A batalha das Regiões
Unidade para vencer



Luís Sá
Membro da Comissão Política

Como se sabe, foi convocado um referendo sobre a regionalização. O PCP sempre criticou a solução. Contudo, esta é actualmente a única via para instituir as regiões. Com efeito, a revisão constitucional manteve a regionalização como constitucionalmente obrigatória, mas fez depender a sua instituição em concreto de um referendo com uma vertente nacional e uma vertente regional. Não há alternativa para tentar vencê-lo.


Alberto João e outros?

O que está essencialmente em causa com a regionalização é dotar de legitimidade democrática poderes que já existem, já estão instalados na periferia, mas não respondem pelos seus actos perante as populações. Não instituir as regiões administrativas será seguir uma outra tradição, a dos períodos de centralização e autoritarismo.
Quando há eleições ninguém garante o resultado. Mas contrariar a sua existência por causa do resultado levar-nos-ia a defender a nomeação dos Presidentes de Câmara porque há escolhas pelo voto que não são adequadas. A luta terá que ajudar a resolver problemas onde existem. Mas é seguramente melhor a luta aberta do que a existência de poderes nomeados, instrumentos do poder central e que se ocultam na sombra, sem legitimidade directa e sem responderem pelos seus actos perante as populações.
Existem em Portugal - tal como lá fora - regiões muito diferentes em população, área, poderes e em razões que levaram a uma tal escolha. As regiões do Continente serão autarquias. Mas há sempre uma questão importante: dar às populações o direito de debater os problemas que têm e de escolher quem entende que os pode resolver. Quando se engana, é pela luta que temos que enfrentar esse facto e não defendendo que os poderes continuem a não ser eleitos.
Afirma-se, é certo, que Portugal é um país pequeno e por isso não precisaria de regiões. Quando assim se argumenta omite-se que países da Comunidade Europeia com a dimensão de Portugal, ou mais pequenos, estão regionalizados. As suas estruturas intermédias de poder têm em média menor área e menos população do que teriam as regiões do modelo que está proposto para Portugal. Afirma-se também que só faria sentido regionalizar para resolver problemas étnicos ou culturais que não existiriam em Portugal. Omite-se que a regionalização nem sempre tem que ter por fundamento problemas étnicos, mesmo a existência de nacionalidades. Há casos em que a regionalização tem outras razões, como organizar a Administração Pública de um país de forma mais racional e participada. De resto, regiões como as de Espanha estão por sua vez divididas em províncias, além dos municípios. A prova de que são necessárias é que Portugal sempre teve regiões, embora muitas vezes não eleitas.


Regiões diferentes

A regionalização tornou-se um dos mais importantes fenómenos da Europa Ocidental.
As razões que levaram à regionalização são diversificadas nos diversos países: trata-se, por vezes, de tentar resolver o problema da coexistência de várias nacionalidades no quadro de um Estado unitário, como acontece em Espanha em algumas das regiões; noutros, trata-se de ter em conta realidades particulares de carácter cultural, étnico e linguístico, como terá sido o caso do complexo processo da Bélgica; pode tratar-se da existência de «interesses específicos» decorrentes de particularidades geográficas e culturais que geraram aspirações de autonomia, como acontece, em Portugal, com as regiões autónomas dos Açores e da Madeira (e eventualmente com as Canárias): são as «regiões ultraperiféricas da UE», que deram origem a programas específicos tendo como fundamento o seu afastamento e a sua insularidade; outras vezes, pode existir um propósito de assegurar a partilha vertical de poderes criando estruturas legitimadas pelo voto, capazes de desenvolverem determinadas actividades com maior participação e intervenção popular e reequilibrando a distribuição de poderes entre eleitos e funcionários e o espaço para a política face ao aparelho administrativo central; pode eventualmente pesar também, em certos casos, a necessidade de organizar a Administração de forma descentralizada, aliviando o Estado-Administração Central de certas tarefas.
A democratização, racionalização e qualidade da organização administrativa que deve caber às regiões tem de ser o motivo privilegiado no caso do continente. A região pode aparecer, em diversos casos, mais como instrumento de ordenamento do território, planeamento, mobilização de recursos endógenos para o desenvolvimento, eficiência na gestão de recursos, etc..


Regionalização e participação

Por outro lado, a regionalização pode ser um instrumento que favorece a democracia participativa. A aproximação dos serviços públicos em relação às populações e a legitimação do poder através do voto popular constituem um estímulo à participação, se nesse sentido se orientar a necessária vontade política. As possibilidades de participação são infinitamente maiores do que quando se verifica a nomeação para os cargos públicos por parte do Governo Central. As populações não conhecem o rosto dos titulares de cargos nomeados, por maiores que sejam as verbas administradas e os poderes exercidos: é o caso, por exemplo, dos presidentes e dos vice-presidentes das Comissões de Coordenação Regional. A própria comunicação social ignora esses poderes.
Existe um défice de participação no sistema político português. A democracia está longe de ser em Portugal uma prática quotidiana. Pelo contrário, há perigos reais de que, para milhões de portugueses, se resuma, ou quase, ao exercício periódico do direito de voto.
A concepção de democracia que tem predominado em Portugal é extremamente limitada. Não atende a aspectos económicos, sociais e culturais, que deveriam integrar um conceito rico e não meramente «procedi-mental» de democracia (a democracia entendida como mero procedimento para escolher os titulares dos órgãos de poder).
A participação não é, por exemplo, um critério de organização da Administração e de elaboração das deliberações e decisões administrativas. Não é extensiva à empresa, à escola, ao local de residência.
Nos últimos anos pouco se avançou no sentido de um reforço efectivo dos direitos dos cidadãos e na construção de uma Administração Pública aberta, “estruturada de modo a evitar a burocratização, a aproximar os serviços das populações e a assegurar a participação dos interessados na sua gestão efectiva, designadamente por intermédio de associações públicas, organizações de moradores e outras formas de representação democrática” (artigo 267º/1 da Constituição).
Uma das condições centrais pa-ra reforçar os direitos, para estimular a participação e combater a burocracia é a descentralização. Quanto mais perto dos cidadãos está o poder mais possível é a participação.
Caso houvesse uma preocupação genuína com a participação dos cidadãos, seria possível avançar em diversas direcções simultaneamente. Nesse quadro, a regionalização poderia ter um importante papel, exactamente como um instrumento de mobilização das populações para participar em questões regionais que até agora têm sido tratadas por estruturas burocráticas ligadas à Administração Central, sem transparência nem controlo democrático.


Regionalização e desenvolvimento

A regionalização pode favorecer o desenvolvimento, sobretudo se este for concebido de forma integrada, englobando simultaneamente os aspectos económicos, sociais, ambientais e culturais.
Daí decorre a necessidade de equilíbrio dos níveis de recursos e riqueza das diferentes áreas de um país, sem a qual não haverá a justiça e igualdade que é inerente às modernas concepções de desenvolvimento. Ora, como se sabe, existem áreas com níveis de desenvolvimento completamente diversos no País, sejam quais forem os indicadores utilizados. Há mesmo áreas regionais em processos de desertificação acelerada e com elevados índices de envelhecimento. Mesmo nas áreas com indicadores de desenvolvimento mais favoráveis, há outros factores que traduzem uma vida muito dura: horas em engarrafamentos, degradação ambiental, deficiências em matéria de saúde e habitação, insegurança, elevados índices de marginalidade, medo do futuro e desemprego.
Esta situação exige uma redistribuição espacial do investimento público e privado, com políticas dirigidas à superação das graves distorções existentes.
Com efeito, a regionalização pode não ser uma condição necessária nem suficiente do desenvolvimento. Mas a existência de um sistema democrático representativo ao nível regional pode estimular os serviços públicos, contribuindo para a sua dinamização, e favorecer o desenvolvimento económico, social e cultural. O facto de o poder regional ter que responder pelos seus actos em eleições competitivas pode dinamizar o investimento público e, nesse sentido, pode dizer-se que a democracia representativa é, por si, um factor de desenvolvimento.
Há também que sublinhar a possibilidade de a descentralização e a desburocratização permitirem uma melhor administração dos estímulos ao desenvolvimento, a remoção de peias que impedem ou dificultam o investimento privado e a melhor gestão dos fundos comunitários.


Regionalização e reforma administrativa

A regionalização é condição de uma reforma administrativa democrática, que dê coerência à administração periférica do Estado e permita descentralizar e desburocratizar.
Portugal é um dos países da Europa Ocidental com a Administração Pública mais centralizada e esse facto não pode deixar de ter efeitos na sua democraticidade. Poder-se-á concluir do prejuízo que tal constitui particularmente se atendermos que o nível de administração local rentabiliza o dinheiro publico como se poderá verificar pelo facto de as autarquias locais serem responsáveis por cerca de 25% do total do investimento publico dispondo apenas de 7% dos recursos públicos.
Por outro lado, a Administração periférica do Estado está completamente desorganizada, tendo-se multiplicado divisões regionais de ministérios e empresas públicas sem coordenação.
A burocracia já existe, imiscui-se constantemente no funcionamento dos municípios, tem um papel essencial na gestão dos fundos comunitários. As regiões administrativas não seriam uma nova burocracia. Seriam antes a possibilidade de democratizar a administração periférica e combater a burocracia já existente.


A questão do referendo

O quadro anteriormente previsto (referendo orgânico municipal) permitia criar as regiões «de baixo para cima» e a partir dos municípios. As questões relacionadas com a pertença de tal ou tal município a tal ou tal região, e mesmo a questão do elenco das regiões, poderia ser resolvida de modo muito flexível. Mesmo que se optasse por um referendo directo seria mais adequado o referendo parcial, em que a população de cada região se pronunciaria sobre a respectiva área regional. Agora, porém, não há alternativa para a tentativa de vencer o referendo e aproveitar uma oportunidade que, com todas as questões, não se repetirá imediatamente ou no médio prazo caso triunfem as posições favoráveis ao não.
Agora vai ser referendada apenas a instituição em concreto (como o PCP sempre disse). Qualquer que seja o resultado, continuará a ser obrigatório instituir as regiões administrativas...
A realização dos referendos nacional/regional abre caminho à possibilidade de contradições que podem ser politicamente indesejáveis. Em primeiro lugar pode verificar-se a contradição entre a lei de criação das regiões administrativas (aprovada pela Assembleia da República e promulgada pelo Presidente da República) e o voto em referendo(s). Em segundo lugar, pode verificar-se uma contradição entre o voto desfavorável a nível nacional e o voto favorável em várias regiões. Aqui, o problema é passível de se verificar quer através da “leitura regional” dos resultados do referendo nacional, quer através da contradição entre este e o resultado dos referendos regionais. Com efeito, podem verificar-se altos níveis de adesão entre os eleitores de algumas regiões, já criadas pela “lei de criação das regiões” e esta vontade ser esmagada pelo referendo nacional. Dito de oura forma, o todo pode esmagar as partes.
Mas também poderá acontecer, ao contrário, que a “parte possa esmagar o todo”. É o que sucederia, por exemplo no caso de numa eleição tangencial, se uma parte (por exemplo, a Madeira) pudesse negar a vontade maioritária expressa no Continente. Ou então o “sim” em diversas regiões ser esmagado pelo “não” de uma só ou de várias.


A hipocrisia do “Não a estas regiões”: as áreas

Mostrando-se pouco seguro quanto aos sentimentos nacionais sobre as regiões, o PSD propõe-se fazer campanha não contra as regiões, mas sim contra “estas regiões”. Tenta assim juntar os que são contra todas as regiões e os que são contra as regiões a que foi possível chegar.
Omite, entretanto, que “estas regiões” resultam directamente das atitudes do PSD e PP. Com efeito, não são o resultado de uma “negociata” de bastidores, mas sim o fruto directo de uma consulta nacional a todas as assembleias municipais. Acontece que o PSD e o PP impediram aquelas em que têm maioria de responder. Se tivessem respondido, isso significaria que a AR ficaria com mais elementos de trabalho, que permitiriam reajustar a pertença de tal ou tal município a uma região. Em última instância, até o elenco das regiões poderia ser alterado...
Acontece que o PSD preferiu jogar na ambiguidade. Agora, é evidente que a vitória do sim é a única via para abrir caminho para avançar, pelo menos onde for possível, e para eventuais futuros reajustes onde se impuserem.
O PSD nunca disse, de resto, que regiões defende depois de Cavaco Silva em 1994 se ter declarado contra todas (depois de ter incluído a sua instituição no Programa Eleitoral com que venceu as eleições, de o PSD as ter votado na Assembleia Constituinte, e de a Lei Quadro das Regiões (lei nº 56/91) ter sido votada por unanimidade.
Se não defende estas, compromete-se a apresentar um projecto de lei com outras, no caso da vitória do não? A resposta é negativa. E fosse esta qual fosse, a coerência a esperar seria a mesma que se encontrou em quem disse que só seria líder do PSD se Cristo descesse à Terra...


Coesão, capitais, novas candidaturas a hegemonias

Por detrás da afirmação de um Portugal coeso há muitas frustrações.
Resultam de um quadro em que ninguém está em boas condições: nem os que viram desertificar-se regiões, nem os que enfrentam um quotidiano violento, como acontece nas áreas metropolitanas.
A regionalização e o debate em torno dela terão que ser conduzidos com cuidados, até porque a direita instrumentaliza todas as situações em que se verifique a falta deles.
Um aspecto fundamental será a candidatura a novas hegemonias num país que há muito é essencialmente bipolar. Impõe-se assegurar que o projecto para as novas regiões se apresente essencialmente como polinucleado, em geral sem capitais e sem contemporizar com sonhos de novas hegemonias no seio de futuras autarquias regionais. Daqui decorre que o projecto deverá, em geral, ser de localização diversificada de serviços, equipamentos e infra-estruturas.
A verdade é que a grande maioria das capitais de distrito já foi esvaziada de quase todo o seu papel. Basta pensar nos 20 casos de desconcentração agrupando distritos, nos 13 casos de desconcentração de acordo com a área das cinco comissões de coordenação regional e nos 26 casos de desconcentração segundo outras áreas, todas diferentes do modelo assente nos dezoito distritos.
No entanto, apesar deste facto, as aspirações - e frustrações - continuam; mais do que estratégias de momento, importa ter em conta a vantagem que resultaria de uma rede de cidades equilibrada e racionalizada. Seria desse modo que se poderia contribuir verdadeiramente para mais justiça, harmonia e coesão.


A posição do PCP

O PCP votou contra este tipo de referendo na revisão constitucional. Absteve-se na aprovação da resolução que o propõe ao Presidente da República. Teve em conta que, para além da sua posição de fundo, é esta a única via, como se disse, de instituir as regiões na presente situação.
Este objectivo está inserido, desde há duas décadas, em programas eleitorais do Partido. Consta de sucessivos projectos de lei e do seu Programa. Importa fazer tudo para o viabilizar, na base da unidade e coesão de todas as organizações e militantes.
Impõe-se, por outro lado, conjugar a intervenção autónoma do Partido com a intervenção unitária em diferentes movimentos.
Não se trata de uns concorrerem com outros, mas sim de procurar que todos convirjam no mesmo objectivo comum de assegurar a democratização e racionalização da administração regional do Estado.


«O Militante» Nº 236 - Setembro / Outubro - 1998