A BSE e as responsabilidades
do Governo Português

Lino de Carvalho
Membro do Comité Central
Deputado à Assembleia da República

1 - A decisão da Espanha de proibir a importação de gado bovino e carne de vaca proveniente de Portugal e, posteriormente, o embargo decidido pela Comissão Europeia teve um grande impacto na vida pública do País e vai ter, seguramente, fortes consequências no rendimento dos agricultores portugueses, designadamente dos produtores pecuários. Por iniciativa do Grupo Parlamentar do PCP a Assembleia da República realizou uma audição sobre a situação da BSE em Portugal (na sequência de uma outra realizada em 1996) cujo relatório final, aprovado por maioria contra os votos do PS teve larga repercussão no País e no estrangeiro e prestigiou o nosso Partido.

A BSE (encefalopatia espongiforme bovina), popularmente conhecida pela doença das vacas loucas, é uma doença progressiva e fatal do sistema nervoso central, caracterizada por um período médio de incubação entre os 4 e os 6 anos, seguida de sintomas de disfunção cerebral que conduzem inevitavelmente à morte.

Os estudos de investigação apontam que a BSE teve origem na ingestão de rações para bovinos produzidas no Reino Unido a partir de tecidos de ovinos contaminados com scrapie (uma encefalopatia dos ovinos - doença contagiosa conhecida há séculos) e depois multiplicada pelo uso de rações contaminadas a partir já de carne de bovino infectada.

Tendo sido reconhecida pela primeira vez na Grã-Bretanha, em Novembro de 1986, a BSE manifestou-se em Portugal a partir de Junho de 1990 e até 1994 o então Governo do PSD optou por uma estratégia de sigilo e de ocultação da doença e de não adopção de medidas, o que conduziu à multiplicação da BSE. Mesmo os casos que estão a surgir hoje ainda são de animais que contrairam a doença até 1995.

De acordo com os últimos dados disponíveis, e até 6 de Outubro, tinham-se registado 159 casos (dos quais 65 em 1998), todos relativos a bovinos originários do Reino Unido ou já nascidos em Portugal, correspondente a 0,02% do total do efectivo bovino nacional com idade superior a 2 anos. Em toda a Europa o número de casos de BSE ascende a cerca de 175.000, dos quais cerca de 174.000 manifestaram-se no Reino Unido.

2 - Desde Abril de 1996 o Governo português pôs em execução um plano de abate compulsivo de todos os animais clinicamente suspeitos de BSE e de todos os co-habitantes das respectivas explorações. Até 31 de Julho de 1998 tinham sido abatidos 5781 animais dos quais somente um apresentou resultado positivo no exame realizado ao cérebro. Contudo, este plano de abate não impediu o aparecimento, desde o início da sua execução, de mais 116 casos de BSE.

O número de casos registados em Portugal conferem-nos o estatuto de País com uma baixa taxa de incidência da doença, não justificando a drástica decisão de embargo tomada pela União Europeia.

Por isso é justo dizer que a decisão da Comissão Europeia é desproporcionada e injusta para os produtores portugueses, a maioria dos quais tem o seu gado indemne. E é hipócrita quando se conhecem as atitudes sigilosas e negligentes que tomou em relação ao Reino Unido (e que lhe mereceu um inquérito e uma crítica do Parlamento Europeu), com a ausência de medidas idênticas no caso da Irlanda ou com a desvalorização da situação na Suíça bem como com o facto de não se opor à utilização de hormonas e antibióticos nos sistemas de alimentação animal.

A decisão da União Europeia em relação aos produtores portugueses dá a ideia de que, no quadro de um processo crescente de ingerência na soberania de cada Estado, a Comissão Europeia procurou compensar, agora com excesso de zelo, o comportamento co-responsável que teve anteriormente na ocultação e propagação da doença.

3 - Sendo isto verdade tal não diminui minimamente a responsabilidade do actual Governo na não adopção atempada de medidas que, a terem sido tomadas, teriam permitido um maior controle da doença e teriam, no mínimo, reduzido a margem de manobra da Comissão Europeia. De facto desde, pelo menos, também Abril de 1996 que a comunidade científica, o Grupo Nacional da BSE, os Grupos de Trabalho Inter-ministerial, a Direcção Geral de Veterinária e a própria Assembleia da República propuseram ao Governo várias medidas, tais como a proibição da utilização de farinhas de carne e ossos em toda a cadeia alimentar animal, bem como os materiais de risco de origem bovina, ovina e caprina com a sua destruição; o reforço da fiscalização e da inspecção sanitária com a criação de um Corpo Nacional de Inspectores Sanitários e a existência permanente de vigilância sanitária nas unidades de abate, nas fábricas de produção de alimentos compostos e nas unidades de transformação de subprodutos.

O Governo do PS, negligentemente, desvalorizou os sinais de agravamento da situação que se iam acumulando no horizonte. Basta dizer, a título de exemplo que, face à multiplicação dos casos diagnosticados, deslocou-se a Portugal, entre 11 e 15 de Maio de 1998, uma missão veterinária da União Europeia. Essa missão produziu um relatório bastante crítico para a situação no nosso País. Pois bem, o Ministério da Agricultura, só em 25 de Setembro e só após a decisão de Espanha e as ameaças de embargo já existentes, é que decidiu responder deixando, nesse período, que se consolidassem no plano internacional as críticas à situação da BSE em Portugal.

4 - Porque é que o Governo adoptou este comportamento? Por desvalorização e irresponsabilidade mas também porque, em resultado dos compromissos de Maastricht e do Pacto de Estabilidade não havia disponibilidade financeira para investir nos procedimentos técnicos e nos meios humanos necessários a pôr em prática as medidas sugeridas.

Pode-se dizer, sem exagero, que o Governo do PS sacrificou a saúde animal (e a saúde pública) à moeda única e aos constrangimentos orçamentais. Por isto tudo, a Comissão de Agricultura da Assembleia da República acabou por condenar com severidade o comportamento ligeiro e irresponsável do Governo a par da crítica e condenação do embargo decidido pela Comissão Europeia, conforme proposta contida no projecto de relatório do Deputado do PCP.

5 - Chegados aqui é natural que se pergunte: mas que garantias há de que a ingestão de carne de bovino não é perigosa para a saúde pública? É preciso, sobre isto, obter mais informação, tomar as precauções adequadas mas não entrar numa espiral injustificada de pânico e alarmismo.

É necessário exigir-se a aplicação de mais meios na investigação científica e uma política de informação aos consumidores que permita a estes saber tomar opções com consciência.

Neste quadro continuam a ser válidas as conclusões da comunidade científica já divulgadas em 1996: não consumir tecidos de alto risco que são todos aqueles que estão ligados ao sistema nervoso central dos bovinos (cérebro/miolos; espinal medula, timo (moelas); amígdalas, baço e intestinos de bovinos). Não parece justificarem-se quaisquer medidas que condicionem o consumo de leite e lacticínios, carne (bife), coração, língua ou estômago.

Tal como não se justifica - à luz dos conhecimentos científicos actuais - o abandono generalizado do consumo de carne de bovino, designadamente a proveniente do rico património pecuário nacional e cujo sistema natural de alimentação à base de pastagens e prados e controlo de qualidade deve ser estimulado.

Mas é evidente que neste domínio se impõe um debate sério sobre as consequências genéticas e para a saúde pública de uma agricultura hiper-intensiva que tem conduzido à alteração dos sistemas naturais de alimentação e promover-se a efectiva proibição de utilização de hormonas e antibióticos na alimentação do gado.

Em todo o caso, como foi aprovado pela Assembleia da República por proposta do PCP, impõe-se que o Governo e a União Europeia compensem os agricultores portugueses e toda a fileira pecuária pelos prejuízos e quebras de rendimento resultantes de um embargo para o qual não tiveram a mínima responsabilidade bem como a adopção de medidas, só agora aprovadas pelo Conselho de Ministros, que conduzam com brevidade ao fim desta situação.
«O Militante» Nº 238 - Janeiro / Fevereiro - 1999