A luta popular na vitória dos capitães

Carlos Brito

As comemorações do primeiro quarto de século do 25 de Abril constituem uma excelente ocasião para uma reflexão sobre os fundamentos da democracia portuguesa, as suas vicissitudes, consolidação e aprofundamento progressista.

As comemorações devem revestir, sem qualquer dúvida, o carácter de uma homenagem nacional aos capitães de Abril e à componente militar da revolução.

Mas não devem, ao contrário do que já se começa a notar em alguns actos, ignorar ou minimizar o papel da luta popular.

Esta componente, que inclui o movimento antifascista e em especial a acção dos comunistas, foi decisiva, como se sabe, no aprofundamento do processo revolucionário depois do 25 de Abril. Mas foi, também, essencial pelo papel histórico da resistência, pela preparação das condições que tornaram possível a vitória dos militares nos meses que a precederam e pelo própria intervenção no dia da vitória.

Não devem, no entanto, restar dúvidas de que cabe inteiramente à componente militar a glória de ter assestado o golpe de misericórdia que derrubou o governo da ditadura fascista.

Os 25 anos do 25 de Abril são, por isso, também, uma ocasião apropriada para pôr em evidência as discriminações e as maquinações com que as forças dominantes na cena política portuguesa, nos últimos 20 anos - a direita e o próprio PS - arredaram de qualquer intervenção importante, incluindo no específico campo militar, os autores desta gloriosa façanha.

No plano político, com o 25 de Novembro e no decorrer do processo contra-revolucionário, estas forças dominantes serviram-se dos militares para conter a componente popular revolucionária e, logo depois, numa segunda fase, dispensaram os próprios militares, remeteram-nos para lugares secundários, quando não ao silêncio.

No domínio da história, procedem de modo semelhante: têm exaltado o feito dos militares para negar ou reduzir o papel da componente popular, do movimento antifascista e em especial dos comunistas. Entretanto, do lado de uma certa historiografia, não só de direita, já há quem comece a acusar de inoportunidade o acto revolucionário dos capitães, que teria impedido uma pretensa evolução gradual da ditadura para a democracia.

Por tudo isto é que é fundamental esclarecer o papel da componente popular no processo que conduziu ao 25 de Abril. Não para reduzir de qualquer maneira a componente militar, mas para que não restem dúvidas sobre a participação do povo, com a sua luta, sofrimento e aspirações, no nascimento da nossa democracia, para tornar compreensível o quadro concreto em que os capitães agiram e explicar, afinal, todo o alcance do seu triunfo.

Duas dinâmicas

O ano de 1973, foi um ano de grande avanço da causa democrática.

No primeiro semestre, sucederam-se encontros da Oposição que culminaram com a realização do 3º Congresso de Aveiro, onde, com forte influência dos comunistas, foi aprovada uma plataforma de acção para todo o movimento antifascista. Esta plataforma incluía, pela primeira vez entre os objectivos de luta do Movimento Democrático, o fim da guerra colonial.

Tudo mexia na política portuguesa: os católicos progressistas fizeram uma vigília na igreja do Rato; a ASP transformou-se em PS, numa reunião na Alemanha.

A luta dos trabalhadores, onde a influência dos comunistas era também determinante, estava em pleno desenvolvimento, com greves operárias em várias importantes empresas das áreas de Lisboa e do Porto, greves dos pescadores em praticamente toda a costa e até manifestações de rua, como a dos bancários, na baixa lisboeta.

Tornava-se já então evidente o fracasso da operação demagógica, que se auto-apelidava de «renovação na continuidade», com que Marcelo Caetano se propunha debelar a crise do regime.

O sucessor de Salazar não tinha conseguido obter nenhum dos grandes objectivos que se fixara: nem no plano económico, onde a situação se degradava; nem no plano social, onde as condições pioravam e a conflitualidade crescia; nem no plano político, onde tinha falhado a tentativa de atrair forças da oposição ao colaboracionismo com o governo e se exacerbavam os conflitos no interior do regime.

Nas três frentes da guerra colonial, a situação complicava-se cada vez mais e crescia o descontentamento das tropas, incluindo entre os oficiais, para quem se ia tornando claro que a via militar não tinha saída.

O isolamento externo do regime atingia limites extremos, bem ilustrados pela visita que Marcelo Caetano efectuou, nessa altura, a Londres, onde foi contestado pela imprensa e apupado nas ruas. A visita coincidiu com a denúncia internacional do massacre das aldeias de Wiryamu, em Moçambique, perpetrado pelas tropas portuguesas.

Foi neste quadro, sumariamente descrito, que o Comité Central do PCP reunido em Julho de 1973 lançou a palavra de ordem de «uma grande campanha política de massas» a realizar por ocasião da mascarada eleitoral que se realizaria em Outubro.

Os objectivos da campanha - «pela liberdade, pelo fim da guerra colonial, por uma vida melhor» - foram largamente desenvolvidos num extenso documento que teve grande difusão no país.

Todo o Partido se mobilizou ao máximo na preparação desta campanha. Respeitando a autonomia e a dinâmica própria do Movimento Democrático, os comunistas, quer os que em grande número participavam, da base ao topo, nas estruturas do Movimento, quer através das estruturas clandestinas do Partido, multiplicaram-se em esforços para que fossem elaboradas e apresentadas listas prestigiadas e combativas de democratas, abertas sedes, constituídas comissões de apoio, preparados programas e outro material de propaganda.

A Direcção do PCP efectuou, ao mesmo tempo, contactos, a vários níveis, com outras forças políticas. Destacou-se entre eles, o encontro realizado em Setembro, entre delegações do PCP e do PS, encabeçadas respectivamente por Álvaro Cunhal e Mário Soares. Neste encontro os dois partidos concordaram em apoiar a apresentação de listas da Oposição nas «eleições» de Outubro para fazer a campanha, mas recusando a ida às urnas. Foi também deste encontro que saiu um comunicado conjunto onde se reclamava o fim da guerra colonial e a realização de negociações com vista è independência das colónias, o que marcava uma grande evolução da parte da corrente socialista.

A campanha política de massas desenrolou-se durante quase todo o mês de Outubro e foi um grande sucesso de mobilização, de refutação da propaganda fascista e colonialista e de esclarecimento das posições do Movimento Democrático.

Efectuaram-se cerca de 150 comícios e sessões com largos milhares de participantes, com destaque, pela amplitude e vibração, para os de Lisboa, Porto, Almada, Barreiro, Baixa da Banheira, Moscavide, Sacavém, Amadora e Marinha Grande. Foram distribuídos milhões de exemplares de documentos muitas vezes em luta cerrada com a polícia. Mantiveram-se abertas 40 sedes de candidatura, que se tornaram grandes focos de esclarecimento político. Terminou com manifestações de protesto contra a burla eleitoral.

Ao mesmo tempo que esta campanha se preparava e desenvolvia, começam a surgir as primeiras acções importantes de oficiais do Quadro Permanente. Nos princípios de Julho 400 oficiais assinaram um documento de protesto contra as teses integristas de ultradireita do I Congresso dos Combatentes do Ultramar. Logo a seguir o Movimento do Capitães dava os primeiros passos. A princípio só reuniões, em Portugal, Angola, Moçambique e sobretudo na Guiné, com a aprovação de documentos e abaixo-assinados de carácter corporativo relacionados com a garantia do estatuto dos oficiais do quadro permanente. Depois o Movimento começou a institucionalizar-se. A 6 de Outubro, numa reunião de delegados de quase todas as unidades do país e das forças combatentes nas colónias, a que assistem pela primeira vez observadores da Marinha e da Força Aérea já se fala do «uso da força», ainda que num quadro reivindicativo e acabando por triunfar a ideia da «demissão colectiva». No dia seguinte, são tomadas decisões de grande importância sobre a organização do Movimento e das suas estruturas dirigentes.

Marcha vitoriosa

A campanha política de massas, com incidência especial nos centros industriais, como já se viu, ateou um vasto e combativo movimento grevista da classe operária, dos mais importantes realizados em toda a história da ditadura.

Entre Outubro de 1973 e o 25 de Abril de 1974, cerca de 100 mil trabalhadores industriais e muitos milhares de trabalhores agrícolas recorreram à greve, que era considerada crime e duramente reprimida pelas leis do fascismo.

A reivindicação central das greves foi o aumento de salários, que se encontravam então congelados, com a reclamação generalizada de um aumento de 1 000 a 1 500 escudos. Mas quase sempre esta reivindicação central foi acompanhada de outras de carácter nitidamente ofensivo, também bastante generalizadas, como as do 13º mês e férias pagas.

Não podendo ignorar a importância desta grande vaga de greves, aqueles que pretendem minimizar o papel do movimento antifascista e em especial dos comunistas no processo que conduziu ao derrubamento da ditadura procuram apresentá-lo como «um surto espontâneo» ou «um certo recrudescer da luta grevista (...) em grande parte espontâneo».

É evidente que num movimento de tão grande amplitude e envergadura houve necessariamente muita espontaneidade. Pode, também, dizer-se que nas condições de então, de extrema exploração e com os salários congelados, havia factores que favoreciam o alastramento das greves como fogo em campo de palha. Mas só por grande miopia voluntária é que não se percebe que um movimento tão vasto, centrado em reivindicações tão idênticas e em formas de actuação tão parecidas não podia ser mero fruto da espontaneidade.

Na verdade, numa primeira fase que se desenrola entre Outubro e o fim do ano de 1973, as greves foram, no essencial, despoletadas, como já vimos, pela campanha política de massas e pelo trabalho desenvolvido pelas estruturas sócio-profissionais do Movimento democrático, que os comunistas tanto contribuíram para que fossem criadas e desenvolvidas.

Numa segunda fase, a mais consistente, que se inicia nos princípios de Janeiro de 74, com as greves da Cometna, da Sorefame, da Robialac e da Dyrup, vêm ao de cima o trabalho desenvolvido e o caderno reivindicativo elaborado por algumas células do PCP nestas e noutras grandes empresas e a força do exemplo dos seus processos de luta, que não tinham nada de espontâneo. São estes objectivos e estas experiências que a imprensa e acção geral do PCP e da Intersindical propagaram no país, sustentanto o movimento grevista que continuava no próprio dia 25 de Abril, com a greve da Mague.

Analisando, tanto as greves de 1973, como as dos meses que antecederam o 25 de Abril, Álvaro Cunhal escreveu oportunamente, em 1976, na sua obra «A Revolução Portuguesa. O passado e o Futuro» que elas «tiveram um papel de primacial importância para o agravamento das dificuldades do regime, o aprofundamento da sua crise e, finalmente, o seu derrubamento».

É, na verdade, inquestionável que um movimento grevista tão vasto e aguerrido, que se prolongou ao longo de 5 meses, não podia deixar de constituir um poderoso factor de debilitamento da ditadura fascista e de preparação das condições para a sua queda. Foi um dos indicadores mais salientes da crise revolucionária e um dos factores determinantes da sua aceleração.

Sem subestimar outras frentes importantes da luta antifascista, como as acções do Movimento Democrático, as actividades da Intersindical ou a contestação estudantil, as greves operárias de finais de 73 e princípios de 74 foram, em termos de luta concreta, a mais significativa contribuição da componente popular para o derrubamento do fascismo.

Foram-no ainda mais pelo incentivo que representaram para a componente militar que dava paralelamente passos decisivos.

A pouco e pouco os objectivos corporativos com que se iniciara o Movimento dos Capitães foi dando lugar a objectivos abertamente políticos de oposição ao regime e à sua política colonial. Dia após dia os dirigentes do Movimento aperfeiçoavam a sua estruturação, ampliavam a organização, estabeleciam formas permanentes de ligação e de comunicação com as mais importantes unidades e os contigentes que estavam nas colónias. O Movimento passou a abarcar oficiais do quadro permanente de patente superior a capitão e oficiais do quadro de complemento e deu mais um passo de grande importância com o alargamento à Armada e à Força Aérea, chegando a envolver cerca de 300 oficiais das Forças Armadas. O objectivo do golpe de força para derrubar o regime começou a estar subjacente a toda a actividade. Elaboraram-se os primeiros textos programáticos. Veio a público, nos princípios de Março, o documento intitulado: «O Movimento, as Forças Armadas e a Nação». Tratava-se já de um verdadeiro manifesto político. Têm lugar as primeiras prisões de oficiais e as aguerridas solidariedades e protestos que elas suscitam. Foi publicado o livro de Spínola. Seguiram-se as demissões de Costa Gomes e Spínola, respectivamente CEMGFA e vice-CEMGFA. Verificaram-se diversas reacções nas unidades, ocorrendo a mais significativa, a 16 de Março, nas Caldas da Rainha, onde os capitães de Infantaria 5, numa acção isolada, tomaram o comando do Quartel e avançaram para a capital sem qualquer possibilidade de sucesso.

Apesar da grande repressão que se abateu sobre o Movimento em consequência desta saída precipitada, já nada podia deter a sua marcha vitoriosa. A vitória em 25 de Abril foi conseguida com o levantamento simultâneo das mais importantes unidades militares do País, tendo à frente os capitães, que, segundo um perfeito plano de operações, convergiram sobre objectivos estratégicos previamente fixados, especialmente em Lisboa, onde o governo da ditadura foi finalmente derrubado.

Aliança Povo-MFA

O acto glorioso dos capitães de Abril não teria sido, no entanto, tão eficaz e fulminante se as massas populares não tivessem descido à rua, desobedecendo às instruções dos comunicados do Movimento, para aplaudirem, apoiarem e incentivarem os militares, até intervindo por sua conta e risco, especialmente no principal teatro de operações, que foi a baixa lisboeta e o Largo do Carmo.

No seu relatório, Salgueiro Maia escreveu a propósito: «Foi bastante importante o apoio dado pela população na realização destas operações, pois além de me indicarem todos os locais que dominavam o quartel (do Carmo) e as portas de saída deste, abriram portas, varandas e acessos a telhados para que a nossa posição fosse mais dominante e eficaz. Também nesta altura começaram a surgir populares com alimentos e comida, que distribuíram pelos soldados.»

Vão no mesmo sentido os relatos de comandantes de forças fieis à ditadura ao queixarem-se da atitude hostil da população, que os paralisava e impedia de manobrarem no sentido das forças revoltosas.

O levantamento popular, que assumiu toda a sua magnífica expressão no 1º de Maio de 1974, começou de facto no próprio dia 25 de Abril. Não caiu, evidentemente, do céu, como teria acontecido se fossem verdadeiras as teses do refluxo sustentada por certos historiadores.

O levantamento popular que se seguiu imediatamente ao levantamento militar foi, assim, resultado e prova do ascenso da luta da classe operária e de outros trabalhadores, dos estudantes e da juventude, do trabalho do movimento democrático, da acção persistente das forças antifascistas, com destaque para o PCP, como demonstrámos atrás.

A árdua escalada que conduziu ao derrubamento da ditadura fascista fez-se afinal por duas vertentes: a militar, com as armas que lhe são próprias, deu aos capitães a glória de chegarem primeiro ao topo e implantarem a bandeira; a popular, com a força que determina as grandes mudanças, criou as condições para a progressão militar e deu depois consistência ao seu sucesso.

É evidente que tinha que haver e houve uma inter-influência recíproca destas duas vertentes autónomas, ao contrário do que sustentam aqueles políticos ou historiadores que ignoram ou minimizam o papel da luta popular no derrubamento da ditadura.

Para eles o Movimento do Capitães foi apenas fruto da tomada de consciência por parte dos militares de que a guerra colonial não tinha saída; visava, de início, um único objectivo que era pôr-lhe fim; mas como o regime fascista não aceitou mudar de política em relação às colónias foi então obrigado a derrubá-lo.

Esta absurda simplificação procura sustentar-se argumentando com o carácter estritamente militar e a autonomia do Movimento em relação às forças políticas oposicinistas, o que sendo, até certo ponto, verdadeiro, não significa que o Movimento tivesse nascido e crescido numa redoma de vidro, imune ao contágio da luta antifascista e dos seus objectivos essenciais.

O que os documentos do Movimento mostram, especialmente o seu programa, ainda mais antes de alterado por Spínola, é a grande influência que sobre eles exerceram as ideias de textos programáticos da oposição, sejam, por exemplo, as Conclusões do 3º Congresso de Aveiro, seja até o próprio Programa do PCP.

A vigorosa luta travada pelos comunistas contra a política colonial de Salazar e Caetano e contra a guerra nas colónias desde o seu início, a que vieram juntar-se ano após ano praticamente todas as forças da Oposição, seguramente que influenciou muito, a par da própria experiência dura e directa, a tal tomada de consciência de um grande número de oficiais.

No que respeita ao PCP, deve dizer-se que fazia tudo para levar esta influência aos militares e não só relativamente à guerra colonial, mas em relação ao regime e a toda a situação portuguesa. Fazia-o através da sua acção política geral, de acções de todo o tipo contra a guerra, do «Avante!» e de toda a sua imprensa, mas fazia-o também com publicações especialmente dirigidas aos quartéis, com o trabalho dos comunistas nas Forças Armadas, com a manutenção de contactos e de diálogo com oficiais progressistas.

Fazia-o porque, como salienta Álvaro Cunhal, na obra atrás citada, «há vários anos que (...) o Partido previa a aproximação da situação revolucionária e indicava como caminho o levantamento nacional, o derrubamento da ditadura pelas armas».

O PCP acompanhou por isso, com a maior atenção, o nascimento e a evolução do Movimento dos Capitães. Não foi surpreendido quando a sua maioria se orientou no sentido do derrubamento do regime pela força, nem pelas operações desencadeadas a 25 de Abril. Foi assim que nesse mesmo dia pôde lançar orientações e palavras de ordem favorecedoras da Aliança Povo-MFA.

Esta, que teve, como vimos, a sua primeira significativa expressão na colina do Carmo, onde Marcelo Caetano se rendeu, foi depois a motora da revolução de Abril, «um dos acontecimentos mais importantes nos oito séculos da história de Portugal», como diz o Programa do PCP.
«O Militante» Nº 238 - Janeiro / Fevereiro - 1999