Referendo absurdo
Campanha desumana



Fernando Blanqui Teixeira
Membro da Comissão Central de Controlo

A primeira questão que importa salientar a propósito do referendo do passado dia 28 de Junho, cujos resultados por concelhos, por distritos e regiões autónomas e no plano nacional
são a seguir publicados, é a de que tal referendo não devia ter sido realizado.
A Assembleia da República tinha aprovado uma lei. Não se pode, não se deve, depois de uma tal decisão do orgão legislativo, marcar um referendo sobre assunto já resolvido. Foi um choque inconveniente entre a democracia representativa e a democracia participativa que, neste caso, desacreditou a Assembleia da República.
A proposta do referendo foi feita pelo dirigente do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa, e foi aceite pelo dirigente do PS, António Guterres. Foram eles que fizeram aprovar pelos seus partidos na Assembleia da República a realização de um referendo absurdo. O PP também votou a realização do referendo.
As críticas a este acordo, à realização do referendo, foram muito amplas. Personalidades com posições ideológicas muito diversas fizeram-nas abertamente. Algumas apontaram que o acordo referido foi o resultado da influência da Igreja Católica junto dos mencionados dois dirigentes partidários. É uma acusação grave. Desde há muito se tornou claro que a ligação estreita entre um Estado e uma Igreja prejudica e degrada ambos.


Uma enorme abstenção

A abstenção atingiu mais de 68%; ultrapassou até a grande abstenção nas últimas eleições para o Parlamento Europeu (64,5%).

Inscritos Abstenções Votos validamente expressos SIM NÃO
8.489.146 5.777.676 (68,1%) 2.666.295 (31,4%) 1.308.843 (49,1%) 1.357.462 (50,9%)

Uma razão que a pode explicar estará ligada à incompreensão causada por um referendo que não devia ser feito. Foi muito mau que o primeiro referendo assentasse numa clara chicana política. Muitos eleitores não perceberam a razão de ser para o referendo ou protestaram contra ele.
Mas houve outras causas que contribuiram também para uma tão larga abstenção, para além do recenseamento manter ainda muitos “fantasmas” e do alheamento de muitos eleitores provocado pela pobreza, pela ignorância, pelo individualismo, pela desilusão ante o voto e também pela completa falta de empenho do PS. Entre aquelas outras causas deve destacar-se que muitos eleitores consideraram (consideraram mal) que se tratava de uma questão que só interessava às mulheres e só até certa idade. Outros pensaram que era uma questão demasiado íntima para ser colocada em referendo. Também toda a campanha levada a cabo pelos que defendiam o não no referendo confundiu muitos eleitores sobre, verdadeiramente, o que se tratava.


Um grande engano

A pergunta do referendo, a que só se pode responder, obrigatoriamente, com sim ou não, e que foi classificada por muitos de pouco simples e clara, era a seguinte: “Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas 10 primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?”.
Poder-se-ia, naturalmente, encontrar um texto mais acessível, mas é evidente que a resposta, sim ou não, se referia à despenalização da interrupção voluntária da gravidez. E as condições a que obrigava a sua realização indicadas na própria pergunta negam a acusação de que se pretendia a liberalização do aborto.
Numa reportagem difundida pela RTP nos primeiros dias em que a questão concreta do referendo começou a ser divulgada, uma jornalista apresentou dois convidados “com posições diferentes em relação ao aborto”. Ouviu primeiro uma enfermeira contra o aborto e depois perguntou ao outro convidado, um médico, o que tinha a dizer sobre o assunto. E o médico começou por afirmar que o que havia ali era uma grande confusão - “Todos somos contra o aborto”. E explicou, depois, o que pensava sobre o verdadeiro assunto em discussão - a sua despenalização.
Quem assistiu a esta cena percebeu que estava implantado um grande engano na comunicação social, dominante e poderosa. Não é que não tenham sido publicadas e divulgadas opiniões esclarecedoras. Mas a confusão teve um papel muito importante.
O DN, várias semanas antes do referendo, publicava diariamente, uma pergunta: “Como vai votar no referendo do aborto?”. As duas pessoas que respondiam raramente objectivavam a verdadeira questão do referendo.
A campanha do não, não só aproveitou e ampliou o engano como recorreu a processos
criticáveis, como, por exemplo: falsas referências a apoiantes (DN, 22/6/98), colocação de cartazes em espaços publicitários ilegais (24 horas, 25/6/98), utilização de crianças a encabeçar marchas (Público, 22/6/98). Um folheto da campanha “Agarra a Vida” chegou ao cúmulo de inventar uma falsa pergunta para o referendo - “O que te perguntam é: A mulher sem motivo e sem consultar o pai pode terminar a sua gravidez até às 10 semanas?”. Mesmo na manhã do referendo, muitos padres utilizaram as missas para levar as pessoas presentes a votar no não e a rádio e a televisão difundiu tais actos.
E não é um exemplo da confusão sobre o objectivo do referendo o que evidencia a opinião de um pediatra, catedrático da Faculdade de Ciências Médicas, defensor do não, quando alinha uma série de razões contra o aborto e, depois diz (Público, 26/5/98): “Tudo isto não significa falta de compreensão e fraternidade para com as mulheres que, em condições difíceis, engravidam nem significa que se defenda a sua condenação se porventura abortarem (...)”? É que era só a não condenação, a despenalização (com a exigência do aborto ser realizado por opção da mulher nas 10 primeiras semanas em estabelecimento de saúde legalmente autorizado) que o sim exigia.


Quem é que é pela vida?

Conseguida a grande confusão, que colocava o aborto como a razão do referendo, toda a campanha do não voltou-se para a luta contra o aborto. Quem ouvisse algumas declarações de bispos e outras personalidades que defenderam o não, poderia pensar que se vivia num país onde as mulheres não abortavam e, agora, um referendo pretendia pô-las a abortar... E foi ver as forças obscurantistas, retrógradas, da direita mais fundamentalista, que sempre lutaram contra o planeamento familiar e a educação sexual, contra a utilização de contraceptivos, contra as leis que, com grandes dificuldades, têm sido aprovadas na Assembleia da República em defesa das mulheres grávidas, a levantar, da forma mais hipócrita, a defesa da vida.
Como se não soubessem que se fazem, entre nós, por ano, entre 20 mil a dez vezes mais (1) abortos e que o aborto clandestino é a segunda causa de morte maternal (e, em relação às adolescentes, é a primeira). Como se não soubessem que mais de 10 mil mulheres recorrem anualmente aos hospitais para resolverem complicações de abortos realizados em más ou péssimas condições.
Não é necessário equiparar o aborto ao roubo (padre António Vaz Ribeiro, DN, 24/5/98), ou afirmar que “o aborto é pior que o holocausto” (bispo de Bragança, DN, 25/6/98) (2), ou chamar ao embrião um “ser humano desde o primeiro momento da sua existência” (Nota da Conferência Episcopal, intitulada “O referendo sobre o aborto” e aprovada em Fátima, 23 de Abril de 1998), um bebé, uma criança, ou apresentar desenhos, bonecos ou até filmes de embriões com 20 semanas e mais, para encontrar razões para provar que o aborto é sempre indesejável.
Mas o aborto existe. E é humano, é defender a vida, encontrar uma solução para que a mulher não tenha de recorrer ao aborto clandestino.
São as forças mais retrógradas que procuram impedir e têm impedido que o aborto clandestino acabe entre nós, como já sucedeu em quase todos os países da Europa de que somos parte (3).
Mas é evidente que todos os que têm uma posição de esquerda e desejam o progresso humano continuarão a lutar em defesa da saúde, da vida, da dignidade das mulheres que, por razões muito diversas, em que estão incluídos condicionamentos económicos, sociais e psicológicos, se vêem obrigadas a interromper a sua gravidez.


A política de direita é responsável pelo atraso do País

Analistas vários apontaram como as forças que mais se empenharam no referendo: o PCP, pelo sim (4), e a Igreja Católica, pelo não. (5)
Isto não significa que todos os membros e apoiantes do PCP intervieram consequentemente na luta pelo sim. Alguns, se não muitos, pelo menos, engrossaram o número dos abstencionistas. Também é evidente e natural que muitos e muitos católicos juntaram os seus votos à compreensão e à tolerância do sim. Sacerdotes classificaram de “retrógradas” as atitudes da Igreja» (DN, 25/6/98). O MCE (Movimento Católico dos Estudantes), num seu documento, diz (Público, 21/5/98): “não podemos permitir é que tudo permaneça na mesma”; a “hipocrisia permite que se continuem a praticar inúmeros abortos clandestinos” «penalizando» os que não têm “possibilidades sócio-económicas suficientes”; não se pode aceitar que a Igreja assuma as suas posições sobre o aborto com “contornos de fundamentalismo religioso”.
A influência do PCP e o tipo de influência da Igreja Católica são causas importantes da notável diferença entre a votação do sim e do não no Sul e no Norte e Regiões Autónomas.
É natural que, para explicar aquelas influências se refiram os 46 anos de opressão e fascismo, que a Igreja sempre acompanhou, apoiou e benzeu (6), bem como as lutas dos operários e dos outros trabalhadores, dos antifascistas, que, naturalmente em graus diferentes, tiveram lugar nas diversas regiões de Portugal.
Mas é necessário salientar que, após a libertação do 25 de Abril e a conquista de importantes direitos que fizeram progredir o País, a partir do primeiro Governo PS se tem sempre caminhado para trás. É a política de direita, que tem assentado no PS, no PSD e no CDS/PP, a causa fundamental de Portugal não ter saído da última posição na Europa em quase todos os índices sociais, de novamente a economia comandar a política, da percentagem da repartição do rendimento nacional que cabe ao trabalho ser hoje ainda menor do que no tempo de Salazar, de, em cada ano que passa, os pobres ficarem mais pobres e os ricos tornarem-se mais ricos.
Ante o referendo, simplesmente sobre a despenalização do aborto, Portugal, mais uma vez, não avança, é travado pelas forças do obscurantismo e da reacção.
É necessário ter bem presente o estímulo apresentado no folheto da campanha “Agarra a Vida” ao escrever: “Vota Não com António Guterres, Marcelo Rebelo de Sousa e Paulo Portas”.


Notas:

1) Estimativa da médica Teresa Tomé, na base de uma sua investigação (Público, 18/5/98).
2) O social-democrata Miguel Veiga, mandatário do Movimento Sim pela Tolerância,
lembrou a “história da Igreja” e a sua “cumplicidade aquando do holocausto e dos crimes nazis” (Público, 19/6/98).
3) Foi adiada para Setembro a discussão de uma resolução (aprovada com dois votos contra) da Comissão Feminina do Parlamento Europeu (constituída por 36 deputados de todos os grupos) que recomenda a legalização do aborto, condicionado pela decisão da mulher (24 horas, 25/6/98).
4) O que se sabe sobre o PS é que não tomou quaisquer medidas para mobilizar os seus membros pela campanha do sim.
5) Outras Igrejas tiveram posição contrária. Por exemplo, a Igreja Evangélica Presbiteriana de Portugal apelou ao sim no referendo (Público, 19/6/98).
6) Ninguém esquece a exemplar atitude do bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, e de outros sacerdotes, para não falar dos muitos católicos do nosso povo que lutaram contra o fascismo e as guerras coloniais. Mas também não se esquece que nunca a Igreja avançou uma palavra de arrependimento em relação ao seu procedimento durante esse quase meio século de atraso, prisões, torturas e mortes.


«O Militante» Nº 236 - Setembro / Outubro - 1998