Sérgio Ribeiro
Doutor em Economia
Deputado ao Parlamento Europeu
Vem aí a moeda única, o euro.
É preciso avisar toda a gente. Mas não como está a ser feito. Não como se estão a gastar “rios de dinheiro” travestindo propaganda em informação. Com o objectivo confessado e ser a finalidade primeira “ganhar a confiança da opinião pública”.
É preciso avisar toda a gente. Não como se está a fazer, a apresentar o novo instrumento como se só viesse trazer vantagens. Ou, então, a pretender mostrar-se que nada traz, o novo instrumento, que faça alterar o modo como estão a funcionar as finanças e as moedas. Dificuldades? Apenas as de umas contas de conversão (para as quais, aliás, se estão a preparar calculadoras especiais, que até serão excelente oportunidade de negócio...), coisa de nada quando o novo instrumento vem facilitar-nos - a todos! - a vida.
$——$——$
A primeira coisa a sublinhar é que uma moeda é, sempre e só, um instrumento. E que um instrumento é... um instrumento. Nós, portugueses, temos o escudo que, como instrumento de trocas no/do/para o espaço económico nacional, foi criado e se foi formando, e vamos passar a ter uma outra moeda, um outro instrumento, o euro.
O processo de substituição começará em 1 de Janeiro de 1999, mantendo-se as duas moedas a coexistir no nosso espaço durante 3 anos, para que, entre 1 de Janeiro de 2002 e 30 de Junho do mesmo ano se faça a substituição total das notas e moedas em escudos pelas notas e moedas em euros.
Até lá, entre 1 de Janeiro de 1999 e 1 de Janeiro de 2002, a coexistência traduzir-se-á na manutenção das notas e moedas que em escudos são com a possibilidade de se fazerem operações escriturais em euros.
$——$——$
Isto é, todas as operações monetárias que não sejam materializadas em notas e moedas poderão ser realizadas em euros, a partir de uma relação directa, estável, definitiva (quanto é permitido tal dizer), entre as duas moedas. Como entre o euro e as outras moedas dos países que, depois de Maio, passaram a ser os Estados-membros da União Europeia a 15 (UE-15) que também são os 11 da União Monetária (UM-11). Essa(s) relação(ões) entre as moedas terá(ão) por base uma(s) taxa(s) de conversão fixa(s) e não alterável(eis).
Assim, sendo monetariamente indiferente usar escudos ou euros porque a relação cambial não é susceptível de se alterar, poder-se-á (e haverá estímulos para) utilizar euros nas operações monetárias escriturais, ou seja, nas que passam por depósitos, cheques, cartões bancários, todas em que não entra “metal sonante” ou notas que representam dinheiro porque foi o Banco de Portugal que as emitiu.
A regra (ou a ausência de regras) durante a transição é de que não será obrigatória nem será proibida a utilização escritural da moeda euro, em Portugal. Como nos outros 10 da UM-11. Assim será para que se verifique, diz-se, uma preparação cautelosa que vá habituando as pessoas, enquanto consumidores, ao novo instrumento sem se sentirem abandonadas pelos meios a que estavam habituadas. Acrescente-se, aliás, que as informações tal como elaboradas e divulgadas mostram em toda a evidência a perspectiva que transforma os cidadãos, com os seus direitos e obrigações, as populações, em consumidores. Em utentes!
$——$——$
Vai ou não mudar alguma (ou mesmo muita) coisa?
É claro que vai. Mas o que muda (e está a mudar) não muda pela mera troca de um instrumento por outro aparentemente mais adequado aos tempos. Já terá, até, mudado muita coisa em razão do processo de criação e introdução, e pelas reacções que provocou, como mudará em razão da utilização e pelas reacções que provocará.
Desde logo, quando no início do processo se definiram os critérios de admissibilidade que correspondem a contribuir para menor intervenção do Estado (e maior das transnacionais), mais privatizações (e menos serviços públicos), circulação de capitais sem quaisquer peias a ser prioridade absoluta (e actividades produtivas a serem subalternizadas), a criação da moeda única foi pretexto e aceleração.
No entanto, o que mais importa é ver como será agora, agora que o euro vem aí e que se está à beira da transição para adaptação e habituação. Ver como se preparam, ou são preparadas, as populações para a mudança, para as mudanças.
Há quem fale, com pertinência, em choques assimétricos, salientando que as situações de crise provocam reflexos e consequências diferentes segundo os países e a sua estrutura e capacidade de reacção, e foi retirada - aos que no euro estão - capacidade de reacção autónoma a esses choques assimétricos. Ora, num outro plano, a assimetria da informação e preparação também é evidente.
A transição não será igual para todos. Vai habituar-se ao euro - e aproveitar-se dele... - quem já está habituado a operações escriturais, quem está familiarizado com bancos e bolsas, e actividades correlativas. E os outros? Alguns de nós corremos o risco de só conhecer o euro quando, sem transição, formos obrigados a usá-lo como “aquilo com que se compram melões” (definição ribatejana de moeda) em vez de, para essas e outras compras, usarmos os relativamente velhos e sempre curtos escudos dos nossos salários.
$——$——$
Por isso, é preciso avisar toda a gente. Sobretudo, a malta. Sobretudo estes, porque os outros bem avisados estão...
Aliás, alguns dos avisos já chegarão tarde. Virão tarde, por exemplo, para aqueles que cairam no “conto do vigário” e trocaram as suas poupanças em “pé de meia” de escudos por falsos euros. Também para aqueles que se deixaram enredar em operações imobiliárias no convencimento que era preciso desfazerem-se das poupanças em liquidez que tivessem em escudos. O que não só foi mudança como provocou mudanças. Nos preços dos andares, por exemplo.
Os portugueses que ainda hoje dizem mil reis e calculam em tostões (como os franceses em antigos francos) terão muito mais dificuldades com o euro que os que há tempos lidam, com as mãos “na massa” e escrituralmente, com moedas várias, com dólares, marcos e ecus.
$——$——$
Durante o período de transição, será susceptível de explodir o comércio electrónico e o dinheiro de plástico. O que poderá vir a agravar as diferenças sociais pois tais formas de comerciar e de pagar beneficiarão os que mais rapidamente a elas tiverem acesso, delas dificilmente beneficiando os que mais afastados estão de domínio dessas inovações.
As técnicas de venda adaptar-se-ão, rapidamente ao novo instrumento, até podendo esconder aqui e sublinhar noutro lado. Segundo as conveniências. Por exemplo, é muito mais visível um aumento de 180 escudos para 200 escudos que um aumento igual de 0,9 euros para 1 euro, que mais passará por um arredondamento.
E quando chegarem as moedas e as notas em euros, as 7 notas de 5 a 500 euros (que alguns de nós verão poucos ou com que se poderá pagar um salário de 100 contos...) e as 8 moedas entre 2 euros e 1 cêntimo de euro, a conversão obrigará a arredondamentos. Para dar uma (pálida) ideia das dificuldades, a conversão deve ser feita com o mínimo de seis números significativos, cinco algarismos à direita da vírgula, arredondando-se a duas casas decimais a partir da terceira. Fácil, não é!?...
Por outro lado, cada moeda do euro terá duas faces, a euro...peia e a nacional, que será diferente em cada um dos países da UM-11, o que faz prever a existência de 88 modelos de moedas diferentes a circularem nesse espaço monetário. No entanto, essa circulação não será livre pois, por causa das fraudes, far-se-á, ou procurará fazer-se, com que as moedas voltem ao ponto de partida, ao país de origem. Ou seja, uma moeda de 2 euros com face portuguesa que pagou uma cerveja em Paris, deverá voltar para Portugal. Como e quem pagará os custos (França ou Portugal) do re-encaminhamento ainda não se sabe e dificilmente se chegará a acordo.
E a adaptação das máquinas que funcionam com moedas às euro-moedas?, e quanto vai custar?, e quem vai pagar?
$——$——$
Escrever sobre o euro sem deixar uma palavra sobre o Banco Central Europeu (BCE) seria como falar da literatura portuguesa e nada dizer sobre José Saramago e o Prémio Nobel da Literatura deste ano.
O BCE tem a tarefa de, através da política monetária de que terá a competência, conseguir a estabilidade de preços. Quase se diria só. Com esta missão, o seu funcionamento e a sua estrutura de direcção têm o maior significado. E tudo assenta num “directório” para que se escolhe um presidente e cinco membros. A escolha é feita entre técnicos de reconhecida competência, eurobanqueirocratas, e o processo de nomeação é da maior opacidade porque não está sujeito a nenhuma legitimação democrática.
Essa nomeação decorre de uma complicada negociação e de compromissos entre governos nacionais e interesses financeiros transnacionais. A sede está em Frankfurt, o modelo (de independência do poder político) é o do Bundesbank, a primeira comissão executiva é presidida por um holandês (a Holanda faz parte da zona marco) e os esforços franceses para conseguir um pouco de equilíbrio são de êxito bem difícil.
Esse banco, essa comissão, essa independência, determinarão como deverá ser a política monetária portuguesa, em assumida indiferença às pressões que as situações sociais possam provocar através das estruturas democráticas. Aliás, a instituição e o mecanismo que o BCE têm a ver com um processo de federalização, de que são o primeiro passo concretizado e de uma aceleração perigosa do agravamento do défice democrático que tem caracterizado o processo de integração.
$——$——$
Quer dizer que as mudanças prejudicam sempre quem para elas não está, ou não foi, preparado? Nem sempre. Depende. Mas, neste caso, parece que sim. Pelo que é necessário e urgente prevenir. Avisar.
Como última nota, retomando o fio, vai ser aconselhada e estimulada a dupla afichagem. O que corresponde a dar a conhecer o preço dos produtos na moeda nacional enquanto existir - no nosso caso, escudos - e em euros. Assim aumentará a comparabilidade e a transparência, o que se considera positivo por anular ou diminuir a ilusão monetária. Em euros será directa a comparação entre o preço de um mesmo produto em Portugal ou Espanha, sem necessidade de cálculos de conversão ou em pesetas ou em escudos.
Mas também essa comparabilidade será possível quanto aos salários. O que terá efeitos ainda mais profundos por, ao anular-se a ilusão monetária por ser possível a comparação directa, os trabalhadores de uma mesma profissão poderão ter o conhecimento imediato das disparidades salariais entre países diferentes.
Por esta via, pela comparabilidade, as mudanças poderão mudar de sentido e passar a ser positivas. Desde que sejam transformadas essas comparações em reforço da luta social. Será uma boa ajuda (indirecta e involuntária) do euro!
$——$——$
São estas notas dispersas, parcelares, descozidas? Terão o eventual mérito de comprovar que tudo tem de ser visto no conjunto, no quadro global, numa articulação de políticas de que o euro é instrumento e o BCE instituição e mecanismo.
«O Militante» Nº 238 - Janeiro / Fevereiro - 1999