiria o processo? Fez-se a descolonização necessária, a possível, como foi?
Situemo-nos na época: tanto o 25 de Abril como o apoio popular esmagador que lhe foi dado revelaram que a grande preocupação da população portuguesa era a esperança de que finalmente iam terminar as guerras coloniais. Ao fim de 13 anos de esforço continuado em três frentes, todos estavam fartos: militares e população. Não havia saída com os descendentes de Salazar no poder. As guerras até eram relativamente baratas, mas o esforço nacional foi tremendo. Cerca de um milhão de jovens portugueses passaram pela guerra, com números importantes de mortos, feridos e traumatizados psicológicos.
O sentimento da população reflectiu-se na maneira como foi feita a descolonização. Iniciada a democratização interna (com o fim da censura e da Pide), a descolonização era um imperativo de execução rápida. A permanência das Forças Armadas nas antigas colónias não podia ser prolongada. Nem os militares nem a população aceitavam a substituição dos soldados presentes. Não havia possibilidade de negociar em situação de força real. Na prática, o prazo estava fixado. Puxemos pela memória: em Portugal gritava-se: «nem mais um soldado para as colónias». E em finais de 1974, em Angola, gritava-se: «Portugal para o Natal». A operacionalidade caiu a pique, exceptuando as forças especiais. As restantes o que queriam era o regresso à família. A pressão em Portugal era idêntica. Daí que se tivessem de fazer negociações rapidamente com movimentos independentistas reconhecidos pela Organização dos Estados Africanos. O problema estendeu-se a todas as colónias, mesmo aquelas onde não havia luta armada.
E na prática, como foi?
A descolonização em si não foi exemplar nem perfeita. Foi a possível. Evitou-se um descalabro, que seria trágico para o País e para as Forças Armadas, como aconteceu à França na Argélia e no Vietnam. A descolonização pecou por ser tardia. Devia ter sido iniciada 10 anos antes, quando havia condições reais de protecção das pessoas e bens portugueses. Tal como foi, representou uma espécie de intervenção cirúrgica em desespero. Os que tiveram de a fazer fizeram o papel de cirurgiões de último recurso. Não podia ser exemplar. O prazo foi determinado pela impossibilidade de rendição das tropas.
A descolonização teve efeitos concretos no desenvolvimento do processo revolucionário de Abril?
Claro que sim. A forma como teve de ser executada deu motivo às sucessivas crises do MFA. As crises Palma Carlos, 28 de Setembro, 11 de Março e outras que não foram reveladas, todas têm como pano de fundo o problema da descolonização. “Maioria silenciosa”? Fantasias: a crise teve a ver com o problema colonial, começou com o 7 de Setembro em Moçambique. Curiosamente, a descolonização acabou por abalar o ímpeto da Revolução: o 25 de Novembro só foi possível porque a 11 de Novembro acabara o processo de descolonização com a independência de Angola.
Para terminar: 25 anos depois, que balanço faz do 25 de Abril?
Todos sabemos que muitos sonhos não se realizaram. Mas outros, positivos, já podem ser correctamente avaliados. Portugal, hoje, é um País completamente diferente. Verificou-se uma revolução de mentalidades, ainda em curso. Evitaram-se traumas maiores da descolonização e da guerra. Não sofremos nenhum Dien Bien Phu nem tivemos uma OAS. O País reintegrou- -se num espaço europeu a que sempre pertenceu. Conquistaram-se e solidificaram-se as liberdades fundamentais, integrámo-nos com segurança na vida em democracia. Um dos efeitos mais marcantes é o poder local democrático, só possível com o 25 de Abril. O movimento sindical teve finalmente condições para florescer. A explosão educacional, embora com defeitos, embora com problemas, com incompreensões, não tem paralelo na nossa história.
Não esqueçamos o impacte internacional do 25 de Abril: ele foi enorme, apesar de nem sempre reconhecido. A Espanha, aqui ao lado, foi obrigada a uma reconversão política rápida; o processo de libertação da África Austral (Zimbabué, Namíbia, África do Sul) foi acelerado pela Revolução Portuguesa. Tudo isto deve ser para nós um motivo de orgulho.
É evidente que as coordenadas políticas e sociais vividas no País se modificaram, e outros medos se instalaram na sociedade portuguesa. O maior inimigo da liberdade é o medo. E os medos, 25 anos depois, não são os mesmos dessa época. Já não há medo da Pide, da censura, das perseguições políticas (à velha maneira...), mas em compensação criaram-se outros também inimigos da liberdade: medo do desemprego, medo de não ter condições para uma velhice feliz, medo de não conseguir educar os filhos, medo de não ter acesso à saúde, todos estes conti-nuam a existir, e todos eles têm de ser combatidos em nome de uma liberdade que o País conseguiu com o 25 de Abril.
«O Militante» Nº 238 - Janeiro / Fevereiro - 1999