A política do actual Governo:
privatizar, desregulamentar, precarizar

Paulo Trindade
Coordenador da Frente Comum
dos Sindicatos da Administração Pública

Após mais de três anos de governação do Governo PS é tempo bastante para uma análise quanto à natureza e conteúdo da respectiva política para um sector tão importante para toda a so-ciedade portuguesa como é a Administração Pública.

Se, explicitamente, o Governo PS tem o pudor de ainda não assumir o slogan de “menos Estado, melhor Estado”, as medidas estruturais que tem vindo a implementar, condimentadas com mais ou menos diálogo, aprofundam a filosofia neoliberal de crescente desresponsabilização face às funções sociais e de utilização do aparelho de Estado, em todos as suas vertentes, como instrumento dos interesses do patronato e do grande capital.

Seja qual for o ângulo de abordagem, conduz-nos a conclusões elucidativas.

Subordinar as funções sociais do Estado
à dinâmica especulativa do mercado


Em termos de distribuição do rendimento nacional entre o factor trabalho e o factor capital, em que, com uma conivência violadora do direito efectivo à negociação para os trabalhadores da Administração Pública, o patronato invoca os valores deste sector como fasquia para a contratação colectiva, assistimos a que a diferença do salário mínimo da Função Pública em relação ao salário mínimo nacional passou de 4,2% em 1995 para 6,4% em 1998.

Quando o Governo impõe salários para a Administração Pública, com a conivência dos habituais “parceiros sociais”, tendo apenas como factor de ponderação a inflação previsível e omitindo os ganhos de produtividade, o crescimento da economia e a necessidade de convergência real com os restantes países da União Europeia, não está a assumir uma mera opção tecnocrática e economicista: está a utilizar o factor trabalho para ser imolado em nome dos critérios do “Pacto de estabilidade” - anteriormente como garante dos critérios de convergência para a moeda única - ou seja, a assumir uma clara opção de classe quanto a quem suporta os custos do processo designado de integração europeia.

Perante a crescente injustiça na distribuição do rendimento nacional, em que em Portugal os 10% da população mais pobre apenas têm direito a 2,2% desse rendimento e os 10% mais favorecidas têm acesso a 27,7% do mesmo (segundo dados da EUROSTAT), assume importância estratégica o facto de, por um lado, a Frente Comum de Sindicatos da Administração Pública não abdicar da necessidade de eliminação da diferença entre o valor do índice 100 e o valor do salário mínimo nacional e, por outro lado, reivindicar uma actualização mínima de 5 000$00 por trabalhador. Tais objectivos, a serem concretizados, teriam importantes repercussões em toda a contratação colectiva.

Mas se, no que respeita a salários, se assiste a uma política de evolução na continuidade do Governo PS face à prática do Governo PSD, assume gravidade acrescida a evolução qualitativa no que respeita à política de privatizações, de desregulamentação laboral e de precarização do trabalho na Administração Pública.

Com efeito, as reestruturações orgânicas dos serviços, para além de apresentarem como denominador comum a substituição do vínculo de emprego público pelo contrato individual de trabalho - o que exige dos Sindicatos do sector a necessidade de novas e mais difíceis formas de actuação para a defesa dos mais de dez mil trabalhadores já colocados nessa situação -, apontam para formas de privatização de sectores fundamentais do aparelho de Estado quer de forma directa, com patamares intermédios em muitos casos, quer de forma indirecta - por omissão - quando o Estado se desresponsabiliza de intervir e entrega o que deveria ser função sua à iniciativa privada, subsidiada, obviamente, pelo Orçamento de Estado, como se verifica no sector da Educação.

Subordinar as funções sociais do Estado à dinâmica especulativa do mercado, dar o lugar nuclear à iniciativa privada, retirar da responsabilidade do Estado a protecção dos cidadãos, são esses os objectivos do Governo.

Os argumentos publicamente expendidos para justificar esta política são basicamente dois:
- o de que o Estado é vulnerável à burocracia e ao seu aumento (omitindo que compete ao Governo gerir os serviços públicos e implementar os meios e mecanismos necessários a que tal não aconteça);
- o de que a entrega de serviços públicos à iniciativa privada é a melhor forma de alcançar qualidade por força dos mecanismos de concorrência (omi-tindo propositadamente que há uma contradição insanável entre interesses privados movidos pelo lucro e a lógica da prestação de serviços públicos e universais).

A privatização de serviços públicos

Com as privatizações, o cidadão, por via dos impostos, continua a contribuir para o Estado, mas os serviços ante-riormente por ele prestados transitaram para entidades que perseguem o lucro o que, inexoravelmente, acaba por penalizar ainda mais a bolsa dos cidadãos.

As experiências de privatização de serviços públicos já realizadas, quer a nível nacional quer a nível internacional, apontam, na prática, para um desperdício de dinheiros públicos e para a quebra do mito da eficiência do sector privado neste tipo de serviços.

De facto, verifica-se que as poupanças directas são muito menores do que as anunciadas e que, na maioria dos casos, não há sequer qualquer poupança; que há enormes gastos, por parte do Estado, em consultadorias externas, processos de concursos, campanhas de publicidade, já para não falar de perda de património e equipamentos, custeados pelo Orçamento do Estado, entregues às entidades privadas; que o crescimento do trabalho precário e o aumento do desemprego acarretam tensões sociais cuja minimização é custeada pelo Estado.

Tem-se vindo a revelar igualmente falso que a alegada concorrência estimule a melhoria dos serviços, porquanto é cada vez mais frequente que um pequeno número de empresas controle a maior parte dos serviços em várias áreas ou sectores. A concorrência é, de facto, cada vez mais substituída por uma realidade em que as empresas vão controlando o mercado através de aquisições e fusões, tendo em visita o crescimento do seu volume de receitas e lucros.

Por outro lado, o papel detido pelas multinacionais nesta realidade é cada vez maior sendo frequente que as empresas (nacionais ou estrangeiras) que prestam esses (ex) serviços públicos sejam ou tornem-se monopólios. Paralelamente, o emprego público cai, a precaridade do trabalho aumenta, a estabilidade de emprego e o direito à carreira cessam, o cumprimento e manutenção dos direitos dos trabalhadores não são respeitados e a sua motivação cai abruptamente.

Esta é, porém, a política que o Governo PS tem vindo a desenvolver com os inerentes custos, actuais e futuros, para o País e para os trabalhadores.

À resistência dos trabalhadores, organizados nos seus sindicatos, o Governo contrapõe pacotes laborais visando fragilizar a sua capacidade de luta, aumentar a precaridade e desregulamentar as relações laborais.

É neste quadro que surge o designado pacote da “semana dos quatro dias”, visando a redução do salário, inclusive numa percentagem muito superior à redução do trabalho e a tentativa de introdução do trabalho a tempo parcial, sem possibilidade sequer de o trabalhador voltar ao regime de tempo inteiro.

Estas peças legislativas, que o Governo se recusa a considerar matéria objecto de negociação e pretende evitar a respectiva discussão na Assembleia da República, servem de fundamento para a pretensão do Executivo de introduzir e legalizar novas formas de trabalho precário.

Essas formas consistem na criação da figura do “estagiário” remunerado abaixo da tabela e que, se ao fim de um ano tiver aproveitamento (leia-se, nomeadamente, tiver demonstrado ser subserviente, não se sindicalizando nem fazendo greve), é premiado com o direito de preferência para um contrato a prazo por três anos para substituir os trabalhadores com direitos que forem sendo empurrados para fora da Administração Pública.

Para cúmulo, se esses jovens trabalhadores conseguirem passar o calvário dos quatro anos de precaridade nem assim adquirem direito à estabilidade de emprego, pois a única expectativa que lhes é criada é, se o dirigente do serviço assim o entender, passar à figura de contrato administrativo de provimento, renovável anualmente.

E chama a isto, o Governo PS, a implementação de uma política activa de emprego!

Do que se trata, na Administração Pública como no sector privado, é de substituir rapidamente uma geração de trabalhadores com direitos e hipotecar e condenar à precarização do trabalho o futuro da geração jovem.

E a pressa é tanta que, ainda não estando publicada tão maquiavélica legislação, já foram admitidos estagiá-rios na Segurança Social.

Porém, entre a frieza das formas de des- regulamentação gizadas por alguns gurus nos gabinetes governamentais e a realidade social, nomeadamente, a tomada de consciência da defesa dos direitos, gera--se uma contradição que não se anula por decreto-lei. Daí que esses jovens trabalhadores precários mostrem já disponibilidade de lutar para exigir um emprego com direitos.

E a luta é efectivamente o caminho, quer para aqueles a quem se pretende retirar direitos, quer para aqueles a quem se quer negar o reconhecimento de direitos.

À política de privatizações, de desregulamentação e de precarização que está a ser prosseguida pelo Governo PS na Administração Pública há que contrapor a necessidade de uma política diferente.

Uma política que, respeitando e valorizando o factor humano, proceda a uma verdadeira reforma democrática da Administração Pública que: - Vá ao encontro das necessidades dos utentes e promova a dignificação profissional, proporcionando condições para a qualidade dos serviços prestados aos cidadãos.

- Implemente no quadro de uma gestão de meios orçamentais, que são de todos e no interesse de todos, racionalidade acrescida na prestação dos serviços públicos.
«O Militante» Nº 238 - Janeiro / Fevereiro - 1999