Actualidade de dois centenários
- Lorca; Brecht -
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Mário Barradas
Encenador |
Neste ano de 1998 são assinaladas duas
efemérides de grande significado. Os centenários do nascimento
de Federico Garcia Lorca e do nascimento de Bertold
Brecht. Nenhuma das datas é mero pretexto de celebrações,
comemorações, recitais, montagens de textos ou colóquios. São
ambas muito mais que isso. Envolvem, por um lado, reflexões
profundas e determinantes sobre o devir dos tempos e sobre os
nossos próprios dias, por outro lado, constituem salvaguardas e
alertas para o futuro, e, finalmente, representam uma aposta
decisiva na humanidade, na utopia do desenvolvimento humano, na
utopia concreta e realizável que a sociedade vai prosseguindo
ano após ano, século após século.
Garcia Lorca nasceu em 1898 e morreu, fuzilado pelos
franquistas, em Agosto de 1936. O que esta morte nos dá hoje
são sobretudo respostas. Respostas às dúvidas sobre a
dimensão e o carácter da barbárie.
Os cães de guarda do fascismo elaboraram durante muitos anos um
processo tendente a mascarar os motivos fundos que teriam
conduzido ao fuzilamento de Lorca. Teria sido um engano, um erro,
lamentado pelo próprio Franco, algo provocado por causas
várias, entre as quais a homossexualidade de Lorca que provocava
absurdas reacções da parte de um tal comandante Valdez Gusmán,
macho ibérico decidido e único responsável pela morte.
Procurava-se assim camuflar a verdade evidente. Quem fuzilou
Lorca foi o fascismo.
Lorca foi preso a 16 de Agosto de 1936 por Ruiz Alonso que tinha
sido anteriormente deputado da coligação de direita, liderada
por Gil Robles, esse mesmo que, ministro da guerra, nomeou, em
1935, Franco como chefe de Estado-Maior. Preso e entregue
directamente ao comandante Gusmán. Este, por sua vez, recebeu
instruções directas da alta hierarquia fascista, no caso do
general Queipo de Llano, no sentido de fuzilar o poeta.
Dêem-lhe café, foi a ordem dada por Queipo de
Llano, quando o informaram que Lorca tinha sido preso. O Queipo
de Llano ridículo da peça de Rafael Alberti, o de Rádio
Sevilha, um fascista impiedoso muito próximo de Franco. E que
sabia o que Lorca representava no campo da esquerda, no campo dos
trabalhadores, no campo da humanidade.
Lorca, de resto, não foi fuzilado sózinho: no dia 18 de Agosto
de 1936 cumpriu-se a paixão do poeta. Com ele foram assassinados
também Diósoro Gonzales, um professor, e dois bandarilheiros da
esquerda, Joaquim Arcollas e Francisco Galadi. Era o fascismo com
a mão na massa.
O Lorca que foi morto, logo nos primeiros dias da Guerra Civil,
foi o intelectual, o poeta e o dramaturgo. O criador de
Bodas de Sangue, da Yerma, da
Sapateira Prodigiosa, de Maria Pineda, de
A Casa de Bernarda Alba e de outros textos. Foi o
criador de La Barraca, com os seus espectáculos
dados em Alicante, em Granada, na Galiza, nas Astúrias, em
Barcelona, ante os protestos da direita que, sejam quais forem as
roupagens de que se veste, es siempre la derecha.
Foi o poeta que um dia escreveu que:
(..) nós queremos o pão nosso de cada dia,
flor de amieiro perene de ternura debulhada,
porque nós queremos que se cumpra a vontade da terra
que dá seus frutos para todos.
Quem foi fuzilado foi o homem cujo coração batia ao ritmo do
coração do seu povo. Foi a grande amizade que unia o poeta aos
intelectuais comunistas. Foi aquele mesmo que tinha aderido ao
Comité de Amigos de Portugal, que desenvolvia acções de
solidariedade para com as vítimas, os perseguidos da ditadura
salazarista.
O homem que dizia que era revolucionário porque não há
verdadeiros poetas que não sejam revolucionários. Nenhum homem
verdadeiro acredita já nessas ninharias da arte pura, a arte
pela própria arte. Neste momento dramático do mundo, o artista
deve chorar e rir com o seu povo.
E foi isto que o fascismo, que a direita, a tal que é
sempre direita fuzilou. Porque as circunstâncias lhe
eram propícias. O fascismo aprestava-se a dominar a Europa. Não
se tratava portanto, nessa altura, de combater o povo e os
trabalhadores. Tratava-se de os aniquilar. Como sempre a direita
faz. Quando pode.
Cem anos passados sobre o seu nascimento Lorca está entre nós.
Como um símbolo e como uma aposta. A aposta no humano, a aposta
nos homens, a aposta na afirmação genial, corajosa e clara de
uma outra concepção do mundo.
A obra de Lorca é uma aposta na beleza e no humanismo. Uma
aposta no século XXI. A obra de Lorca é uma aposta partidária,
a aposta de todos o que tomaram partido pelos homens: Yo
sempre seré partidário de los que no tienen nada y hasta la
nada se los nega.
A lição de Brecht
Em 1998 passa também, como se sabe, o centenário do nascimento
de Bertold Brecht. Brecht é, à entrada do século XXI,
o mais importante e o mais determinante homem do teatro que o
século XX produziu. Pesquisador infatigável, criador de uma
rara inteligência, Brecht confrontou-se com a mais desumana das
barbáries, o fascismo nazi. Nos seus poemas, nos seus textos
teatrais, nas suas novelas, nos seus escritos, Brecht assumiu
sempre a posição dos de baixo.
Escreveu para o seu tempo, como notou Werner Hecht.
No tempo da desordem de que foi escapando, mudando de países
mais vezes do que de sapatos.
Depois de uma primeira fase de aproximação dos grandes ideais,
depois de uma fase de simpatia anarquista, Brecht estuda
decididamente os clássicos, Marx, Engels, Lénine. A
partir daí toda a sua obra vai reflectir sobre a
insatisfação:
que o insatisfeito seja o nosso mestre
para transformar a colectividade.
O tema da transformação está presente em toda a
obra de Brecht.
Fugiu de Berlim na manhã seguinte ao incêndio da Reischtag
pelos nazis, em Fevereiro de 1933. Brecht vai passar no exílio
os 15 anos seguintes: na Dinamarca, na Suécia, na Noruega, na
Finlândia, na União Soviética, que atravessa até chegar aos
Estados Unidos da América.
Os seus textos, peças, poemas, escritos, desenvolvem sem cessar
o tema da transformação, do sim e do seu contrário, do não e
do seu contrário.
Lutando permanentemente contra a barbárie, usando a
confrontação violenta, ou a astúcia, o gozo, a ironia, Brecht
não pertence à geração do teatro alquímico e
cruel, das liturgias de bordel, das
litânias da auto-castração, do universo do
absurdo, da pirotecnia necrófila, como muito bem nota Ewen.
Brecht pertence à geração da bondade, do realismo
e do socialismo humanista.
A actualidade de Brecht e a projecção dessa actualidade no
futuro é inquestionável:
Hoje a injustiça caminha a passo firme, tal é o
primeiro verso do Elogio da Dialéctica.
Aos homens e às mulheres que pretendem e que sabem que o cimento
da bondade é o único cimento possível da
humanidade, duma humanidade liberta e libertada, é que Brecht se
dirige.
A utopia brechtiana é a utopia da possibilidade. Uma
possibilidade dialéctica que permanentemente se afirma:
estais realmente comprometidos no movimento das coisas que
se elaboram?
De acordo com tudo o que está em evolução?
Vós próprios continuais a evoluir?
Quem sois?
Para quem falais?
A quem aproveitam as vossas palavras?
No rescaldo do lançamento da Bomba Atómica sobre Hiroxima e
Nagasaki, já Brecht trabalhava com Laughton e Losey sobre o
texto de Galileu. A última declaração de Galileu
põe todo o peso sobre as responsabilidades do cientista e sobre
a obrigatoriedade de erguer a sua palavra contra a barbárie, de
conservar a sua liberdade de protestar.
A passagem de Brecht pelos EUA, se não foi grandemente
auspiciosa, foi, pelo menos, extremamente educativa. Sentia uma
grande repugnância por Holywood, ia ganhando o seu pão como
podia e escrevendo sem parar textos, escritos, poemas e peças de
teatro que são património nosso e lançaram influências sobre
toda a arte do século XX.
Sem perder a lucidez:
todas as manhãs, para ganhar o pão,
vou ao mercado onde se compram mentiras.
Cheio de esperança
meto-me na bicha dos vendedores.
Esmagado pelos percevejos, devorado pelas
mediocridades, Brecht escapou a todas elas. As suas
respostas à Comissão das Actividades Anti-Americanas, em 1947,
são um exemplo de rarísssima inteligência, de astúcia
prática. Ele próprio afirma que o seu sucesso no banco
das testemunhas deixou sem resposta os membros da
Comissão.
Brecht regressa então à Alemanha e a Berlim.
A cidade pátria como é que me irá receber?
À frente de mim vêm os bombardeiros. Bandos mortíferos
vos anunciam o meu regresso. Incêndios
antecedem o filho.
Depois, depois foi a criação do Berliner Ensemble. A Companhia
que constituiu o grande exemplo, o grande paradigma do teatro
novo no nosso século. Aí Brecht pôde finalmente pôr em
prática todas as suas teorias longamente elaboradas. Pôde
montar, em condições ideais, os seus grandes textos, e pôde
dar corpo à constituição de um verdadeiro ensemble
de criação, onde avultavam os nomes da mulher, Helena Weigel,
de Gisela May, de Ernst Busch, de Kaiser, de Schall, de músicos
como Paul Dessau, Hans Eisler, de cenógrafos e dramaturgos como
Teo Otto, Manfred Wekwerth, Joaquin Tenschert, Peter Palitzsch,
Benno Besson, Caspar Neher, Erich Engel, e tantos outros. Sem
perder a grande referência a Kurt Weill.
Brecht estabelece toda a sua teoria do teatro numa obra
monumental, A Compra do Cobre, pouco lida entre nós
e que constitui ainda hoje um manancial inesgotável de
reflexões produtivas, dialécticas e teatrais.
Em 1956, doente, Brecht morre.
Deixa uma obra teórica e prática verdadeiramente excepcional. A
enorme importância de Brecht é demonstrada pelo interesse que a
sua obra suscita mas também pela legião de detractores que vão
pululando e são o sinal de que a sua voz continua a ser
incómoda.
E de que é uma voz que vai marcar o século XXI.
A besta imunda sofreu derrotas, mas continua a
insistir e hoje em estado cada vez menos latente. Mobilizando
meios imensos, os chamados milagres económicos, o
liberalismo arrogante e destruidor faz aumentar e avançar a
grande legião dos desprotegidos, dos perseguidos, dos milhões
de desempregados, dos milhões de homens e mulheres excluídos,
dos que não conhecem a bondade. Como é que numa
situação destas a voz de Brecht, a mais lúcida e a mais clara
do século que agora termina, não haveria de ser incómoda?
Incómoda e combatente.
Como é que não seria incómoda a voz de alguém que cresceu:
(...) como filho de gente abastada.
Os meus pais puseram-me
um colarinho ao pescoço e criaram-me
nos costumes de ser servido
e ensinaram-me a arte de mandar. Mas
quando já era crescido e olhei à volta,
não me agradou a gente da minha classe,
nem o mandar nem o ser servido.
E eu abandonei a minha classe e juntei-me
à gente pequena.
Como é que deixaria de ter ressonância a voz de alguém que
disse que
(...) eu cantei o útil
que no meu tempo passava por vil,
porque eu combati a superstição,
porque eu combati a opressão (...)
A Mãe, Galileu Galilei, Mãe
Coragem, O Senhor Puntilla, A Boa
Alma, Santa Joana dos Matadouros e tantas
outras são marcas de uma mesma atitude, a atitude de alguém
cuja vida foi um combate infatigável contra a besta
imunda, contra o fascismo, contra a exploração. E que foi
sempre um grito, e uma prática, a favor da gente
miúda, dos pequenos, dos explorados, dos excluídos.
É esta a grande lição de Brecht. É esta lição que agora se
comemora neste centenário do nascimento do poeta. Uma lição
que não morreu, que não está morta e que projecta nos tempos
vindouros, uma luta de morte entre a exploração e os
explorados, entre os que dominam e os que são dominados.
Até ao dia em que o homem possa ajudar o homem
«O Militante» Nº 236 - Setembro / Outubro - 1998