Ventos
de guerra
ou uma vitrine do capitalismo
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Eduardo Costa
Pofessor do Ensino Secundário |
1. A partir de 1991, a quase esmagadora maioria
dos fazedores da opinião pública e dos meios de
comunicação internacional tem sido pródiga e peremptória em
afirmar duas coisas distintas: que se entrou finalmente numa era
de paz e mansuetude universal, salpicada aqui e ali,
infelizmente, de alguns focos localizados de confusão e
conflito; e de que o papel do Estado tende a apagar-se,
substituído pelo protagonismo crescente dos agentes económicos.
Estas concepções fazem constelação com outras, como a de que
a era das ideologias chegou ao fim, a luta de classes está morta
e enterrada, o socialismo já era.
Os focos localizados de conflito a que se referem
situam-se, já se sabe, nos países do dito terceiro mundo, e
urge extirpá-los ou, melhor, purgá-los (fazendo-os render),
paciente e sistematicamente (o termo cirurgicamente
também foi reinventado na ocasião). Ao escrever sobre o
protagonismo dos agentes económicos têm em mente a
acção em roda livre das grandes multinacionais e do capital
financeiro, sorrateiramente escondidos atrás de miragens como o
capitalismo popular ou o dinamismo imparável das
pequenas empresas.
Vedetas várias da ribalta política nacional têm acrescentado
as suas vozitas ao coro mediático, dizendo que é assim mesmo,
sim senhora.
Os últimos sete anos têm fartamente demonstrado a vacuidade de
tais afirmações.
A propalada era da paz universal ninguém a enxerga sob a
enxurrada de sangue que escorre de regiões como a Argélia,
Ruanda, Burundi, Sudão, Somália, Congo, Angola, Iraque,
Curdistão, Palestina, Líbano, Balcãs, Afeganistão, Cambodja,
Timor, Colômbia, Brasil, México, para só citar alguns dos mais
ou menos badalados nos media.
A intervenção activíssima dos Estados, ao serviço dos grandes
monopólios e das oligarquias, é todos os dias muito óbvia,
quer nos grandes processos de engenharia sócio-económica, como
a construção da Europa dos monopólios, ou a NAFTA
(Associação de Comércio Livre da América do Norte), ensaio de
coutada privada dos monopólios americanos, quer em operações
de micro-ingerência, como substituir um secretário-geral da
ONU, Buthros-Ghali, que se tornara incómodo para o mando
impaciente dos Estados Unidos, por outro, momentaneamente mais a
contento, ou o rapto de um presidente do Panamá, general
Noriega, e seu encarceramento numa prisão dos
States.
2. Uma vez mais, uma notícia recente de um
jornal francês (*) confirma tudo isto que escrevemos.
A notícia resume-se facilmente. A marinha de guerra francesa
construiu um navio anfíbio, de 12000 toneladas, o Siroco,
para exposição (vitrine) e venda dos armamentos franceses:
carros de combate Leclerc, helicópteros Cougar
e Gazelle, peças de artilharia, equipamentos
informáticos de comando.
O navio não é apenas uma vitrine para venda de armamentos e de
realizações próprias para a construção naval militar,
também se vende a si mesmo, rampa que é para
projectar tropas numa costa hostil, evacuar grupos
ameaçados ou levar a cabo acções ditas humanitárias.
Este navio-stand-de-exposições-e-venda de material de
guerra não constitui uma novidade absoluta das chefias militares
francesas. De facto, ele somente renova o que os estados-maiores
de há muito praticam e, aliás, retoma um circuito seguido há
pouco pelo submarino francês La Praya .
O que nele chama a atenção é a convergência e, mesmo, a
fusão completa entre o sector público e o privado. Assim, o
navio Siroco, da Armada gaulesa, terá a assistência
das empresas de armamento, privadas, francesas e da indústria de
armamento do Estado; será apoiada, nos países que visitar,
pelas missões diplomáticas francesas nesses países, pelos
engenheiros da Delegação Geral para o Armamento e por uma
sociedade de direito, privada, braço comercial dos arsenais da
direcção das construções navais!...
Este casamento assim tão perfeitinho entre o Estado e o capital
privado para vender morte e destruição parece não chocar
ninguém nestes tempos de pós-modernidade desenfreada, torna é
difícil sustentar as teses sobre o menos Estado ou
sobre o fim da propaganda ideológica. O conceito do lucro como
valor superior a qualquer outro brilha na pena de todos os
amanuenses da ordem dominante.
Esta fusão entre o Estado e o sector privado ou, mais
rigorosamente, esta colocação do Estado ao serviço do capital
privado, chega até ao ponto de cada exército das forças
armadas francesas designar um dos seus oficiais-generais no
activo para apoiar as empresas francesas e estimular as vendas.
Isto é, os oficiais-generais franceses passam a
caixeiros-viajantes do complexo militar-industrial. As forças
armadas norte-americanas já o praticavam, mas, primeiro,
reformavam os generais.
Parece não haver dúvidas que este casamento compensa tanto para
o Estado francês como para as empresas privadas. Ambos se
felicitam, pois, em 1997, as encomendas de armamentos franceses
situam-se entre os 30 e os 50 mil milhões de francos, conforme
se considere os contratos oficialmente anunciados e assinados ou
também os que estão em fase de redacção.
O secretário de Estado para o comércio veio a público afirmar
com orgulho que eles representam 14% das trocas comerciais com o
estrangeiro. E em perspectiva já existe um grande
golpe de 20 mil milhões de francos. Um cabaz de vendas
cheio de submarinos, fragatas, carros de combate Leclerc,
aviões Mirage 2000-5 e Rafale e, à guisa de
cerejas, no topo do cabaz, meia dúzia de helicópteros de
combate Tigre. No horizonte perfilam-se como potenciais,
quase certos, compradores, a Arábia Saudita, a África do Sul, o
Chile, a Índia, a Grécia, o Abou Dhabi, Singapura e outros
Estados, que o véu turvo da discrição esconde.
3. O que alegra os ministérios da economia, do
comércio e o executivo francês atemoriza os povos. Na verdade,
a melhor maneira de vender armas é convencer os povos de que
elas são precisas ou oferecer aos governos que as compram uma
boa justificação para o fazerem. Convencer que os níveis e os
tipos de sistemas de armamentos são insuficientes, se tornaram
obsoletos, foram ultrapassados por versões mais sofisticadas,
já não constituem argumentos dissuasores poderosos.
Para cumprir esse papel existem as conferências militares, as
revistas especializadas, os cursos sobre estratégia, sobre
táctica, sobre os novos sistemas de armas, os encontros
inter-armas, inter-exércitos e inter-estados-maiores, as
demonstrações de armas, os exercícios militares. Mas o
argumento mais eficaz é mesmo uma guerra. Testa os materiais,
esgota os stocks, destrói-os, cria novas necessidades.
É claro que, de caminho, mata uns milhares ou milhões de
pessoas, mas, como dirá um yuppie apressado e de
consciência levezinha, não se fazem omoletas sem partir ovos
ou, como disse Kissinger, a melhor maneira de resolver um
problema político é criá-lo.
A rota desta montra do armamento gaulês fala por si própria:
Próximo e Médio Orientes, Ásia. A Tailândia, a Malásia,
Singapura, a Indonésia, Estados todos eles duramente atingidos
pela crise económica, avultam entre os próximos promissores
clientes.
Crise económica que, neste mundo hodierno tão global, foi
apressadamente baptizada de crise asiática, numa
ânsia de lhe circunscrever linguisticamente o domínio, de lhe
atenuar os traços e os efeitos nos meios de comunicação
(única área em que têm tido sucesso). Embora os economistas
topo de gama temam que a crise possa assumir consequências mais
catastróficas que a crise de 1929. Apesar dos operadores dos
mercados financeiros continuarem a mostrar enorme pessimismo com
a degradação rápida da situação económica na região, o PIB
da Malásia se ter contraído de 1,8% no primeiro trimestre de
1998, o da Indonésia ter recuado 8,5%, a taxa de desemprego ter
duplicado na Coreia do Sul desde o início do ano e da economia
japonesa não dar sinais de desamarrar, não obstante todos os
avisos do amigo americano. (**)
Este caminhar das coisas desmente à saciedade as muito glosadas
teses do politicamente correcto dos anos 90. Os
ventos de guerra não só não se atenuam como se acentuam e
acumulam, ameaçando terríveis tempestades futuras. As clivagens
entre países ricos e países pobres, e, dentro do mesmo país,
entre as classes sociais, aprofundam-se. A ideologia da classe
dominante, com a pretensão a pensamento global,
tenta desenrolar-se como vaga gigantesca e submergir tudo à sua
frente.
A razão, a coragem, a determinação dos povos saberá deter
esta vaga no presente, como deteve outras na história passada.
Em França, onde um governo socialista se vangloria da sua
carteira de vendas de armamento e da sua promiscuidade com o
grande capital, os trabalhadores, que nada lucram com a
prosperidade do complexo militar-industrial e detêm uma das
taxas europeias de desemprego mais altas, lutam na rua pela
criação de postos de trabalho e frustram no dia-a-dia o avanço
do neofascismo, do racismo e da xenofobia.
(*) Le Monde, 5 de Maio de 1998, p.5.
(**) Le Monde Hebdomadaire, 6 de Junho de 1998, p. 3.
«O Militante» Nº 236 - Setembro / Outubro - 1998